Primeira Pregação do Advento 2023 do cardeal Raniero
Cantalamessa
"Jesus não espera que os
pecadores mudem de vida para poder acolhê-los; mas os acolhe, e isso leva os
pecadores a mudar de vida. Todos os quatro Evangelhos – Sinóticos e João – são
unânimes nisso."
Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“VOZ DE QUEM CLAMA NO DESERTO”
João Batista, o moralista e o profeta
Primeira Pregação do Advento de 2023
Na liturgia
do Advento, nota-se uma progressão. Na primeira semana, a figura de destaque é
o profeta Isaías, aquele que anuncia de longe a vinda do Salvador; no segundo e
terceiro domingos, o guia é João Batista, o precursor; na quarta semana, a
atenção se concentra toda em Maria. Este ano, tendo apenas duas meditações à
disposição, pensei dedicá-las aos dois: ao Precursor e à Mãe. Nas iconóstases
dos irmãos Ortodoxos, os dois estão um à direita e o outro à esquerda de Cristo
e, frequentemente, são apresentados como dois “recepcionistas” dos lados da
porta que introduz ao recinto sacro.
João Batista, “profeta e mais que profeta”
Passemos
agora ao segundo papel, ou título, de João Batista. Ele – eu dizia – não é só
um moralista e um pregador de penitência; é também e sobretudo um profeta: “E
tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo” (Lc 1,76). Jesus o define até
mesmo “mais que um profeta” (Lc 7,26).
Em que
sentido, poderíamos nos perguntar, João Batista é um profeta? Onde está a
profecia no seu caso? Os profetas anunciavam uma salvação futura. Mas João
Batista não anuncia uma salvação futura; ele aponta para alguém que está
presente. Em que sentido, então, pode ser chamado de profeta? Isaías, Jeremias,
Ezequiel, ajudavam o povo a superar e ultrapassar a barreira do tempo; João
Battista ajuda o povo a ultrapassar a barreira, ainda mais espessa, das
aparências contrárias. O Messias tão aguardado, aquele anunciado pelos
profetas, prometido nos Salmos, seria, portanto, aquele homem de aparência tão
humilde?
É fácil
crer em algo grandioso, divino, quando nos projetamos em futuro indefinido –
“naqueles dias”, “nos últimos dias”... –, em um quadro cósmico, com os céus que
orvalham doçura e a terra que se abre para fazer brotar o Salvador. Mais
difícil é quando se deve dizer: “Agora! Está aqui! É este!”. O homem é
imediatamente tentado em dizer: “Isso é tudo? “De Nazaré – diziam – pode sair
algo de bom?”. “Este, porém, sabemos de onde é”.
É o
escândalo da humildade de Deus que se revela “sob aparências contrárias”, para
confundir o orgulho e “a vontade de potência” dos homens. Acreditar que o homem
que há pouco viram comer, talvez até bocejar ao despertar, é o Messias, o
aguardado por todos; acreditar que chegamos ao porquê da história: isso
requeria uma coragem profético maior do que a de Isaías. Trata-se de uma tarefa
sobre-humana; compreende-se a grandeza do precursor e porque é definido “mais
que um profeta”.
Todos os
quatro Evangelhos põe em evidência a dúplice veste de João Batista, a de
moralista e a de profeta. Mas, enquanto os Sinóticos insistem mais sobre a
primeira, o Quarto Evangelho insiste mais sobre a segunda. João Batista é o
homem do “Ei-lo!”. “Foi dele que eu disse... Eis o Cordeiro de Deus!” (Jo
1,15.29). Que arrepio deve ter corrido pelo corpo daqueles que, com estas
palavras ou outras semelhantes, receberam por primeiro a revelação. Era como
uma passagem de insígnias: passado e futuro, espera e cumprimento se tocavam.
O que João
Batista nos ensina como profeta? Creio que ele nos tenha deixado de herança a
sua tarefa profética. Ao dizer: “No meio de vós está quem vós não conheceis!”
(Jo 1,26), inaugurou a nova profecia cristã que não consiste em anunciar uma
salvação futura, mas em revelar uma presença escondida, a presença de Cristo no
mundo e na história, em rasgar os véus dos olhos das pessoas, quase gritando,
com as palavras de Isaías: “Ainda não percebeis?” (Is 43,19).
Jesus
disse: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos”. Ele está
em meio a nós; está no mundo e o mundo, também hoje, após dois mil anos, não o
reconhece. Há uma frase de Cristo que tem sempre inquietado os fiéis. “O Filho
do homem, porém, encontrará fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Mas Jesus não fala
aqui da sua vinda no fim do mundo. Nos chamados discursos escatológicos,
frequentemente cruzam duas perspectivas: a da vinda final de Cristo e a da sua
vinda como ressuscitado, glorificado e reivindicado pelo Pai, que Paulo define
a sua vinda “com poder, segundo o Espírito de santidade” (Rm 1,4), em contraste
com a vinda anterior “segundo a carne”. É se referindo a esta vinda segundo o
Espírito, que Jesus pode dizer: “Não passará esta geração até que tudo isso
aconteça” (Mt 24,34).
Por isso,
aquela frase inquietante de Jesus não interpela os nossos descendentes, aqueles
que viverão no momento do seu retorno final como juiz; interpela os nossos
antepassados e interpela os nossos contemporâneos, incluindo nós. Apesar da sua
ressurreição e dos prodígios que acompanharam o início da Igreja, Jesus
encontrou fé entre os seus? Apesar de dois mil anos da sua presença no mundo e
todas as confirmações da história, ainda encontra fé sobre a terra,
especialmente entre os chamados “intelectuais”?
A tarefa
profética da Igreja será a mesma de João Batista, até o fim do mundo: sacudir
cada geração da sua terrível distração e cegueira que impede reconhecer e ver a
luz do mundo. É esta a tarefa perene da evangelização. No tempo de João, o
escândalo derivava do corpo físico de Jesus; da sua carne tão semelhante à
nossa, exceto o pecado. Também hoje é o seu corpo, a sua carne a escandalizar:
o seu corpo místico, a Igreja, tão semelhante ao resto da humanidade, não
excluído nem mesmo o pecado. Como João Batista fez reconhecer Cristo sob a
humildade da carne aos seus contemporâneos, assim é necessário hoje fazê-lo
reconhecer na pobreza e na miséria da Igreja e da nossa própria vida.
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Tradução de
Fr. Ricardo Farias, OFMCap.
Fonte:
https://www.vaticannews.va/pt
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