LIBERDADE RELIGIOSA
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
No documento “Liberdade Religiosa para o Bem
de Todos: Uma Abordagem Teológica dos Desafios Contemporâneos”, a Comissão
Teológica Internacional (CTI) aprofunda o tema da liberdade religiosa na
contemporaneidade, a partir de uma atualização da Declaração
Conciliar Dignitatis Humanae, publicada em 1965, em um contexto
histórico muito diferente do atual. Hoje, o debate sobre a liberdade religiosa
situa-se no âmbito dos direitos humanos e liberdades civis do Estado
Liberal.
A liberdade religiosa ressurge como um tema
central nos debates contemporâneos das sociedades secularizadas, que têm
alterado sua percepção acerca da relação entre religião e sociedade. As grandes
tradições religiosas não são mais vistas como resíduos de culturas pré-modernas
ultrapassadas pela história. Hoje, mesmo em sociedades secularizadas, as
diversas formas de comunidade religiosa são consideradas relevantes na
intermediação entre indivíduos e Estado, reconhecendo sua significativa
influência na formação da identidade pessoal, na interpretação do vínculo
social e na busca do bem comum.
O debate sobre a liberdade religiosa
geralmente relaciona-se com uma concepção de direitos humanos e liberdades
civis associada à cultura política liberal, democrática, pluralista e secular.
A retórica humanista enfatiza valores como convivência pacífica, dignidade
individual e diálogo intercultural, conforme expressa na linguagem do Estado
liberal moderno, cujos princípios cristãos desempenharam importante papel na
formação e universalização desses valores.
Nas sociedades secularizadas de hoje, as
comunidades religiosas são percebidas como relevantes, mas surgem desafios como
o fundamentalismo religioso e o “totalitarismo moderado” do Estado Laico. Nesse
contexto, o fundamentalismo não se trata de um mero retorno à religiosidade
tradicional; mas constitui uma reação à concepção liberal do Estado moderno com
seu relativismo ético e indiferença religiosa. O Estado Liberal, com sua
proclamada neutralidade, torna-se incapaz de lidar adequadamente com a fé e a pertença
religiosa, favorecendo a propagação do niilismo ético na esfera pública. Ao
defender uma suposta neutralidade que busca estabelecer regras de
justiça com base meramente processuais, rejeitando qualquer fundamentação
ética e inspiração religiosa, o Estado Liberal desenvolve uma ideologia de
neutralidade que, na prática, marginaliza e exclui a expressão religiosa da
esfera pública.
A neutralidade transforma-se em uma ideologia
que favorece uma liberdade civil discriminatória, refletindo-se na limitação da
plena participação do componente religioso na formação da cidadania
democrática. Uma cultura civil que define seu próprio humanismo por meio da
remoção do componente religioso compromete partes essenciais de sua história,
tradição, conhecimento e coesão social. Isso conduz à destruição de elementos
fundamentais da humanidade e da cidadania a partir dos quais a própria
sociedade se constitui, provocando reações, especialmente entre os jovens, que
buscam refúgio em formas extremas de fanatismo, seja ateísta ou teocrático,
fenômeno que deveria nos instigar a uma profunda análise e reflexão.
A ideologia da neutralidade do Estado Liberal exclui seletivamente o testemunho da comunidade religiosa na esfera pública, reduzindo a busca da verdade moral à esfera individual. Isso cria uma contradição, pois a autoridade ética é apresentada como essencial e, ao mesmo tempo, é excluída da esfera pública. Essa suposta neutralidade abre caminho para uma ideologia oculta do poder. O Papa Francisco nos adverte a respeito disso e nos alerta: “Quando, em nome de uma ideologia, se quer expulsar Deus da sociedade, acaba-se por adorar os ídolos, e muito rapidamente o homem se perde a si mesmo e tem seus direitos violados”.
Por outro lado, as teorias que consideram o Estado liberal como totalmente independente da contribuição da cultura religiosa favorecem a sua vulnerabilidade diante das pressões de formas de religiosidade, inclusive a pseudo-religiosidade, que buscam influenciar o espaço público sem respeitar as regras de um diálogo cultural respeitoso e do debate democrático. A proteção da liberdade religiosa e da paz social requer um Estado que promova a cooperação entre comunidades religiosas e a sociedade civil, além de implementar uma cultura adequada à religião. A cultura civil deve superar preconceitos ideológicos em relação à religião, enquanto a religião deve expressar sua visão de maneira compreensível. A atitude de cooperação da fé cristã com o Estado pode ser pensada dentro de uma ‘laicidade positiva nas instituições estatais’, conforme proposto por Bento XVI, promovendo a educação religiosa como uma via privilegiada para fomentar o reconhecimento mútuo, permitindo, ao mesmo tempo, que as religiões passem por um processo de purificação, guiado pela reta razão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário