Arquivo 30Dias – 11/2011
Perseguidos em tempos recentíssimos
A Primeira Carta de Clemente aos
Coríntios, que fala das perseguições sofridas pelos cristãos “por inveja e
ciúme”, foi redigida não muito tempo depois da morte de Nero, e, portanto, pouquíssimos
anos após o martírio dos santos Pedro e Paulo, em Roma.
Um artigo do presidente emérito do Pontifício Comitê de Ciências Históricas
do cardeal Walter Brandmüller
Entre os testemunhos escritos da Igreja primitiva
que chegaram até nós, a Primeira Carta de Clemente é o mais
próximo cronologicamente dos textos neotestamentários. Não nos devemos
surpreender, portanto, se há tempos chama particularmente a atenção dos
estudiosos. Mas esse texto foi, e é, debatido em cada mínimo detalhe sobretudo
porque a tradição católica vê nele o primeiríssimo testemunho extra-bíblico em
favor do primado da Igreja romana no seio da cristandade. Sendo assim, a
questão da data de composição se reveste de especial interesse. É geralmente
aceito que a Primeira Carta de Clemente tenha sido composta no
final do século I da era cristã. Partindo da referência à perseguição dos
cristãos, hipnotiza-se, portanto, que pertença à época do imperador Domiciano,
que reinou de 81 a 96.
No entanto, surgiram há algum tempo dúvidas sobre
essa datação e estudos mais cuidadosos demonstraram que sob Domiciano não houve
nenhuma perseguição aos cristãos.
Nos capítulos 3 a 5 da Carta, que é um
apelo à unidade e ao amor no seio da Igreja, fala-se das funestas consequências
do ciúme para a comunidade dos cristãos. O autor traz sobre isso uma série de
exemplos extraídos do Antigo Testamento, para depois prosseguir: “Todavia,
deixando os exemplos antigos, examinemos os atletas que viveram em tempos recentíssimos.
[...] Foi por causa do ciúme e da inveja que as colunas mais altas e justas
foram perseguidas e lutaram até a morte. Consideremos os bons apóstolos. Pedro,
pela inveja injusta, suportou, não uma ou duas, mas muitas fadigas [...].
Diante da inveja e da discórdia, Paulo mostrou o prêmio reservado à
perseverança. [...] Deixou o mundo e se foi para o lugar santo, como excelso
modelo de perseverança”.
Logo depois, a Carta fala também dos mártires da
perseguição realizada por Nero e lembra – como mais tarde faria também Tácito
(† 117) – a maneira como morreram, dizendo ainda de forma explícita que tudo
isso aconteceu “entre nós” (em Roma) – •n ämîn – e, mais precisamente, ≤ggista, ou seja, “em tempos recentíssimos”.
Mas isso significa que a perseguição de Nero pertence à experiência direta do
autor. A Carta não pode, portanto, ter sido escrita muito
tempo depois da morte de Nero (68), uma vez que o ano do massacre de cristãos
ainda é incerto (64/65).
A propósito disso, surge também a questão: na
inveja e no ciúme de que fala Clemente, e dos quais os apóstolos Pedro e Paulo
foram vítimas, devem ser reconhecidos os conflitos dentro da comunidade cristã
de Roma? Os claros conflitos em torno de Marcião, Valentino e Cerdão são todos
de uma geração depois.
É muito mais verossímil pensar nas tensões entre
cristãos e judeus. Não deve de fato ser esquecido que naquelas décadas estava
em pleno andamento a separação entre judeus e cristãos, uma situação mais que
favorável a invejas e ciúmes.
Sabemos, além disso, por Flávio Josefo, que a
esposa de Nero, Pompeia, era uma prosélita, ou seja, uma convertida ao
judaísmo, e deve, portanto, ter tido estreitos laços com os ambientes judaicos
de Roma.
Portanto, seria realmente impensável que na busca
por bodes expiatórios para o incêndio da Roma neroniana tenha sido ela quem
desviou a atenção para os cristãos, tão mal-vistos pelos judeus?
Seja como for, em todas essas abordagens
interpretativas é necessário ter cautela, dada a ausência de provas seguras nas
fontes.
Mas este é o momento de enfrentar a questão do
autor. É evidente que o nosso texto – que se apresenta como um tratado em forma
epistolar – não é obra de uma coletividade: dizer que a “Igreja de Deus que
vive como estrangeira em Roma” escreve à Igreja de Corinto é apenas um
expediente formal. Considera-se que quem a escreveu foi “Clemente”, nome que –
pelo que sabemos – é citado pela primeira vez numa carta de resposta do bispo
Dionísio de Corinto ao papa Sotero (166-174 c.). Escreve Dionísio: “Hoje celebramos
o dia santo do Senhor e neste mesmo dia lemos a vossa carta, a qual, tal como o
precedente escrito a nós enviado por Clemente, sempre leremos como
admoestação”.
Se esse Clemente é nomeado ao lado do bispo de Roma
Sotero e a sua carta é lida como a carta de um papa durante a liturgia, pode-se
considerar que com esse Clemente se faça referência a um outro bispo de Roma.
Como sugere também o Clemente Romano lembrado no Pastor de Hermas,
escrito na primeira metade do século II, uma vez que pelo contexto deduzimos
que esse Clemente era pessoa de alta autoridade.
Não devemos esquecer que até o século IV, então
como no passado, a Carta de Clemente era de uso público em
grande parte das Igrejas. No Egito e na Síria, de modo particular, era-lhe
atribuída uma autoridade quase canônica.
No Codex Alexandrinus, famoso
manuscrito da Bíblia do século V hoje conservado em Londres, a Primeira
Carta de Clemente aparece ao lado do Novo Testamento.
Ora, como dissemos, todos esses debates, ou melhor,
controvérsias, têm um precedente: pode a Primeira Carta de Clemente ser
considerada a primeira prova pós-bíblica em favor do primado do bispo de Roma
como guia da Igreja universal? Há diferentes respostas, dependendo do diferente
ponto de vista confessional.
Deveria estar claro o evidente anacronismo que
representaria perguntarmo-nos se o primado de Roma, tal como formulado pelos
dois Concílios Vaticanos, é testemunhado pela Primeira Carta de
Clemente. É justo, porém, que nos perguntemos se nessa carta fica clara a
responsabilidade da Ecclesia Romana sobre toda a Igreja.
Pensando nisso, convém em primeiro lugar dar uma
olhada no motivo e no conteúdo da Carta. Por que, afinal, foi
necessário escrevê-la?
Pelo texto, compreendemos que na comunidade de
Corinto se verificara uma ruptura, uma vez que os jovens se haviam rebelado
contra os presbíteros da comunidade e os haviam removido de seu posto.
A intervenção de Roma, nessa situação que ameaçava
a vida da Igreja de Corinto, é um fato notável. Ignoramos totalmente se ocorreu
em resposta a um pedido de ajuda dos chefes da Igreja destituídos ou se Roma
tomou a iniciativa motu proprio. Para a nossa questão, no entanto,
isso é totalmente irrelevante, pois, no primeiro caso, se foram os presbíteros
que recorreram a Roma, isso significa que reconheciam sua autoridade e sua
faculdade de tutelar seus direitos; no segundo, a intervenção de Roma
testemunharia que a Ecclesia Romana exercia de modo óbvio a
autoridade sobre toda a Igreja.
O fato parece ainda mais notável se considerarmos
que na época do envio da Carta a Corinto – pouco importa se a
data é anterior ou se deu só por volta do final do século I – ainda vivia, em
Éfeso, um dos Doze, João. Afinal, por terra Corinto distava de Éfeso cerca de
1.300 quilômetros – menos da metade por mar –, enquanto, também por terra, Roma
estava a 2.500 quilômetros. Deveria haver, portanto, um motivo para que não
tenha sido o último dos Doze, mas o Bispo de Roma, a pessoa interpelada e que
interveio nessa situação.
A suposição, portanto, de que se tenha recorrido ao Sucessor de Pedro como instância última poderia não ser de modo algum equivocada.
Fonte: https://www.30giorni.it/
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