Fé, verdade e cultura
Por Joseph Ratzinger
b) A superação das culturas na Bíblia e na história da Fé
Tendo o Papa insistido no caráter irrenunciável da herança cultural
forjada no passado, que chegou a ser um veículo para a verdade comum de Deus e
do homem, surge então espontaneamente a questão de se isso não seria canonizar
um eurocentrismo da Fé. Um eurocentrismo que não parece ter sido superado pelo
fato de que, ao longo da História, possam introduzir-se – ou já se tenham
introduzido – novas heranças na identidade da fé constante que afeta a todos.
É uma questão que não se pode evitar. Até que ponto a Fé é grega ou
latina, tendo aliás surgido não no mundo greco-latino, mas no mundo semita do
antigo Oriente, onde estavam e estão em contato a Ásia, a África e a Europa? A
Encíclica assume uma posição sobre isso, especialmente no seu segundo capítulo,
em que trata do desenvolvimento do pensamento filosófico no interior da Bíblia,
e no quarto capítulo, ao apresentar o encontro decisivo dessa sabedoria da
razão cultivada na Fé com a sabedoria grega da Filosofia. Gostaria de
acrescentar o seguinte:
Um variado acervo de pensamento religioso e filosófico, a partir de
mundos culturais diversos, já está elaborado na Bíblia. A Palavra de Deus
desenvolve-se num processo de encontros com a busca humana por respostas às
suas perguntas últimas. Essa Palavra não é algo caído do céu como um meteorito:
é precisamente uma síntese de culturas. Vista com mais profundidade, permite
reconhecer um processo no qual Deus luta com o homem, fazendo com que este se
vá abrindo lentamente à sua Palavra mais profunda, a Si próprio: ao Filho, que
é o Logos.
A Bíblia não é a mera expressão da cultura do povo de Israel. Está, pelo
contrário, continuamente em disputa com a intenção – totalmente natural desse
povo – de ser ele próprio e de instalar-se na sua própria cultura. A Fé em Deus
e o sim à sua vontade vão-lhe continuamente desarraigando as representações e
aspirações próprias. Deus enfrenta-se continuamente com a religiosidade
peculiar a Israel e com a sua cultura religiosa, que queria expressar-se no
culto dos lugares altos, à deusa celeste e na pretensão de poder da própria
monarquia.
Começando pela cólera de Deus e de Moisés contra o culto do bezerro de
ouro no Sinai e até os últimos profetas depois do Exílio, tudo sempre concorre
para que Israel desprenda-se da sua própria identidade cultural, abandone, por
assim dizer, o culto à própria nacionalidade, o culto à raça e à terra, para
inclinar-se diante do Deus totalmente outro, de Quem não podem apropriar-se, do
Deus que criou o Céu e a Terra, e que é Deus de todos os povos.
A Fé de Israel significa uma permanente autossuperação da própria
cultura na abertura no horizonte da verdade comum. Os livros do Antigo
Testamento podem parecer, sob muitos pontos de vista, menos piedosos, menos
poéticos, menos inspirados do que certas passagens mais importantes dos livros
sagrados de outros povos. Mas em troca têm sua singularidade na índole
combativa da Fé contra aquilo que é próprio, nesse desarraigamento daquilo que
é próprio, iniciado com a peregrinação de Abraão.
A libertação da Lei que São Paulo alcança pelo seu encontro com Jesus
Cristo ressuscitado conduz essa orientação fundamental do Antigo Testamento à
sua conseqüência lógica: a plena universalização dessa Fé, separada da ordem
nacional. Agora todos os povos são convidados a ingressar nesse processo de
superação daquilo que é próprio, começado em primeiro lugar em Israel. Todos
são convidados a se converterem a Deus, que se despojando de Si mesmo em Jesus
Cristo derrubou o “muro de inimizade” que havia entre nós (cfr. Ef 2, 14) e nos
congrega a todos na auto-entrega da Cruz.
Desse modo, a Fé em Jesus Cristo é na sua essência um permanente
abrir-se, uma irrupção de Deus no mundo humano com a correspondente abertura do
homem para Deus, que ao mesmo tempo congrega os homens. Tudo o que é próprio
pertence agora a todos, e tudo o que é alheio chega a ser, ao mesmo tempo, algo
próprio. E tudo abarcado pela palavra do pai ao filho mais velho: Tudo o que é
meu é teu (Lc 15, 31), que torna a aparecer na oração sacerdotal de Jesus como
modo de o Filho dirigir-se ao Pai: Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é meu é
teu” (Jo 17, 10).
Esse padrão determina também o encontro da mensagem revelada com a
cultura grega, que por certo não começa apenas com a evangelização cristã: já
se desenvolvera dentro dos escritos do Antigo Testamento – sobretudo mediante a
sua tradução ao grego -, e a partir de então no judaísmo primitivo. Esse
encontro era possível, porque já fora aberto o caminho no mundo grego para um
acontecimento de autotranscendência como esse. Os Padres da Igreja não verteram
sem mais no Evangelho uma cultura grega que se mantinha em si e por si mesma:
puderam assumir o diálogo com a filosofia grega e convertê-la em instrumento do
Evangelho justamente porque nesse mundo grego já se tinha iniciado, mediante a
busca de Deus, uma autocrítica da própria cultura e do próprio pensamento.
A Fé une os diversos povos – começando pelos germanos e pelos eslavos,
que na época das invasões bárbaras tomaram contato com a mensagem cristã, até
os povos da Ásia, da África e da América – não à cultura grega como tal, mas à
sua autossuperação, que era o verdadeiro ponto de contato para a interpretação
da mensagem cristã. A partir daí a Fé os introduz na dinâmica da sua autossuperação.
Richard Schäffler disse recentemente, e de modo certeiro, que a pregação
cristã desde o princípio exigiu dos povos da Europa (que aliás nem existia
antes da evangelização cristã) “a renúncia a todos os seus respectivos «deuses»
autóctones, muito antes de entrarem em seu campo de visão as culturas
extra-europeias”. É a partir daí que se deve entender por que a pregação cristã
entrou em contato com a filosofia, e não com as religiões. Rapidamente caíram
em desuso as tentativas de, por exemplo, interpretar Cristo como sendo o
verdadeiro Dionísio, Esculápio ou Hércules. O fato de se ter entrado em contato
com a filosofia, e não com as religiões, tem a ver com que não se tenha
canonizado uma cultura, e sim se pôde entrar nela justamente no ponto onde ela
já havia começado a sair de si mesma: por onde tinha começado ela mesma a sair
de si, por onde tinha iniciado o caminho de abertura à verdade comum, deixando
atrás a instalação no que lhe era meramente próprio. Isso constitui também hoje
uma indicação fundamental para a questão dos contatos e transferências a outros
povos e culturas.
A Fé não pode sintonizar com filosofias que excluam a questão da verdade,
mas sintoniza, sim, com movimentos que se esforçam por sair do cárcere do
relativismo. Da mesma forma, não pode integrar diretamente as antigas
religiões. No entanto, as religiões podem proporcionar-lhe formas e imagens de
diverso tipo, mas sobretudo atitudes, como o respeito, a humildade, a
abnegação, a bondade, o amor ao próximo, a esperança na vida eterna. Isto
parece-me – seja dito entre parênteses – ser importante também para a questão
do significado salvífico das religiões. Não salvam, por assim dizer, na medida
em que são sistemas fechados e pela fidelidade a esses sistemas, mas colaboram
com a salvação na medida em que levam os homens a “perguntar-se por Deus” (como
diz o Antigo Testamento), a “buscar o seu rosto”, a “buscar o Reino de Deus e a
sua justiça”.
Joseph Ratzinger
Fonte: Site interrogantes.net
Link: http://www.interogantes.net
Tradução: Quadrante
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