As Catacumbas de São Calisto
São
Josemaria guia-nos pelas catacumbas de Roma para que apreciemos os feitos,
verdadeiramente valentes daqueles primeiros cristãos.
12/09/2018
A
perseguição ordenada por Nero no ano 64 conduziu ao martírio uma grande
quantidade de cristãos. Foi uma dura prova para a jovem Igreja de Roma que,
desde esse momento, teve de enfrentar também uma terrível campanha de calúnias
e desprestígio entre a população. Os cristãos eram qualificados como ateus –
negavam-se a prestar culto ao imperador -, perigosos para a unidade do império
e inimigos do gênero humano; atribuíam-se lhes as piores atrocidades:
infanticídios, antropofagia e desordens morais de todo o tipo. Tertuliano
(160-220) descrevia assim a situação: Os cristãos são os culpados de
qualquer calamidade pública ou males que sobrevêm ao povo. Se o Tibre aumenta
de volume de água e sai do leito, se o Nilo não aumenta e não rega os campos,
se o céu não manda chuva, se a terra treme, se há fome, se há peste, logo
ressoa um mesmo grito: os cristãos às feras![1]
Até ao ano
de 313, em que se alcançou a paz com o Edito de Milão, a Igreja viveu
perseguida. É certo que estas perseguições não tiveram sempre a mesma
intensidade e que, excetuando alguns períodos concretos, os cristãos faziam a
sua vida normal; mas o risco de serem martirizados estava sempre presente:
bastava a acusação de um inimigo para que se iniciasse o processo. Quem se
convertia estava plenamente consciente de que o cristianismo exigia uma opção
radical que implicava a procura da santidade e a profissão da fé, chegando – se
fosse necessário - à entrega da própria vida. O martírio era considerado, entre
os fiéis, um privilégio e uma graça de Deus: uma possibilidade de se
identificar plenamente com Cristo no momento da morte. Para mais, a consciência
da própria debilidade levava-os a implorar a ajuda do Senhor para o saber
abraçar, se se apresentasse a ocasião, e a venerar como modelos os que tinham
alcançado a palma do martírio. É fácil imaginar como emocionaria a comunidade
cristã de Roma ouvir os pormenores da morte santa dos seus irmãos na fé. Estes
relatos eram ao mesmo tempo consolo e fortaleza para os crentes, e semente para
novas conversões. As relíquias dos mártires recolhiam-se e sepultavam-se com
devoção, e a partir desse momento recorria-se a eles como intercessores.
Desde
sempre, a lei romana estabelecia que as necrópoles – cidades dos mortos, em
grego - se deviam situar fora das muralhas da cidade. Ao homem morto
nem se sepultará, nem se cremará na Urbe[2].
Os romanos costumavam incinerar os corpos dos defuntos, mas também havia
algumas famílias que tinham o costume de enterrar os seres queridos em campos
da sua propriedade, costume que se foi impondo posteriormente por influência do
cristianismo.
Ao princípio
não havia separação, e enterravam-se juntos os fiéis e os pagãos. A partir do
século II, graças aos donativos de alguns cristãos de boa posição social, a
Igreja começou a ter as suas necrópoles próprias, a que chamou cemitérios
- coimeteria, do grego koimáo, dormir -: lugares onde
os corpos repousam na espera da ressurreição. Assim foram surgindo as
catacumbas cristãs, que não eram – como às vezes se pensa - esconderijos ou
lugares de reunião para as celebrações litúrgicas, mas lugares de sepultura
onde se guardavam os restos mortais dos irmãos na fé. Originariamente, o termo
catacumba fazia referência à zona da via Ápia que se situa entre o túmulo de
Cecília Metella e a cidade de Roma. Com o tempo, passou de toponímico para
designar em geral o cemitério cristão sob a terra. Nos primeiros séculos foram
enterrados nelas muitos mártires e, junto com os túmulos de São Pedro e de São
Paulo, as catacumbas passaram a ser lugares de memória e de veneração muito
queridos para os cristãos de Roma. Quantas vezes, nos momentos difíceis, iriam
aí implorar a ajuda de Deus por intercessão daqueles que tinham proclamado o
Evangelho com o seu sangue! Movidos pela devoção, era normal que os fiéis
quisessem ser sepultados e esperar a ressurreição na companhia dos outros membros
da comunidade cristã e, se fosse possível, próximo de algum Apóstolo ou de
algum mártir.
Na via Ápia
As
Catacumbas de São Calisto encontram-se na saída de Roma pela via Ápia. No
século II, começou a utilizar-se a zona como lugar de sepultura, e alguns dos
seus proprietários, sem dúvida cristãos, facilitaram que fossem ali enterrados
outros irmãos na fé. Por essa época recebeu sepultura a jovem mártir Cecília,
cuja memória foi muito venerada desde o momento da sua morte. Pertencente a uma
família patrícia, Cecília converte-se ao cristianismo na sua juventude. Casa-se
com Valeriano, a quem também aproxima da fé, e os dois decidem viver
virginalmente. Pouco depois, Valeriano – que se ocupava em recolher e sepultar
os restos mortais dos mártires - é descoberto e decapitado. Cecília também é
denunciada ante as autoridades. Tentam asfixiá-la nas caldeiras da casa e,
depois de sair ilesa, é condenada à morte por decapitação. A lei romana
estipulava que o carrasco podia dar três golpes com a espada. Cecília recebe-os,
mas não morre imediatamente. Estendida no chão, antes de exalar o último
suspiro, encontrou forças para estender três dedos da mão direita e um da
esquerda, testemunhando até ao fim a sua fé num Deus Uno e Trino. Quando
séculos mais tarde, em 1599, se examinaram as suas relíquias, o corpo
incorrupto de Santa Cecília encontrava-se ainda nessa posição. Maderno
imortalizou-a numa escultura que hoje se encontra na igreja de Santa Cecília no
Trastevere – sua antiga casa, onde repousam desde o século IX os restos mortais
da santa - e da qual há uma cópia nas catacumbas de São Calisto, no lugar onde
foi inicialmente sepultada.
No século
II, o cemitério é doado ao Papa Zeferino (199-217), que confia a sua
administração ao diácono Calisto. Nasce assim o primeiro cemitério propriedade
da Igreja de Roma, que um século mais tarde guardará já os restos mortais de
dezesseis papas, quase todos mártires. Calisto trabalhou à frente das
catacumbas quase vinte anos, antes de se converter no sucessor do Papa Zeferino
como cabeça visível da Igreja. Durante esse tempo, ampliou e melhorou a
disposição das áreas principais do cemitério: em especial, a Cripta dos Papas e
a Cripta de Santa Cecília.
Outro
mártir que, com o seu testemunho, comoveu a comunidade cristã foi São Tarcísio.
No século IV, o Papa São Dâmaso gravou sobre o seu túmulo a data exata em que
recebeu o martírio: 15 de Agosto de 257, durante a perseguição de Valeriano.
Tarcísio era um adolescente que ajudava como acólito a distribuir a Comunhão
entre os cristãos encarcerados nas prisões. Nesse 15 de Agosto foi descoberto,
preso e ameaçado para entregar as Sagradas Hóstias. Tarcísio negou-se, e
preferiu morrer lapidado a permitir a profanação do Corpo de Cristo.
Com a paz
de Constantino, as catacumbas continuam a ser
lugares de sepultura, e convertem-se também em local de peregrinação. Contudo,
no século V, depois do saque de Roma levado a cabo por Alarico, aumenta a
insegurança no exterior das muralhas da cidade e elas serão cada vez menos
frequentadas. No século IX, decide-se levar os ossos dos santos para as igrejas
que estão dentro da cidade; e durante a Idade Média as catacumbas vão caindo
progressivamente no esquecimento: ninguém vai a esses lugares e em muitos casos
perde-se a memória da sua localização.
Embora o
interesse pelas catacumbas renasça a partir do século XV, foi só século XX que
voltaram a ser valorizadas como lugar santo e tesouro da cristandade. Giovanni
Battista De Rossi, fundador da arqueologia cristã moderna e redescobridor das
Catacumbas de São Calisto, conta nas suas memórias como convenceu Pio IX a
visitar as escavações. Quando chegaram à Cripta dos Papas, De Rossi
explicou-lhe as inscrições e mostrou-lhe a lápide que São Dâmaso mandara
colocar no século IV com os nomes dos sucessores de Pedro martirizados e ali
sepultados. Foi então que Pio IX tomou consciência do lugar em que se
encontrava. Com os olhos marejados pela emoção, ajoelhou-se e esteve um momento
absorvido em oração. Era a primeira vez, depois de quase mil anos, que um Papa
voltava a pôr os pés nesse lugar santificado pelo sangue de mártires.
4 de Julho
de 1946
Pouco
depois de chegar a Roma, São Josemaria falou do seu desejo de ir rezar às
catacumbas.
Veem que
não estamos sozinhos? Dizia aos seus filhos durante o tempo de reclusão na Legação das
Honduras, anos antes. Como os primeiros fiéis na quietude das
catacumbas romanas, podemos clamar: "Dominus illuminatio mea et salus mea,
quem timebo?" (Sal 26,1); o Senhor é a minha luz e a minha salvação, a
quem temerei? Só assim podemos explicar os feitos, verdadeiramente corajosos,
que levaram a cabo aqueles primeiros cristãos. Com uma confiança segura na
ajuda de Deus, sem fazer coisas estranhas, entraram em todo o lado: no foro,
nos palácios, até na casa do imperador[3].
A 4 de
Julho de 1946 São Josemaria foi, de manhã cedo, às Catacumbas de S. Calisto. O fundador
do Opus Dei celebrou a Santa Missa na Cripta dos Papas, e o padre Álvaro
del Portillo na de Santa Cecília. Depois visitaram as Catacumbas de São
Sebastião e os primeiros sepulcros dos Apóstolos.
Desde os
começos da Obra, São Josemaria gostava de citar os primeiros cristãos como
modelo e exemplo para explicar a vida dos fiéis do Opus Dei. Não em vão,
chamava-os como os nossos precursores no velho e novíssimo apostolado
da Obra[4]. Calcula-se
que o número de sepulturas cristãs nas Catacumbas de São Calisto ronda as
quinhentas mil. A maior parte são campas simples, com uma breve inscrição para
distingui-las.
A partir do
século IV – terminada a perseguição -, são mais frequentes as inscrições nas
lápides. Junto ao nome, como que para assinalar um elemento característico da
vida dessa pessoa, costumava indicar-se a profissão. Ali havia padeiros,
carpinteiros, alfaiates, pintores, professores, médicos, advogados,
funcionários públicos, soldados…; um reflexo claro da variedade de ofícios dos
cristãos, que, - como diz Santo Agostinho - misturados entre os demais homens
correntes, faziam a vida que todos faziam, mas animados por uma fé diferente,
uma esperança diferente e um amor diferente[5]. Como
se alegraria São Josemaria ao pensar naqueles precursores na fé que procuravam
a santidade no meio do mundo, ao mesmo tempo em que eram fermento na massa da
sociedade! O amor e a veneração que sentia por eles, levava-o a pô-los muitas
vezes como exemplo na sua pregação: não tenho outra receita para ser
eficaz a não ser a que tinham os primeiros cristãos. Não há outra, meus filhos[6].
Ao longo da
sua vida, o Fundador do Opus Dei referiu-se em numerosas ocasiões a
pinturas ou gravuras presentes nas catacumbas para ilustrar temas como o amor à
Virgem Maria, a fraternidade, ou a unidade com o Papa, que os fiéis dos
primeiros séculos já graficamente testemunhavam. Não obstante, se houvesse que
destacar uma imagem dos primeiros cristãos que especialmente o enamorava,
certamente teria que falar do Bom Pastor.
No quarto
de trabalho de São Josemaria em Villa Tevere colocou-se uma lápide de mármore
travertino com uma reprodução do Bom Pastor que está nas catacumbas, e os
versos de Juan del Enzina: Tan buen ganadico,/ y más en tal valle,/ placer es
guardarlle./ Y tengo jurado/ de nunca dejarle,/ mas siempre guardalle. Desde
o primeiro dia, desde aquele 2 de Outubro de 1928, sinto o impulso divino,
paterno e materno, para convosco e para com as vossas vidas. Nenhum me é
estranho, nem dos milhares das minhas filhas e dos meus filhos que não conheço[7].
Gostava de
falar do Bom Pastor para fomentar a nossa preocupação apostólica por todas as
almas. Senhor, tenho um punhal cravado no coração: a necessidade de
ajudá-los. Vai Tu mesmo atrás deles, meu Bom Pastor, e carrega-os sobre os teus
ombros; que se repita aquela figura amabilíssima que contemplamos nas
catacumbas. Quando o pastor encontra a ovelha que tinha perdido, põe-na aos
ombros, e ao chegar a casa, chama os amigos e vizinhos e diz-lhes: alegrai-vos
comigo, porque encontrei a ovelha que se me tinha perdido (Lc 15, 5-6)[8].
Durante a
sua vida, o fundador do Opus Dei não falou apenas do Bom Pastor; mas
também lutou por sê-lo, encarnando essas palavras que Cristo pronuncia no seu
Evangelho: Eu sou o Bom Pastor. O Bom Pastor dá a sua vida pelas suas
ovelhas[9].
Como testemunhou o Prelado do Opus Dei, São Josemaria meditou
durante toda a sua vida as cenas evangélicas do Bom Pastor. Amava muitíssimo
essa alegoria e estava disposto a conhecer as ovelhas, uma a uma; a dar a vida
por elas; a levá-las às melhores pastagens; e a não deixar de atender aquela
que se tivesse perdido ou ficado pelo caminho[10].
À entrada
das Catacumbas de São Calisto, antes de descer as escadas que conduzem à Cripta
dos Papas, pode ver-se uma imagem do Bom Pastor, cópia da original do século IV
que agora se encontra nos Museus do Vaticano. Também há uma igual em Villa
Tevere, próximo da Igreja prelatícia de Santa Maria da Paz, onde
repousam os restos mortais de São Josemaria. Ao vê-la, são inúmeras as
recordações que evoca: Jesus Cristo, os primeiros cristãos, o Papa, todas as
almas… Com que ternura falava Cristo, Nosso Senhor, do Bom Pastor! Como
o descreve! Diz-nos que as ovelhas seguiam o pastor, e queriam-no, e sabiam-se
bem cuidadas…[11].
[1] Tertuliano, Apologeticum,
40, 12.
[2] Doze Tábuas, 10,1.
[3] São Josemaria, AGP, P12, p. 32.
[4] São Josemaria, Instrução, n.
298.
[5] Santo Agostinho, De civitate Dei,
54, 2.
[6] Apontamentos recolhidos da pregação
oral, 29-II-1964.
[7] São Josemaria, AGP, P18, p. 151-152.
[8] São Josemaria, AGP, P18, p. 276.
[9] Jo 10, 11.
[10] D. Javier Echevarria, Lembrando o Beato
Josemaria, p. 329.
[11] São Josemaria, Apontamentos recolhidos numa tertúlia, 13-III-1955.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
Nenhum comentário:
Postar um comentário