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quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Fé, verdade e cultura (2/8)

Fé, verdade e cultura (Presbíteros)

Fé, verdade e cultura

Por Joseph Ratzinger

1. AS PALAVRAS, A PALAVRA E A VERDADE

Num livro de sucesso publicado nos anos quarenta, Cartas do diabo ao seu sobrinho, o escritor e filósofo C.S. Lewis mostrou magnificamente como não é moderno perguntar pela verdade. O livro compõe-se de cartas fictícias de um demônio superior, Screwtape, que dá lições a um principiante na arte de seduzir o homem, instruindo-o quanto ao modo correto de proceder. O demônio pequeno tinha manifestado aos seus superiores a preocupação de que justamente os homens mais inteligentes poderiam ler os livros dos sábios antigos e descobrir assim os rudimentos da verdade. Screwtape tranquiliza-o esclarecendo que os espíritos infernais felizmente conseguiram persuadir os eruditos do mundo ocidental a aderir ao “ponto de vista histórico”, o que significa que “a única questão que com certeza nunca levantarão é a relativa à verdade do que leram; em vez disso, perguntar-se-ão sobre as repercussões e as influências recíprocas, sobre a evolução do escritor estudado, sobre a história da sua autoridade e outras coisas desse tipo”.

Josef Pieper, que reproduz essa passagem de C.S. Lewis no seu tratado sobre a interpretação, assinala a esse respeito que as edições de Platão ou de Dante, por exemplo, nos países dominados pelo comunismo, antepunham ao texto uma introdução que pretendia proporcionar ao leitor uma compreensão histórica e assim excluir a questão da verdade. Uma cientificidade exercida dessa forma torna os espíritos imunes à verdade. A questão de saber se o que foi dito pelo autor é ou não verdadeiro, e em que medida, seria uma questão “não-científica”; tirar-nos-ia do campo do demonstrável e do verificável e nos faria recair na ingenuidade do mundo pré-crítico. Deste modo, neutraliza-se também a leitura da Bíblia: podemos explicar quando e em que circunstâncias surgiu determinado texto, e assim conseguimos classificá-lo dentro do “histórico”, que no fim das contas não nos afeta.

Por trás desse modo de interpretação histórico, há uma filosofia, uma atitude apriorística ante a realidade, que nos diz: não faz sentido perguntar sobre o que é, só podemos perguntar-nos sobre o que podemos fazer com as coisas. A questão não é a verdade, mas a práxis, o domínio das coisas para nosso proveito. Diante dessa redução aparentemente iluminadora do pensamento humano, surge sem mais a pergunta: e o que é realmente o que nos traz proveito? E para que nos aproveita? Aliás, para que existimos?

O observador profundo verá nessa atitude fundamental moderna uma falsa humildade e, ao mesmo tempo, uma falsa soberba: falsa humildade, porque nega ao homem a capacidade de conhecer a verdade; e falsa soberba, porque esse homem se situa acima das coisas, acima da própria verdade, e – na medida em que erige como meta do seu pensamento a ampliação do seu poder – acima da realidade.

O que em Lewis aparece sob a forma de ironia, podemos encontrá-lo hoje apresentado “cientificamente” na crítica literária, em que a a questão da verdade é abertamente descartada como não-científica. O exegeta alemão Mario Reiser chamou a atenção para uma passagem de Umberto Eco no seu best-seller O nome da rosa, em que diz: “A única verdade consiste em aprender a libertar-se da paixão doentia pela verdade”.

O fundamento para a renúncia inequívoca à verdade estriba no que hoje se denomina o “giro linguístico”: não se poderia remontar para além da linguagem e das suas representações, a razão estaria condicionada pela linguagem e vinculada à linguagem. Já em 1901 F. Mauthner cunhou a seguinte frase: “O que se denomina pensamento é pura linguagem”. M. Reiser comenta, neste contexto, o abandono da convicção de que com meios linguísticos se pode ascender ao que é supralinguístico. O relevante exegeta protestante U. Luz afirma – totalmente de acordo com o que antes dizia Screwtape – que a crítica histórica abdicou na Idade Moderna da questão da verdade, e considera-se obrigado a aceitar e reconhecer como correta essa capitulação: agora já não haveria uma verdade a buscar para além do texto, mas apenas posições sobre a verdade que concorreriam entre si, ofertas de verdade que seria preciso defender com um discurso público no mercado das visões-de-mundo.

Quem medita sobre semelhantes modos de ver as coisas, perceberá que lhe vem quase que inevitavelmente à memória uma passagem profunda do Fedro de Platão. Nela, Sócrates conta a Fedro uma história ouvida dos antigos, que “tinham conhecimento do que é verdadeiro”. Certa vez Thot, o “pai das letras” e o “deus do tempo”, teria visitado o rei egípcio Thamus, de Tebas. Instruiu o soberano em diversas artes que havia inventado, e especialmente na arte de escrever que tinha concebido. Ponderando o seu próprio invento, disse ao rei: “Este conhecimento, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e fortalecerá a sua memória; é o elixir da memória e da sabedoria”. Mas o rei não se deixou impressionar. Previu o contrário como consequência do conhecimento da escrita: “Este método produzirá esquecimento nas almas dos que o aprenderem porque descuidarão o exercício da memória, já que agora, fiando-se da escrita externa, recordarão apenas de uma maneira externa, não a partir do seu próprio interior e de si mesmos. Por conseguinte, tu inventaste um meio, não para recordar, mas para perceber, e transmites aos teus aprendizes apenas a representação da sabedoria, não a própria sabedoria. Pois agora são eruditos em muitas coisas, mas sem verdadeira instrução, e assim pensam ser entendidos em mil coisas quando na realidade não entendem nada, e são gente com quem é difícil tratar, pois não são verdadeiros sábios, mas sábios apenas na aparência”.

Quem pensa no modo como hoje os programas de televisão do mundo inteiro inundam o homem com informações e o tornam assim “sábio na aparência”; quem pensa nas enormes possibilidades do computador e da Internet, que, por exemplo, permitem que qualquer um tenha acesso a todos os textos de um Padre da Igreja e veja as palavras sem no entanto ter compreendido o pensamento, esse não considerará exageradas as prevenções do rei. Platão não rejeita a escrita enquanto tal – como nós também não rejeitamos as novas possibilidades de informação, antes fazemos delas um uso agradecido -, mas dá um sinal de alerta cuja seriedade se comprova diariamente pelas consequências do “giro linguístico” e pelas muitas circunstâncias que são familiares a todos. H. Schade mostra o núcleo daquilo que Platão tem a dizer-nos hoje quando escreve: “É acerca do predomínio de um mero método filológico e da consequente perda da realidade que Platão nos previne”.

Joseph Ratzinger

Fonte: Site interrogantes.net

Link: http://www.interogantes.net

Tradução: Quadrante

https://presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF