Fé, verdade e cultura
Por Joseph Ratzinger
Quando a escrita, o escrito, é convertido em barreira que oculta o
conteúdo, transforma-se numa antiarte, que não torna o homem mais sábio, mas o
leva a extraviar-se numa sabedoria falsa e doente. Por isso, em face do “giro linguístico”,
A. Kreiner adverte com razão: “O abandono da convicção de que se pode remeter
com meios linguísticos a conteúdos extralinguísticos equivale ao abandono de um
discurso que de algum modo ainda estava cheio de sentido”. E sobre esta mesma
questão João Paulo II comenta na Encíclica Fides et ratio: “A interpretação
desta Palavra (a de Deus) não pode levar-nos de interpretação em interpretação,
sem nunca chegarmos a descobrir uma afirmação simplesmente verdadeira”. O homem
não está aprisionado na sala de espelhos das interpretações; pode e deve buscar
o acesso ao real, que está além das palavras e se lhe revela nas palavras e
através delas.
Aqui chegamos ao ponto central da discussão da Fé cristã com determinado
tipo de cultura moderna, que gostaria de ser considerada como a cultura moderna
sem mais, mas que, felizmente, é apenas uma variedade desta. Isto fica muito
claro, por exemplo, na crítica que o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais
fez à Encíclica Fides et ratio.
Como a Encíclica insiste na necessidade da questão da verdade, comenta
esse pensador que “a cultura católica oficial (isto é, a Encíclica) já não tem
nada que dizer à cultura «enquanto cultura»…”. Mas isso significa também que a
pergunta pela verdade estaria fora da cultura “enquanto cultura”. Nesse caso,
porém, essa tal cultura “enquanto cultura” não seria antes uma anticultura? E
não seria a sua presunção de ser “a cultura sem mais” uma presunção arrogante e
que despreza o ser humano?
Fica evidente que é exatamente disso que se trata quando Flores d’Arcais
acusa a Encíclica de ter conseqüências mortíferas para a democracia e
identifica o seu ensinamento com o tipo “fundamentalista” do Islã. Comentando o
fato de o Papa ter qualificado como carentes de validade autenticamente
jurídica as leis que permitem o aborto e a eutanásia, argumenta: quem se
opusesse dessa forma a um Parlamento eleito e tentasse exercer o poder secular
com uma máscara eclesial, mostraria que o selo do dogmatismo católico
permanecerá essencialmente estampado no seu pensamento.
Semelhantes afirmações pressupõem que não pode haver nenhuma instância
acima das decisões da maioria. A maioria conjuntural converte-se num absoluto.
Porque, de fato, volta-se a cair num absoluto, algo inapelável. Estamos
expostos ao domínio do positivismo e à absolutização do conjuntural, do
manipulável. Se o homem se põe fora da verdade, necessariamente passa a estar
submetido ao conjuntural, ao arbitrário. Por isso, não é “fundamentalismo”, e
sim um dever de humanidade proteger o homem contra a ditadura do conjuntural
convertido em absoluto e devolver-lhe a sua dignidade, que consiste justamente
em que nenhuma instância humana pode dominá-lo porque está aberto à própria
verdade. Precisamente pela sua insistência na capacidade do homem para a
verdade, a Encíclica é uma apologia sumamente necessária da grandeza do homem
contra tudo o que pretende apresentar-se como a cultura tout court.
Naturalmente, é difícil voltar a dar carta de cidadania à questão da
verdade no debate público, por causa do cânon metodológico que hoje se impôs
como selo de garantia de cientificidade. Por isso é necessário um debate
fundamental sobre a essência da Ciência, sobre a verdade e o método, sobre a
tarefa que cabe à Filosofia e sobre os possíveis caminhos que ela pode trilhar.
O Papa não considerou que era tarefa sua tratar na Encíclica da questão
– totalmente prática – de se a verdade pode chegar a ser novamente científica,
e como. Mas mostra por que devemos acometer essa tarefa. Não quis realizar ele
mesmo a tarefa dos filósofos, mas cumpriu a tarefa de denunciar e advertir-nos
contra aquilo que é uma tendência autodestrutiva da “cultura enquanto tal”.
Aliás, justamente essa chamada de atenção é um ato autenticamente filosófico,
que revive no presente a origem socrática da Filosofia e com isso mostra a
potência filosófica contida na Fé bíblica.
Opõe-se à essência da Filosofia um certo tipo de cientificidade que
barra o caminho para a questão da verdade, ou mesmo a torna impossível. Essa
autoclausura, esse apoucamento da razão não pode ser a norma da Filosofia, nem
a Ciência como um todo pode tornar impossíveis as perguntas que são próprias do
homem, sem as quais a própria Ciência converte-se num ativismo vazio e, no fim
das contas, perigoso. O papel da Filosofia não é o de submeter-se a um cânon
metodológico qualquer, por ser ele legítimo para certos setores do pensamento.
Sua tarefa tem de ser justamente a de pensar a cientificidade como um todo,
conceber criticamente a sua essência e – de maneira racionalmente responsável –
ir mais além, rumo àquilo que lhe dá sentido.
A Filosofia tem de perguntar-se sempre sobre o homem, e portanto
questionar-se sempre sobre a vida, sobre a morte, sobre Deus e sobre a
eternidade. Para isso, terá de servir-se hoje, antes de mais nada, dos becos
sem saída aos quais chega aquele tipo de cientificidade que afasta o homem de
tais questões. E partindo dessas aporias – que a nossa sociedade põe à mostra –
tentar sempre abrir novamente o caminho rumo ao que é necessário, e rumo àquilo
que se faz necessário.
Na história da Filosofia moderna não faltaram tentativas como essa –
também hoje em dia há suficientes ensaios promissores -, visando abrir outra
vez a porta para a questão da verdade: uma porta para além da linguagem que
gira sobre si mesma. Nesse sentido, a chamada da Encíclica é sem dúvida crítica
para com a nossa situação cultural atual, mas ao mesmo tempo está em profunda
união com os elementos essenciais do esforço intelectual da Idade Moderna.
A confiança em buscar a verdade e encontrá-la nunca é anacrônica. É
justamente essa confiança que mantém o homem na sua dignidade, que rompe os
particularismos e une as pessoas – ultrapassando os limites culturais -, em
virtude da sua comum dignidade.
Joseph Ratzinger
Fonte: Site interrogantes.net
Link: http://www.interogantes.net
Tradução: Quadrante
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