Hoje, dia 28 de dezembro, a Igreja celebra a Festa
dos Santos Inocentes: essas bem-aventuradas crianças, as primeiras a participar
dos sofrimentos de Cristo, e que estariam também entre as primeiras a se
beneficiar dos méritos infinitos de sua gloriosa Paixão e a reinar junto d’Ele
na Pátria celeste.
Redação (28/12/2022 08:56, Gaudium
Press) Até a entrada de Nabucodonosor, rei da
Babilônia, que devastou a cidade de Jerusalém e levou a população para o
cativeiro, houve sempre um filho de Davi, da linhagem bendita de Judá, sentado
no legítimo trono de seu pai.
Quando, passados setenta anos deste doloroso
exílio, o grande Ciro da Pérsia conquistou a Babilônia, emitiu um decreto
autorizando a volta dos israelitas para sua pátria (cf. Es 1, 2-4). Muitos
destes, então, dentre os quais um numeroso contingente de sacerdotes e levitas,
empreenderam a viagem de retorno a Jerusalém (cf. Es 2, 1-67).
Os filhos de Levi governam o Povo Eleito
Com efeito, apesar de estar o país ainda sujeito a
soberanos estrangeiros — primeiro os persas, depois os gregos — os verdadeiros
detentores do poder passaram a ser os sumos sacerdotes, assistidos por um
conselho de anciãos, constituído por uma aristocracia que, por sua vez, era
sacerdotal em sua maioria.
No século II a.C., quando subiu ao trono da Síria
Antíoco IV Epífanes — um “homem vil” (Dn 11, 21), verdadeira “raiz de pecado”
(I Mac 1, 11) —, desencadeou-se uma furiosa perseguição contra a religião de
Israel.
Insurgiram-se contra o selêucida os Macabeus, de
linhagem sacerdotal, obtendo grandes vitórias e adquirindo para a nação judaica
um poder e uma glória comparáveis aos dos tempos antigos.
Muitos israelitas julgaram ver nesse triunfo um
sinal claro da mão divina, transferindo a realeza davídica para a tribo de
Levi. Assim, os descendentes desses heróis, chamados Hasmoneus, passaram a
ocupar simultaneamente a cátedra do supremo pontificado e o trono real.
Se, muitos séculos antes, fora retirado o cetro à
tribo de Judá, Israel continuava, entretanto, a ser regido por filhos do sangue
de Jacó, sucessores do Patriarca Abraão, herdeiros das promessas de Deus.
Herodes: o rei sanguinário
As circunstâncias mudaram quando, alegando as lutas
fratricidas nascidas no próprio seio da família dos Hasmoneus, Roma interveio
pelas armas e o imperador Marco Antônio outorgou o título de rei dos judeus a
um estrangeiro, detestado pela nação por pertencer ao povo idumeu, inimigo
irreconciliável de Israel: Herodes.
Não tardou o novo monarca em demonstrar serem todas
as suas ações e atos administrativos movidos por orgulhosa cobiça. O ódio e o
desprezo de seus súditos, que sentia pesar sobre si, somados à natural
insegurança de quem é desmedidamente ambicioso, faziam-no temer, em qualquer
pessoa que se sobressaísse por suas qualidades, ou conquistasse a simpatia do
povo, um adversário de seu poder.
Durante os anos de seu longo reinado, ele
desembaraçou-se sem escrúpulos de todos os conspiradores ou daqueles que
simplesmente deitavam sombra sobre sua pessoa. Um a um, os parentes mais
próximos — entre os quais a esposa Mariamne e três filhos — e grande número de
aristocratas da Judeia foram caindo sob os golpes de sua crueldade. Nada
constituía obstáculo para essa vontade feroz, cheia de arrogância e sedenta de
domínio.
O tirano treme diante de uma Criança
Qual não foi o sobressalto desse tirano sanguinário
quando, já velho, amargurado pelo peso dos crimes sem conta que cometera, viu
chegar a Jerusalém uma suntuosa caravana vinda do Oriente e três magos que
perguntavam pelo “rei dos judeus que acabava de nascer” (Mt 2, 2)!
Imediatamente a inquietude e a perturbação se apoderaram de seu coração: julgou
ameaçada a estabilidade de seu trono.
Essa agitação bem traduzia o quanto Deus estava
ausente de suas cogitações e perspectivas, como comenta, com muito acerto, um
piedoso autor: “A alma reta e sincera jamais se perturba, porque possui a Deus.
Onde Deus habita, não há perturbação possível, diz o Espírito Santo. ‘Non in
commotione Dominus’ (I Re 19, 11). Se uma alma chega a experimentar alguma
perturbação, é porque perdeu a Deus e, com Ele, a retidão e a candura. Que
Herodes se perturbasse, não deve nos surpreender; afinal, ele era um usurpador e,
ao ouvir que um rei dos judeus acabava de nascer, certamente temeu vir a perder
tanto o trono quanto a coroa”.
Entretanto, usando da astúcia característica dos
“filhos do século” (Lc 16, 8), Herodes inquiriu dos sacerdotes e dos mestres
das Escrituras qual o lugar apontado pelos profetas como berço do Messias. Uma
vez obtida a resposta, tomou a resolução de matar o recém-nascido.
Fingindo grande piedade, mandou chamar os magos a
fim de indicar-lhes o caminho de Belém, mas, na realidade, almejava servir-se
deles para a realização de suas perversas intenções.
Cego de orgulho, aquele iníquo monarca acreditou
ter poder suficiente para opor-se ao plano divino e mudar, segundo seus
caprichos, aquilo que Deus determinara desde toda a eternidade e anunciara pela
boca de seus mensageiros!
Duas discretas intervenções da Providência divina —
um sonho enviado para alertar os magos e a aparição de um anjo a São José —
bastaram para lançar por terra as hábeis maquinações do tirano.
Este, porém, durante vários dias esperou impaciente
e receoso o retorno daqueles nobres estrangeiros; ao perceber que fora
enganado, deu largas à sua cólera e deliberou perpetrar o crime mais horrendo
de sua vida: para que o pequeno Rei dos judeus não escapasse à sua vingança,
deveriam perecer todos os infantes de Belém e das redondezas.
Martírio dos inocentes
Grande foi a consternação na cidade de Belém. Logo
após ter alcançado a honra de receber o Esperado das nações, suas casas se
encheram de cadáveres e pelas ruas ecoaram os gritos de dor das mães,
misturados aos gemidos das crianças. Cena atroz e pungente: ver os pequeninos
arrancados dos braços maternos e transpassados pelas espadas dos mercenários.
“Por que Cristo agiu assim?”, pergunta-se São Pedro
Crisólogo. Por que abandonou desse modo àqueles que, como Ele, descansavam num
berço, e o inimigo, que procurava só ao rei, causou danos a todos os
soldados?”.
E o próprio santo responde: “Irmãos, Cristo não
abandonou seus soldados, mas deu-lhes melhor sorte, concedeu-lhes triunfar
antes de viver, fê-los alcançar a vitória sem luta alguma, concedeu-lhes as
coroas antes mesmo de seus membros estarem desenvolvidos, quis, por seu poder,
que passassem por cima dos vícios, que possuíssem o Céu antes que a terra”.
Conforme fora profetizado por Davi, os soluços
desses pequenos mártires ressoavam na presença do Altíssimo como cânticos de
glória e, ao mesmo tempo, censuravam o rei ímpio que os condenara: “O perfeito
louvor vos é dado pelos lábios dos mais pequeninos, de crianças que a mãe
amamenta; eis a força que opondes aos maus, reduzindo o inimigo ao silêncio”
(Sl 8, 3).
Seu sangue subia ao Céu como sacrifício puro e
agradável de “cordeiros sem mancha” (cf. Ex 12, 2-5) oferecido em honra do
Divino Infante recém-nascido.
Os meninos que brincavam aos pés de suas mães
deixaram seus inocentes jogos para irem brincar aos pés do trono de Deus!
Desassossego de Herodes e triunfo das crianças
Chama a atenção o antagonismo entre o estado de
espírito de Herodes e o dos Santos Inocentes: de um lado encontramos a figura
de um homem apegado ao poder, cioso de sua autoridade, julgando todos os fatos
sob o prisma de medíocres interesses; no extremo oposto, crianças inocentes,
confiantes e admirativas, incapazes de fazer algum mal.
Depois do seu hediondo crime, Herodes experimenta
em seu interior a tristeza e o desassossego. Nem mesmo após receber a notícia
de terem sido executadas suas ordens, desfrutará ele de alguma tranquilidade,
pois, à aflição constante de perder o trono, somou-se o remorso do infanticídio
cometido a lhe corroer a alma como, em breve, os vermes corroeriam suas carnes.
De maneira bem diversa, os meninos viram-se
elevados à categoria de irmãos de Cristo e príncipes de seu Reino. Ele os amava
e, por isso, os colheu como um botão apenas desabrochando para a vida, para
levá-los à visão beatífica quando abrisse, triunfante, as portas do Céu.
A infância, modelo de inocência
O Verbo Se fez carne e veio ao mundo para operar a
Redenção e, a partir dela, publicar na terra “o ano da graça do Senhor” (Is 61,
2), um novo regime, baseado na caridade e na misericórdia, pelo qual o homem
passou da condição de escravo para a categoria de filho de Deus, tendo por
regra de vida a procura da perfeição, à imagem do Pai Celeste (cf. Mt 5, 48).
Para sermos seus discípulos, não nos manda Jesus
adquirirmos uma ciência erudita, nem mesmo exige a prática de penitências e
austeridades por demais pesadas. Ele propõe, pelo contrário, um modelo
acessível a todos: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e vos
tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18, 3).
Para sermos partícipes de seu Reino e convivas do
banquete eterno, somos chamados a deixar-nos conduzir pela mão de Deus como
crianças dóceis e confiantes, sem opormos resistência à sua santa vontade.
Jesus traz, a cada Natal, o convite para a restauração da inocência e está
pronto a restabelecê-la no coração de quem queira beneficiar-se de sua graça,
já que, por nós mesmos, não temos forças suficientes para nos libertar de
nossos pecados.
Ele mesmo está à nossa espera e dar-Se-nos-á em
recompensa na hora de nossa morte, tornando-nos herdeiros da felicidade sem
fim: “Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus” (Mt 19,
14).
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