Translate

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Fé, verdade e cultura (3/8)

Fé, verdade e cultura (Presbíteros)

Fé, verdade e cultura

Por Joseph Ratzinger

Quando a escrita, o escrito, é convertido em barreira que oculta o conteúdo, transforma-se numa antiarte, que não torna o homem mais sábio, mas o leva a extraviar-se numa sabedoria falsa e doente. Por isso, em face do “giro linguístico”, A. Kreiner adverte com razão: “O abandono da convicção de que se pode remeter com meios linguísticos a conteúdos extralinguísticos equivale ao abandono de um discurso que de algum modo ainda estava cheio de sentido”. E sobre esta mesma questão João Paulo II comenta na Encíclica Fides et ratio: “A interpretação desta Palavra (a de Deus) não pode levar-nos de interpretação em interpretação, sem nunca chegarmos a descobrir uma afirmação simplesmente verdadeira”. O homem não está aprisionado na sala de espelhos das interpretações; pode e deve buscar o acesso ao real, que está além das palavras e se lhe revela nas palavras e através delas.

Aqui chegamos ao ponto central da discussão da Fé cristã com determinado tipo de cultura moderna, que gostaria de ser considerada como a cultura moderna sem mais, mas que, felizmente, é apenas uma variedade desta. Isto fica muito claro, por exemplo, na crítica que o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais fez à Encíclica Fides et ratio.

Como a Encíclica insiste na necessidade da questão da verdade, comenta esse pensador que “a cultura católica oficial (isto é, a Encíclica) já não tem nada que dizer à cultura «enquanto cultura»…”. Mas isso significa também que a pergunta pela verdade estaria fora da cultura “enquanto cultura”. Nesse caso, porém, essa tal cultura “enquanto cultura” não seria antes uma anticultura? E não seria a sua presunção de ser “a cultura sem mais” uma presunção arrogante e que despreza o ser humano?

Fica evidente que é exatamente disso que se trata quando Flores d’Arcais acusa a Encíclica de ter conseqüências mortíferas para a democracia e identifica o seu ensinamento com o tipo “fundamentalista” do Islã. Comentando o fato de o Papa ter qualificado como carentes de validade autenticamente jurídica as leis que permitem o aborto e a eutanásia, argumenta: quem se opusesse dessa forma a um Parlamento eleito e tentasse exercer o poder secular com uma máscara eclesial, mostraria que o selo do dogmatismo católico permanecerá essencialmente estampado no seu pensamento.

Semelhantes afirmações pressupõem que não pode haver nenhuma instância acima das decisões da maioria. A maioria conjuntural converte-se num absoluto. Porque, de fato, volta-se a cair num absoluto, algo inapelável. Estamos expostos ao domínio do positivismo e à absolutização do conjuntural, do manipulável. Se o homem se põe fora da verdade, necessariamente passa a estar submetido ao conjuntural, ao arbitrário. Por isso, não é “fundamentalismo”, e sim um dever de humanidade proteger o homem contra a ditadura do conjuntural convertido em absoluto e devolver-lhe a sua dignidade, que consiste justamente em que nenhuma instância humana pode dominá-lo porque está aberto à própria verdade. Precisamente pela sua insistência na capacidade do homem para a verdade, a Encíclica é uma apologia sumamente necessária da grandeza do homem contra tudo o que pretende apresentar-se como a cultura tout court.

Naturalmente, é difícil voltar a dar carta de cidadania à questão da verdade no debate público, por causa do cânon metodológico que hoje se impôs como selo de garantia de cientificidade. Por isso é necessário um debate fundamental sobre a essência da Ciência, sobre a verdade e o método, sobre a tarefa que cabe à Filosofia e sobre os possíveis caminhos que ela pode trilhar.

O Papa não considerou que era tarefa sua tratar na Encíclica da questão – totalmente prática – de se a verdade pode chegar a ser novamente científica, e como. Mas mostra por que devemos acometer essa tarefa. Não quis realizar ele mesmo a tarefa dos filósofos, mas cumpriu a tarefa de denunciar e advertir-nos contra aquilo que é uma tendência autodestrutiva da “cultura enquanto tal”. Aliás, justamente essa chamada de atenção é um ato autenticamente filosófico, que revive no presente a origem socrática da Filosofia e com isso mostra a potência filosófica contida na Fé bíblica.

Opõe-se à essência da Filosofia um certo tipo de cientificidade que barra o caminho para a questão da verdade, ou mesmo a torna impossível. Essa autoclausura, esse apoucamento da razão não pode ser a norma da Filosofia, nem a Ciência como um todo pode tornar impossíveis as perguntas que são próprias do homem, sem as quais a própria Ciência converte-se num ativismo vazio e, no fim das contas, perigoso. O papel da Filosofia não é o de submeter-se a um cânon metodológico qualquer, por ser ele legítimo para certos setores do pensamento. Sua tarefa tem de ser justamente a de pensar a cientificidade como um todo, conceber criticamente a sua essência e – de maneira racionalmente responsável – ir mais além, rumo àquilo que lhe dá sentido.

A Filosofia tem de perguntar-se sempre sobre o homem, e portanto questionar-se sempre sobre a vida, sobre a morte, sobre Deus e sobre a eternidade. Para isso, terá de servir-se hoje, antes de mais nada, dos becos sem saída aos quais chega aquele tipo de cientificidade que afasta o homem de tais questões. E partindo dessas aporias – que a nossa sociedade põe à mostra – tentar sempre abrir novamente o caminho rumo ao que é necessário, e rumo àquilo que se faz necessário.

Na história da Filosofia moderna não faltaram tentativas como essa – também hoje em dia há suficientes ensaios promissores -, visando abrir outra vez a porta para a questão da verdade: uma porta para além da linguagem que gira sobre si mesma. Nesse sentido, a chamada da Encíclica é sem dúvida crítica para com a nossa situação cultural atual, mas ao mesmo tempo está em profunda união com os elementos essenciais do esforço intelectual da Idade Moderna.

A confiança em buscar a verdade e encontrá-la nunca é anacrônica. É justamente essa confiança que mantém o homem na sua dignidade, que rompe os particularismos e une as pessoas – ultrapassando os limites culturais -, em virtude da sua comum dignidade.

Joseph Ratzinger

Fonte: Site interrogantes.net

Link: http://www.interogantes.net

Tradução: Quadrante

https://presbiteros.org.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF