Segunda Pregação do Advento 2023 do cardeal
Cantalamessa
"O presépio é, portanto,
uma tradição útil e bela, mas não podemos nos contentar com os tradicionais
presépios externos. Devemos montar para Jesus um presépio diverso, um presépio
do coração. Corde creditur: crê-se com o coração. Christum habitare per fidem
in cordibus vestris: que Cristo venha habitar em vossos corações pela fé (Ef
3,17). Maria e o seu Esposo continuam, misticamente, a bater às portas, como fizeram
naquela noite em Belém."
“Acreditemos também nós!”
A renovação
da Mariologia operada pelo Vaticano II deve muito (talvez o essencial) a Santo
Agostinho. Foi a sua autoridade que impulsionou alguns teólogos e depois a
assembleia conciliar a inserir o discurso sobre Maria dentro da constituição
sobre a Igreja, a Lumen gentium, ao invés de fazer um discurso à
parte sobre ela. Partindo do princípio de que “o todo é superior à parte”,
Agostinho escrevera:
Santa é
Maria, bem-aventurada é Maria, mas mais importante é a Igreja do que a Virgem
Maria. Por quê? Porque Maria é uma parte da Igreja, um membro santo, excelente,
superior a todos os demais, mas um membro de todo o corpo. Se é um membro de
todo o corpo, sem dúvida mais importante do que um membro é o corpo[2].
Agora é o
mesmo Santo Agostinho a nos sugerir a resolução a se tomar após termos
repercorrido brevemente o caminho de fé da Mãe de Deus. Ao final do seu
discurso sobre a fé de Maria, ele dirige aos seus ouvintes uma vibrante
exortação que vale também para nós: “Maria acreditou, e o que acreditou se
cumpriu nela. Acreditemos também nós, para que o que se cumpriu nela possa se
cumprir também em nós!”[3].
O IV
centenário do nascimento de Blaise Pascal – que o Santo Padre quis recordar à
Igreja com a sua Carta Apostólica de 19 de junho passado – nos ajuda a dar um
conteúdo atual à exortação: “Acreditemos também nós”. Entre os “Pensamentos”
mais famosos de Pascal, há o seguinte:
Le coeur a
ses raisons que la raison ne connaît point. O coração tem suas razões que
a razão não conhece [...]. C’est le coeur qui sent Dieu et non la
raison. O coração, e não a razão, sente Deus. Assim é a fé: Deus sentido
pelo coração e não pela razão[4].
Esta
afirmação é ousada, mas tem o mais fidedigno fundamento possível, o da Sagrada
Escritura! O apóstolo Paulo conhece e usa frequentemente a palavra nous, que
corresponde ao moderno conceito de mente, inteligência ou razão; mas, falando
da fé, não diz “mente creditur”, com a mente se crê; diz corde
creditur (kardia gar pisteùetai), com o coração se crê (Rm
10,19).
Deus “é
sentido pelo coração e não pela razão”, como afirma Pascal, pelo simples motivo
de que “Deus é amor” e o amor não se percebe com o intelecto, mas com o
coração. É verdade que Deus é também verdade (“Deus é luz”, escrive João em sua
mesma Primeira Carta) e a verdade se percebe com o intelecto; mas, enquanto o
amor supõe o conhecimento, o conhecimento não supõe necessariamente o amor. Não
se pode amar sem conhecer, mas se pode conhecer sem amar! Bem o sabe uma
civilização a nossa, orgulhosa de ter inventado a inteligência artificial, mas
tão pobre de amor e compaixão.
Não são,
infelizmente, “as razões do coração” de Pascal que plasmaram o pensar laico e
teológico dos últimos três séculos, mas sim o “penso, logo existo” (cogito
ergo sum) do seu compatriota Descartes, ainda que contra a intenção deste,
que era e permaneceu sempre um piedoso cristão e um fiel (lembro de ter lido o
seu nome na lista dos peregrinos famosos ao Santuário de Nossa Senhora de
Loreto).
A
consequência foi que o racionalismo dominou e ditou a norma, antes de chegar ao
atual niilismo. Todos os discursos e debates que se fazem, também hoje, vertem
sobre “Fé e Razão”, jamais, pelo que eu saiba, sobre “Fé e coração”, ou “Fé e
vontade”. O próprio Pascal, contudo, em um outro pensamento, afirma que a fé é
clara o bastante para quem quer crer, e bastante obscura para
quem não quer crer[5].
Ela, em outras palavras, é uma questão de vontade, mais do que de razão e
intelecto.
Gostaria,
neste ponto, de acenar a uma segunda lição deixada a nós por Pascal e que o
Santo Padre evidencia fortemente em sua Carta Apostólica: a centralidade de
Cristo para a fé cristã: “Conhecemos Deus – escrive o filósofo – apenas por
meio de Jesus Cristo. Sem este mediador, está excluída qualquer comunicação com
Deus”[6].
E, no chamado Memorial, eco de uma memorável noite de luz, ele
exclama: “o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, não dos filósofos nem dos
eruditos... é encontrado apenas pelas vias ensinadas pelo Evangelho”.
Pascal é
frequentemente citado a propósito do “risco calculado”, ou da aposta vantajosa.
Na incerteza, escreve, aposte na existência de Deus, pois “se vencer, você
venceu tudo, se perder, não perdeu nada”: “Si vous gagnez, vous gagnez tout
; si vous perdez, vous ne perdez rien”[7].
Mas o verdadeiro risco da fé – também ele sabe disso – é outro: é aquele de pôr
Jesus Cristo entre parênteses. Um risco de longa data! Repensemos sobre o que
aconteceu em Atenas, na ocasião do memorável discurso proferido pelo apóstolo
Paulo no Areópago (At 17,16-33).
O Apóstolo
começa falando do Deus único que criou o universo e do qual “somos até sua
linhagem”. Os presentes captam a alusão ao verso de um poeta seu e o acompanham
com atenção. Mas eis que Paulo chega ao ponto. Fala de um homem que Deus
designou como juiz universal, dando prova disso ao ressuscitá-lo dos mortos.
Acabou o encanto! “Quando ouviram falar da ressurreição dos mortos, alguns
zombavam. Outros diziam: ‘A respeito disso, te ouviremos em outra ocasião’” (At
17,32).
O que foi
que os perturbou tanto? Certo, a ideia da ressurreição dos mortos, tão
contrária ao que, no mesmo lugar, ensinara Platão: o corpo é “a tumba da alma”,
não vale a pena carregá-lo também após a morte. Mas talvez lhes tenha
desconcertado ainda mais o fato de fazer o destino da humanidade depender de um
único evento histórico e de um homem concreto. Um século depois, o filósofo
platônico Celso jogará à face dos cristãos os motivos do escândalo dos gregos:
“Filho de Deus um homem que viveu há poucos anos? Alguém de ontem ou anteontem?
Um homem nascido de uma pobre fiandeira em um vilarejo da Judeia?”[8].
O
verdadeiro risco da fé é aquele de se escandalizar com a humanidade e a
humildade de Cristo. Foi o maior obstáculo que Agostinho teve que superar para
aderir à fé: “Não sendo humilde, eu não conseguia aceitar como meu Deus o humilde
Jesus”, escreve nas Confissões[9].
Jesus falara da possibilidade de “se escandalizar” por causa dele, em razão da
sua distância da ideia que os homens tinham feito do Messias, e concluíra
dizendo: “E bem-aventurado quem não se escandaliza por causa de mim!” (Mt
11,2-6).
O escândalo
hoje é menos ostentado do que aquele dos areopagitas, mas não menos presente
entre os intelectuais. O efeito – mais danoso do que a rejeição – é o silêncio
sobre ele. Tenho acompanhado, na internet, muitos debates de alto nível sobre a
existência ou não de Deus: quase nunca era pronunciado neles o nome de Jesus
Cristo. Como se ele não coubesse no discurso sobre Deus!
Deve ser
este o nosso empenho principal no esforço pela evangelização. O mundo e seus
meios de comunicação – eu dizia em outra ocasião, nesta mesma sede – fazem de
tudo (e infelizmente conseguem!) para manter separado, ou silenciado, o nome de
Cristo em todo seu discurso sobre a Igreja. Nós devemos fazer de tudo para
mantê-lo obstinadamente presente. Não para nos abrigar por detrás dele e calar
nossos fracassos, mas porque é ele “a luz dos povos”, o “nome que está acima de
todo nome”, “a pedra angular” do mundo e da história.
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Tradução de
Fr. Ricardo Farias, OFMCap.
Notas:
[2] Cf. Agostino, Discurso 72,7
(Miscellanea Agostiniana, I, Roma 1930, p.163).
[3] Cf.
Agostino, Discursos, 215,4.
[4] Cf. Pensamentos,
277-278, ed. Brunschvicg.
[5] Cf. Pensamentos,
430, ed. Br.
[6] Cf. Pensamentos,
n. 221, Br.
[7] Cf. Pensamentos,
233, Br.
[8] Cf.
Orígenes, Contra Celso, I, 26.28; VI, 10.
[9] Cf.
Agostinho, Confissões, VII, 18,24.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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