Fé, verdade e cultura
Por Joseph Ratzinger
2. CULTURA
E VERDADE
a) A essência da Cultura
Tratamos até aqui do debate entre a Fé cristã que a Encíclica expressa e
um tipo concreto de cultura moderna; por isso as nossas reflexões deixaram
entre parênteses o lado técnico-científico da Cultura: o olhar dirigiu-se ao
que se relaciona com as ciências humanas na nossa cultura. Não seria difícil
mostrar que a sua desorientação quanto à questão da verdade (que acabou por
converter-se em ira contra esse tema) reside, em última análise, na pretensão
de se alcançar o mesmo cânon metodológico, o mesmo tipo de segurança, que se dá
no campo empírico.
A renúncia metodológica praticada pela ciência natural, que a leva a
ater-se ao que pode ser verificado, converte-se em credencial da
cientificidade; mais ainda: converte-se na própria racionalidade. Essa redução
metodológica, cheia de sentido – aliás, necessária – no âmbito da ciência
empírica, converte-se assim num muro para a questão da verdade. No fundo,
trata-se do problema da verdade e do método, da universalidade de um cânon
metodológico estritamente empírico. Em face desse cânon, o Papa defende a multiplicidade
de caminhos do espírito humano, a amplitude da racionalidade, que precisa
conhecer diversos métodos conforme a índole do objeto. O que é imaterial não
pode ser abordado com os métodos que correspondem ao que é material. Assim
poderia ser resumida, em grandes traços, a denúncia do Papa contra uma forma
unilateral de racionalidade.
O debate com a cultura moderna, o debate acerca da verdade e do método,
é a primeira fibra do tecido da Encíclica. Mas a questão acerca da verdade da
cultura apresenta-se ainda sob outro aspecto, que substancialmente remete-se ao
âmbito propriamente religioso. Hoje, contrapõe-se de bom grado a relatividade
das culturas à pretensão universal do cristão, fundamentada na universalidade
da verdade. O tema ressoa já no século XVIII em Gotthold Ephraim Lessing, que
apresenta as três grandes religiões na parábola dos três anéis, dos quais um
tem que ser o autêntico, mas cuja autenticidade já não é verificável. A questão
da verdade é insolúvel e é substituída pela questão do efeito curativo e
purificador da religião.
Logo no início do século XX, Ernst Troeltsch refletiu expressamente
sobre a questão da religião e da cultura, da verdade e da cultura. No princípio
ainda considerava o Cristianismo como a revelação completa da religiosidade
personalista, como a única ruptura completa com os limites e as condições da
religião natural. Mas, no decorrer do seu caminho intelectual, a determinação
cultural da religião foi fechando-lhe cada vez mais o olhar para a verdade e
subordinando todas as religiões à relatividade das culturas. No final, a
validez do Cristianismo converte-se num assunto europeu: para ele o
Cristianismo seria a forma de religião adequada à Europa, enquanto atribui ao
budismo e ao bramanismo uma autonomia absoluta. Na prática elimina-se a questão
da verdade, e os limites entre as culturas tornam-se intransponíveis.
Por isso, uma Encíclica toda dedicada à aventura da verdade deveria
também colocar a questão da relação entre verdade e cultura. Deveria perguntar
se pode dar-se uma comunhão das culturas numa única verdade, se a verdade pode
ser decidida para todos os homens, transcendendo as diversas formas culturais,
ou se afinal teríamos que pressenti-la apenas assintoticamente, em meio a
formas culturais diversas e até opostas.
A um conceito estático de cultura que pressupõe formas culturais fixas –
que afinal só convivem umas com as outras, sem que haja comunicação entre elas
-, o Papa opôs, na Encíclica, uma compreensão dinâmica e comunicativa da
cultura. E ressalta que as culturas, “quando estão profundamente enraizadas no
humano, trazem consigo o testemunho da abertura típica do homem ao universal e
à transcendência”. Por isso as culturas – que são expressões do único ser do
homem – estão caracterizadas pela dinâmica do homem, que transcende todos os
limites: não estão fixadas numa dada forma de uma vez para sempre. Têm a
capacidade de progredir e de transformar-se, e também o perigo da decadência.
Estão voltadas para o encontro e para a fecundação mútua.
Quanto maiores e mais genuínas são as culturas, mais impregnadas estão
da abertura interior do homem a Deus: trazem impressa uma predisposição para a
revelação de Deus. A Revelação não lhes é estranha. Responde a uma espera
interior presente nas próprias culturas. A propósito disso, Theodor Haecker
falou do caráter de “advento” das culturas pré-cristãs, e são muitas as
pesquisas de História das Religiões que puderam mostrar de maneira concreta
essa alusão das culturas ao Logos de Deus, encarnado em Jesus Cristo.
Tendo isso em vista, o Papa vale-se da lista de nações contida no relato
pascal dos Atos dos Apóstolos (2, 7-14), onde nos é narrado como o testemunho
da Fé em Cristo é perceptível e comunicável mediante todas as línguas, e em
todas as línguas, isto é, em todas as culturas das quais a língua é expressão.
Em todas elas, a palavra humana faz-se portadora do falar próprio de Deus, do
seu próprio Logos. E a Encíclica acrescenta: “O anúncio do Evangelho nas
diversas culturas, embora exija a fé de cada destinatário, não o impede de
conservar uma identidade cultural própria. Isso não cria nenhuma divisão,
porque o povo dos batizados caracteriza-se por uma universalidade que sabe
acolher cada cultura, favorecendo o progresso daquilo que nela está implícito,
rumo à sua plena explicitação na verdade”.
A partir disso – e no que diz respeito às relações entre a Fé cristã e
as culturas pré-cristãs em geral – o Papa, tomando o caso da cultura indiana,
desenvolve de modo exemplar os princípios que devem ser observados no encontro
dessas culturas com a Fé. Em primeiro lugar, chama brevemente a atenção para o
grande auge espiritual do pensamento indiano, que luta por libertar o espírito
das condições espaço-temporais, exercitando assim a abertura metafísica do
homem, que depois haveria de receber uma configuração especulativa em
importantes sistemas filosóficos.
Com essas indicações, o Papa põe em evidência a tendência universal das
grandes culturas, a sua superação do tempo e do espaço, e também o seu avanço
na direção do ser do homem e das suas supremas possibilidades. Aqui reside a
capacidade de diálogo entre as culturas, neste caso entre a cultura indiana e
as que cresceram no âmbito da Fé cristã.
O primeiro critério infere-se espontaneamente, por assim dizer, no
próprio contato interior com a cultura indiana: consiste na “universalidade do
espírito humano, cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais diversas
culturas”.
Dele se segue um segundo critério: “Quando a Igreja entra em contato com
grandes culturas a que antes não tinha chegado, não pode esquecer o que
adquiriu quando da sua inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar essa
herança seria ir contra o desígnio providencial de Deus…”
Finalmente a Encíclica aponta um terceiro critério, decorrente das
reflexões anteriores sobre a essência da cultura: “Deve-se evitar confundir a
legítima reivindicação do que há de específico e original no pensamento indiano
com a idéia de que uma tradição cultural deva encerrar-se na sua diferença e
afirmar-se na sua oposição às demais tradições. Isso seria contrário à própria
natureza do espírito humano”.
Joseph Ratzinger
Fonte: Site interrogantes.net
Link: http://www.interogantes.net
Tradução: Quadrante
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