Arquivo 30Dias - 01/2008
Essa centelha de beleza que dá glória a Deus
Entrevista com Massimo Lippi, poeta e escultor: o artista não pretende criar a beleza por si mesmo, mas busca-a na criação para devolvê-la ao Senhor.
Entrevista com Massimo Lippi de Paolo Mattei
“Perto da estação de Sena há uma ponte moderníssima que passa sobre a estrada. Por alguns minutos, de manhã, se olharmos a rede de proteção contra a luz, veremos como o sol a decora com suaves formas geométricas que parecem estrelinhas. Essas estrelinhas são muito semelhantes às decorações românicas, góticas e tardo góticas. Sobre essa ponte já existe a projeção imaginária de uma obra de arte. Esse bem de Deus que é a luz atingiu um produto industrial anônimo. Neste tempo de bombardeio paroxísmico das imagens, essas estrelinhas são uma enorme sugestão para um artista, cristão ou não cristão”.
É assim que começa a conversa com Massimo Lippi, poeta e escultor italiano.
Lippi publicou duas coletâneas de líricas pela editora Libri Scheiwiller (Non
popolo mio – 1991 – e Passi il mondo e venga la grazia –
1999), depois de sua estréia, em 1982, na coleção “Nuovi Poeti Italiani” da
Einaudi, organizada por Franco Fortini. Professor de História da Arte e de
Escultura nas Academias de Belas Artes de Carrara e Macerata e visiting
professor em algumas universidades americanas, expôs suas obras em
toda a Europa. Em Sena se encontram muitas de suas peças em bronze, entre as
quais os portais da Basílica de São Domingos e um crucifixo na Catedral. Nós
lhe fizemos algumas perguntas sobre a arte cristã moderna e contemporânea,
sobre a relação entre a Igreja e os artistas neste início de milênio e sobre a
beleza.
O senhor, observando essa ponte urbana, cita a arte antiga. Em relação à
arte cristã contemporânea, existe faz tempo um debate entre tendências
“passadistas” e “modernistas”...
MASSIMO LIPPI: A arte cristã, quando é verdadeira arte, nunca é nem modernista nem passadista. É verdadeira arte, só isso.
Mas existe uma distância, por exemplo, entre os nostálgicos da imagerie do século XIX, do chamado estilo Saint-Sulpice, e quem afirma a necessidade de que a Igreja continue o diálogo com a arte contemporânea...
LIPPI: Sim, e é bom que o diálogo se mantenha vivo. Mas é bom também não categorizar demais as coisas entre “passadismo” e “modernismo”. Michelangelo é “antigo” cronologicamente, mas é com sua Pietà Rondanini que começa a arte moderna e contemporânea.
Em outras palavras?
LIPPI: Michelangelo sentiu o fim de uma época. Ele tinha uma força maior, que não se podia submeter aos cânones estabelecidos pelas academias. Reinventou tudo e pegou de surpresa aqueles que já tinham se acostumado às novidades de Brunelleschi. Na Pietà Rondanini, as regras do fazer arte foram ultrapassadas por uma força instintiva que era o confronto último, direto e definitivo entre uma alma e Deus. Ele tinha noventa anos e mal se ouvia seu barulho em Roma: uma tossida e um golpe de maceta, trabalhando como os cinzeladores de Settignano, de quem tinha absorvido a arte. Parece que ainda escuto aquelas batidas, o arquejo da forma que busca a Deus e que foi pelo próprio Deus formada no homem – “a glória de Deus é o homem vivo” –, e parece que o vejo, Michelangelo, procurando dizer a Deus: eu, que sou a tua glória, quero retribuir-te a glória, do jeito que eu sou, homem pecador, e não por meio da estética dos senhores neoplatônicos de Florença. Michelangelo não constrói um teorema, mas faz uma oração, um gesto litúrgico. Uma vez chegou a dizer que tudo o que havia feito não valia nada em comparação com um ato de fé pura de uma camponesinha ou de uma mulher do povo romano: por um gesto de fé simples, ele teria dado toda a Capela Sistina. Sua vontade era entrar numa procissão do povo, ir atrás de uma imagem qualquer de Nossa Senhora. Sem dúvida menos bela do que ele saberia fazer.
E o que isso tem a ver com a arte moderna?
LIPPI: Aquela Pietà é um incunábulo dessa arte. Aquelas pernas lisas, polidas, batidas pela luz, enquanto a parte alta ainda é um casulo esculpido grosseiramente pela escopro e pelo gradim... Não é uma Pietà propriamente dita, mas já apresenta a iminente aurora do mundo, a Ressurreição.
Michelangelo produz por abreviações, por síncopes, por subtrações, por ablatio, eliminação de tudo o que é demais para chegar ao essencial. É também desproporção e paradoxo – Maria tão jovem, “filha de teu Filho”... Não há a sacralização da forma. Esse momento não representa o fim da arte cristã, mas o fim da presunção daqueles que, invertendo a perspectiva, tinha-se convencido de que podiam criar por si mesmos a beleza. O artista, parece dizer Michelangelo, pode, com a ajuda de Deus, buscá-la na criação e devolvê-la a Ele e a Sua Igreja. Essa atitude é moderníssima.
Voltemos à arte cristã contemporânea. Hoje em dia há uma notável difusão dos tradicionais ícones da Igreja russa ou grega...
LIPPI: É um modo de perpetuar artificialmente uma tradição que é sublime em Rublëv e foi extremamente eficaz num certo tempo e num certo espaço... Mas hoje corre o risco de ser, no meu modo de ver, devocionismo desleixado. Prefiro o expressionismo de Francis Bacon a essa liofilização. E isso não deve escandalizar ninguém. Cada um é filho de seu tempo. E é bom que exista essa liberdade de escolha na Igreja, esse relativismo: mesmo olhando e rezando diante de uma imagem que não é bonita, a pessoa pode se tornar santa.
Há também uma tendência a utilizar em larga escala todos os mais modernos meios de comunicação visual, como o cinema...
LIPPI: É uma vontade doente de dar um surplus de religiosidade à simples devoção... Assim, difundem-se filmes como A Paixão de Mel Gibson: uma em o risco de ser alienantes nesse sentido: podem usar a religião, em vez do eros, como elemento desencadeador do pathos de um modo violento e não natural. Do lado oposto, muitas vezes se produzem programas de televisão muito entediantes.
Uma outra orientação, minoritária, que parte da crítica à “iconosfera” da civilização das imagens, na qual o homem contemporâneo está mergulhado, refuta qualquer representação na vida cristã.
LIPPI: Já passamos por isso, a Igreja já enfrentou, faz tempo, os problemas da iconoclastia e da orientação cultual privada de imagens. Somos filhos do Deus que se encarnou num homem, se manifestou no rosto e na pessoa de Jesus Cristo, que pisa a terra. Trabalha, chora, sofre e se alegra conosco. Portanto, deve ser representado.
Em 1964, Paulo VI, com expressões apaixonadas e comovidas, pediu perdão aos artistas pela maneira como a Igreja os havia tratado, e disse a eles: “Nós precisamos de vós”. Em 1973, há exatos trinta e cinco anos, foi inaugurada a Coleção de Arte Religiosa Moderna no Vaticano. Que aconteceu desde então?
LIPPI: Paulo VI teve a grande intuição, mas depois não houve ninguém que a tenha sabido concretizar.
Em que sentido?
LIPPI: Faltaram pessoas que fossem procurar os artistas, mesmo os mais de vanguarda, menos conhecidos, que poderiam ter feito coisas belas para a Igreja. Em vez disso, se depositou a esperança, e ainda se deposita, nos discursos. Mas isso é absurdo. Você deve olhar como vive um artista, deve conhecê-lo, deve saber como ele vive. Os papas do Renascimento faziam isso! Os burocratas da fé de hoje não fazem.
E o que se fez, em vez disso?
LIPPI: A Igreja se “atualizou” cometendo o erro funesto de confiar, sem discernimento, no mercado. Na tentativa de ganhar alguma coisa, perdeu muito. Preferiu encomendar as obras a artistas de renome, aos mais célebres da praça. Além de tudo, não escolheu os melhores, mas os que insistem em divulgar a própria marca, apaixonados por seu estilo, por seu solipsismo criativo.
Por que isso acontece?
LIPPI: Rompeu-se a unidade entre a hierarquia e o povo. Antigamente, os padres
e os pintores, os escultores, os arquitetos, estavam com o povo de verdade, e o
conheciam. Hoje, a ortodoxia do pensamento e a santa anarquia dos artistas não
se encontram mais, e a centelha de beleza, quando se acende, não é vista. As
pessoas bebem tudo o que passa na televisão, a única fonte de onde se encomenda
tudo. Hoje, o único critério é: se o artista que decora ou projeta a igreja é
famoso, a igreja que ele decora ou projeta também será reconhecida no mundo.
Assim, acontece de um personagem de fama internacional esculpir em Roma
uma Anunciação, em Santa Maria dos Anjos, na qual o anjo e Nossa
Senhora aparecem de corpo inteiro, mas sem os braços. Ou de, em San Giovanni
Rotondo, ser representado um Cordeiro pascal sem orelhas, sem cauda e com as
pernas quebradas... Estrelas internacionais que trabalham com os símbolos sem
saber aquilo de que são sinal. É imensamente mais santa e mais bela uma cruz
arranhada com a unha na parede de uma prisão. Ou uma via-sacra desenhada pelas
crianças que nada sabem de arte e de técnica.
LIPPI: Penso, para citar alguns, em Giacomo Manzù, ou em Georges Rouault ou em Arturo Martini. Mas eles também foram encontrados por olhos que souberam olhar. É uma questão de fé, da santidade daqueles que devem reconhecer os artistas. Não de discursos.
Onde é preciso buscar?
LIPPI: Por toda parte, nas paróquias, nas pequenas cidades, nos bairros, nas cidades, nas dioceses. Por exemplo, há artesãos que dão continuidade a uma tradição respeitável e bela, que é a do presépio. Mas há também muitos artistas que trabalham com aquela “abreviação” que é própria da modernidade, de Michelangelo em diante, com uma beleza que é feita de centelhas, como fazem as crianças, de ilusões, de símbolos, de cromatismos que explodem em formas intensas e figurativas – mas de uma figuratividade viva, ou seja, não imitação servil e estúpida –, que não fazem uma pálida imagerie devocionista, não renunciaram a viver no mundo e conhecem também os códigos do mundo, inclusive o expressionismo, mas sabem o que é o cristianismo, conhecem e amam seus símbolos, a história de suas imagens. Que têm no olhar o cacho de uvas, o passarinho decorativos do período românico: toda aquela beleza, muitas vezes implícita, dos antigos e sempre novos símbolos da arte cristã.
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