Fé, verdade e cultura
Por Joseph Ratzinger
a) A diferença entre as religiões e seus perigos
Temos que conformar-nos com isso? É inevitável a alternativa entre o
rigorismo dogmático e o relativismo humanitário? Penso que as teorias aqui
analisadas não pensaram suficientemente três coisas. Em primeiro lugar, as
religiões (e agora também o agnosticismo e o ateísmo) são consideradas iguais.
Mas com certeza isto não é assim. Com efeito, há formas de religião degeneradas
e doentias, que não elevam o homem, mas o alienam: a crítica marxista da
religião não carecia totalmente de base. Também as religiões com uma certa
grandeza moral, e que estão a caminho da verdade, podem estar doentes em alguns
pontos. No hinduísmo (que mais propriamente é um nome coletivo para diversas
religiões), há elementos grandiosos, mas também aspectos negativos: por exemplo
o entrelaçamento com o sistema de castas, a prática da queima de viúvas – que
se formou a partir de representações inicialmente simbólicas -, bem como as
aberrações do shaktismo (*), para mencionar apenas uns poucos exemplos.
Também o Islã, com toda a grandeza que representa, está continuamente exposto
ao perigo de perder o equilíbrio, de dar espaço à violência e deixar que a
religião deslize para o ritualismo externo.
E naturalmente há também, como todos nós bem sabemos, formas doentias no
cristianismo. Assim aconteceu quando os cruzados, na conquista da cidade santa
de Jerusalém, em que Cristo morreu por todos os homens, mergulharam muçulmanos
e judeus num banho de sangue. Isto significa que a religião exige
discernimento, discernimento em relação às formas das religiões e discernimento
no interior da própria religião, conforme o seu próprio nível.
Com o indiferentismo quanto aos conteúdos e às idéias – todas as
religiões, embora distintas, seriam iguais -, não se pode avançar. O
relativismo é perigoso, tanto para a formação do ser humano individualmente
como em comunidade. A renúncia à verdade não cura o homem. Não se pode esquecer
o enorme mal que se fez na História em nome de opiniões e intenções boas.
b) A questão da salvação
Tocamos já o segundo ponto costumeiramente deixado de lado.
Surpreendentemente, quando se fala do significado salvífico das religiões,
pensa-se, na maioria das vezes, apenas em que todas possibilitariam a vida
eterna, o que acaba neutralizando o pensamento da vida eterna, pois todo o
mundo chegaria a ela de uma forma ou de outra. Contudo, isso rebaixa de maneira
inconveniente a questão da salvação.
O céu começa na terra. A salvação no além pressupõe uma vida
correspondente no aquém. Não podemos, pois, perguntar-nos apenas quem vai para
o céu e desentender-nos simultaneamente da questão do céu. É necessário
perguntar o que é o céu e como vem à terra. A salvação do além deve refletir-se
numa forma de vida que torne o homem humano no aquém, isto é, neste mundo, e
portanto conforme com a vontade de Deus. Uma vez mais, isto significa que, na
questão da salvação, é preciso olhar para além das próprias religiões, para um
horizonte ao qual pertencem as regras de uma vida reta e justa, regras que não
podem ser relativizadas arbitrariamente. Eu diria, pois, que a salvação começa
com a vida reta e justa do homem neste mundo, que abarca sempre os dois polos:
o indivíduo e a comunidade.
Há formas de comportamento que nunca podem servir para tornar reto e
justo o homem, e outras que sempre pertencem ao ser reto e justo do homem. Isto
significa que a salvação não está nas religiões como tais, mas depende também
de até que ponto elas levam os homens à Deus, à verdade e ao bem. Por isso, a
questão da salvação traz sempre consigo um elemento de crítica religiosa,
embora também possa aliar-se positivamente com as religiões. Em qualquer caso,
tem a ver com a unidade do bem, com a unidade do verdadeiro, com a unidade de
Deus e do homem.
c) A consciência e a capacidade do homem para a verdade
A unidade do homem tem um órgão: a consciência. Foi uma ousadia de São
Paulo afirmar que todos os homens têm a capacidade de escutar a sua
consciência, separando assim a questão da salvação da questão do conhecimento e
da observância da Torah, e situando-a no terreno da comum exigência interior em
que o Deus único fala e diz a cada um o que é verdadeiramente essencial na Lei:
Quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente as prescrições da lei,
sem ter lei são lei para si mesmos, demonstrando que têm a realidade dessa lei
escrita no seu coração, segundo o testemunho da sua consciência… (Rom 2, 14 e
segs.). Paulo não diz: “Se os gentios se mantiverem firmes na sua religião,
isso é bom diante do juízo de Deus”. Pelo contrário, ele condena grande parte
das práticas religiosas do seu tempo. Remete para outra fonte, para aquela que
todos trazem escrita no coração, para o único bem do único Deus.
Enfrentam-se hoje dois conceitos contrários de consciência neste ponto,
que na maioria das vezes simplesmente se intrometem um no outro. Para Paulo, a
consciência é o órgão da transparência do único Deus em todos os homens, que
são um só homem. Mas, atualmente, a consciência aparece como expressão do
caráter absoluto do sujeito, acima do qual não poderia haver, no campo moral,
nenhuma instância superior. O bem como tal não seria cognoscível. O Deus único
não seria cognoscível. No que diz respeito à moral e à religião, a última
instância seria o sujeito. Isso seria lógico, se a verdade como tal fosse
inacessível.
Assim, o conceito moderno de consciência equivale à canonização do
relativismo, da impossibilidade de haver normas morais e religiosas comuns, ao
passo que, pelo contrário, para Paulo e para a tradição cristã, a consciência
sempre foi a garantia da unidade do ser humano e da cognoscibilidade de Deus, e
portanto da obrigatoriedade comum de um mesmo e único bem. O fato de em todos
os tempos ter havido e haver santos pagãos baseia-se em que em todos os lugares
e em todos os tempos – embora muitas vezes com grande esforço e apenas
parcialmente – a voz do coração era perceptível; a Torah de Deus se nos fazia
perceptível como obrigação dentro de nós mesmos, no nosso ser criatural, e
desse modo tornava possível que superássemos a mera subjetividade na relação de
uns com os outros e na relação com Deus. E isto é a salvação.
Resta saber o que Deus faz com os pobres fragmentos do nosso caminho
rumo ao Bem, rumo a Ele mesmo e ao Seu mistério: um caminho que não deveríamos
pretender controlar.
(*) Conjunto de crenças dentro do tantrismo –
movimento filosófico e ritualístico que influenciou diversas seitas hinduístas,
budistas etc. – que preconiza a realização espiritual por meio de práticas
densamente simbolistas, que em alguns casos abrangem a magia negra, o culto à
morte e práticas sexuais orgiásticas (N. do T.)
Joseph Ratzinger
Fonte: Site interrogantes.net
Link: http://www.interogantes.net
Tradução: Quadrante
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