Um Deus que deixa acontecer? O mal e a dor.
Por que
existe o mal? Qual é o sentido da dor? Por que Deus permite o mal? Estas são as
perguntas que toda pessoa se faz em algum momento da vida. Elas fazem
referência a um dos grandes mistérios do ser humano.
16/02/2022
A
existência do mal no mundo, especialmente em suas formas mais agudas e difíceis
de entender, é uma das causas mais frequentes do abandono da fé. Diante dos
acontecimentos que parecem claramente injustos e sem sentido, em presença dos
quais nos sentimos impotentes, surge de modo natural a pergunta de como Deus
pode permitir isso. Por que o Senhor, que é bom e onipotente, permite que
ocorram males semelhantes? Por que pessoas simples, que já carregam muito peso
na vida, devem carregar o drama de uma tragédia imprevista, como, por exemplo,
um desastre natural? Por que Deus não intervém? Estas são perguntas que não
dirigimos ao mundo, nem a nossos semelhantes, mas a Deus, porque confessamos
que Ele é o Criador e o Senhor do mundo[1].
Essas
questões, de certa maneira, transpassam os limites da Revelação e penetram no
mistério do próprio Deus. Afinal, não há nada na criação que escape à sabedoria
e vontade de Deus. Assim como não podemos abarcar a infinita bondade de Deus,
também não podemos sondar completamente os seus projetos. Por essa razão,
muitas vezes, a melhor atitude em relação ao mal e à dor é o abandono confiado
em Deus, que sempre “sabe mais” e “pode mais”.
Mas também
é natural que tentemos iluminar o obscuro mistério do mal, a fim de que a fé
não seja apagada pela experiência da vida, mas, precisamente nesses momentos,
permaneça sendo clara luz em nosso caminho, “lâmpada para meus passos” (Sal
119,105).
O mal
procede da liberdade criada
Deus não
criou um mundo fechado, ao qual só Ele tem acesso, nem fez o mundo perfeito.
Ele o criou aberto a muitas possibilidades e aperfeiçoamentos, e criou homens e
mulheres para habitá-lo e completá-lo com a sua inteligência. Ele nos tornou
inteligentes e livres e nos deu espaço para desenvolver esses talentos. Neste
sentido, Deus, chamando-nos à existência, nos coloca à prova: confia-nos a
tarefa de fazer o bem de acordo com as nossas possibilidades. E isso é, com
frequência, uma tarefa cansativa. “Negociai com isto até que eu volte” (Lc
19,13): como na conhecida parábola de Jesus, os talentos não podem ser
enterrados ou escondidos: cada um é chamado a fazer a sua vida frutificar, a
desenvolver o que recebemos. Mas muitas vezes não fazemos isso, ou inclusive
chegamos a fazer o contrário, voluntariamente decidimos fazer coisas más e as
realizamos: somos, muitas vezes, culpados.
ESTE É O VERDADEIRO MAL, O QUE MAIS DEVEMOS TEMER:
O PECADO. DELE PROVEM OS OUTROS MALES, DE UM MODO OU DE OUTRO.
A
humanidade foi culpada desde o princípio, desde aquele ato que foi a fonte de
outros males. Tudo o que há de errado no mundo gira em torno disso: o uso
indevido da liberdade, a capacidade que temos de destruir as obras de Deus: em
nós mesmos, nos outros, na natureza. Quando fazemos isso, nos privamos de Deus,
nossos corações ficam mais escuros, e podemos até converter nossas vidas ou as
dos outros em um inferno. Este é o verdadeiro mal, o que mais devemos temer:
o pecado. Dele provem os outros males, de um modo
ou de outro.
O
sofrimento como prova ou purificação
Mas então,
o mal é sempre resultado direto da culpa? Primeiro devemos esclarecer o que é o
mal. Em si mesmo, é apenas a outra face do bem, a face que a realidade mostra
quando falta o bem, quando o que deveria ser não é e o que deveria estar
presente não está. O mal é privação, não tem entidade positiva, é negatividade
e precisa apoiar-se num bem para existir[2]. Sofremos quando experimentamos essa ausência
do que é bom. Naturalmente, a culpa, nossa ou dos outros, sempre produz um
dano. No entanto, nem sempre que sofremos um dano, isso acontece por termos
sido culpados.
Na Sagrada
Escritura, o livro de Jó aborda este problema em profundidade. Os amigos de Jó
querem persuadi-lo de que as desgraças que o Senhor lhe enviou são consequência
dos seus pecados, da sua injustiça. Embora não poucas vezes seja assim, porque
os delitos merecem punição – algo lógico de acordo com o ponto de vista humano
e também no plano sobrenatural –, o caso de Jó nos mostra que os justos e os
inocentes também sofrem. Referindo-se a este livro são João Paulo II escreveu:
“Se é verdade que o sofrimento tem um sentido como castigo, quando ligado à
culpa, já não é verdade que todo sofrimento seja consequência de culpa
e tenha caráter de castigo”[3].
De fato,
para Jó, o sofrimento foi uma prova para a sua fé, da qual saiu fortalecido. Às
vezes, Deus nos testa, mas sempre dá sua graça para superar e procura o modo de
crescermos no amor, que é o significado último do bem.
Outras
vezes, o sofrimento tem um sentido de purificação. Isso aconteceu com Israel no
tempo de Moisés, quando o povo era volúvel e caprichoso. Deus o purificou com
uma longa jornada através do deserto, e assim o foi formando até que fosse
capaz de entrar na terra prometida e reconhecer a fidelidade de Deus à sua
palavra.
Frequentemente,
o sofrimento adquire – na Divina Providência – um valor purificador semelhante.
Há pessoas que, imersas no bulício da vida, não se colocam as questões
decisivas até que uma doença, ou um baque econômico ou familiar, os leve a
interrogar-se mais profundamente. E é frequente que aconteça uma mudança, uma
conversão, uma melhora ou uma abertura para a necessidade do próximo. Então, o
sofrimento é também pedagogia de Deus, que deseja que o homem não se perca, que
não se dissipe nas delícias do caminho ou entre os desejos mundanos. Portanto,
embora a Divina Providência conte com uma medida de mal na vida de cada um,
esse mal, em último termo, se revela um serviço para o bem do homem.
O
sofrimento na natureza
Nessa luz,
o sofrimento natural aquele que está presente e inscrito em nosso ambiente
criado, também adquire certo significado: a fadiga do crescimento para saber
mais e progredir, a caducidade dos seres, que envelhecem e morrem, a falta de
harmonia nos fenômenos naturais (que podem destruir a ordem da criação).
Sofrimentos que não podemos evitar, que não dominamos ou controlamos, mas que
estão aí, inscritos na natureza.
QUANDO CONTEMPLAMOS UMA NATUREZA DESCONTROLADA
DEVEMOS PENSAR QUE O SENHOR NOS APRESENTA ALI A FIGURA DE UM MUNDO EM QUE ELE
NÃO PODE REINAR.
Às vezes,
esses são males necessários para que outros bens possam sobreviver. São Tomás
dá o exemplo de um leão que não poderia manter sua vida se não caçasse o asno
ou algum outro animal[4]. Mas, muitas vezes, os bens que podem estar
relacionados aos eventos trágicos da natureza são ocultos para nós. Não é fácil
entender por que Deus os permite, nem por que Ele criou um universo onde pode
haver destruição e que, às vezes, não parece ser governado pela Bondade e pelo
Amor. Uma luz possível vem do fato de que, em geral, a destruição causada por
fenômenos naturais tem a ver, de acordo com o desígnio criador, com a nossa
liberdade e com a capacidade que temos de rejeitar a Deus.
O habitat
em que vivemos e que tantas vezes nos maravilha com a sua beleza – o mundo
físico – também pode se tornar um lugar horrível, da mesma forma como o nosso
coração, feito para amar a Deus e possuir o Céu em seu interior, também pode
chegar a ser um lugar triste e escuro. Isso acontece quando abandonamos o
coração, deixando-nos levar pelas sementes que o diabo planta. Então, quando
contemplamos uma natureza descontrolada, que causa destruição sem consideração
ou justiça, devemos pensar que o Senhor nos apresenta ali a figura de um mundo
em que Ele não pode reinar e de um coração que rejeita o amor e a justiça. A
profunda relação entre a Criação e o homem, que foi colocado como cabeça para
protegê-la (cf. Gênesis 2,15), também é mostrada nessa desordem.
Os seres
humanos e também “toda a criação, até o presente, está gemendo como que em
dores de parto,” (Rom 8,22), porque participa do projeto criador e redentor de
Deus. Ela também “espera ser libertada da escravidão da corrupção” e
“participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rom 8,21).
O
sofrimento redentor
Mas, sem
dúvida, o que ilumina de maneira mais importante o sentido do mal é a Cruz de
Jesus. E junto à Cruz, a Ressurreição. Sua Cruz nos indica que o
sofrimento pode ser o sinal e a prova do amor. E ainda mais, pode ser o caminho
da destruição do pecado. Porque na Cruz de Jesus o amor de Deus lavou os
pecados do mundo. O pecado não resiste, não pode resistir, ao amor que se
rebaixa e se humilha pelo bem do pecador. Como expressa um famoso personagem
criado por Dostoievski, “a humildade do amor é uma força terrível, a mais forte
de todas, que a nenhuma outra se pode comparar”[5].
Na Cruz, o
sofrimento de Jesus é redentor porque seu amor pelo Pai e pelos homens não
retrocede diante da rejeição e injustiça humanas. Ele deu a sua vida pelos
pecadores, serviu-os com toda a sua dedicação e, assim, a sua Cruz tornou-se
uma fonte de vida para eles.
Nossos
sofrimentos também podem ser redentores, quando são fruto do amor ou são
transformados pelo amor. Então eles participam da Cruz de Cristo. Como ensinava
são Josemaria, o sofrimento é uma fonte de vida: de vida interior e de graça
para si e para os outros[6]. Na realidade, não é o sofrimento como tal
que redime, mas a caridade presente nele.
Já no
aspecto humano, o amor tem a capacidade de modelar a vida: a mãe que não poupa
esforços para a felicidade de seus filhos, o irmão que se sacrifica pelo irmão
necessitado, o soldado que joga a sua vida pelo pelotão. São exemplos que
sobrevivem na memória e honram os seus protagonistas. Quando esse amor é
motivado e fundamentado na fé, além de ser algo belo, também é divino:
participa da Cruz e é um canal de graça que vem de Cristo. Ali o mal se
transforma em bem, por meio da ação do Espírito Santo, dom que procede da cruz
de Jesus.
A última
carta
Mas a tudo
o que foi dito até agora para tentar explicar o significado do mal pode ser
adicionada uma consideração conclusiva. E é que, embora o mal esteja presente
na vida do ser humano na terra, Deus sempre tem na mão uma carta final, é
sempre o último jogador em termos da vida de cada um. Deus nos ama, nos
aprecia, e é por isso que reserva para si a última carta, que é a esperança do
mundo: o seu amor criador onipotente. O amor que também se manifesta na
ressurreição de Jesus Cristo.
Por maiores
e incompreensíveis que cheguem a ser os dramas da vida, muito maior é o poder
criador e re-criador de Deus. A vida é um tempo de provação e, quando termina,
o definitivo começa. Este mundo é passageiro. Acontece com ele como no ensaio
de um concerto: talvez alguém tenha esquecido o instrumento e outro não tenha
aprendido bem a partitura e um terceiro esteja desafinando. Para isso que
existem os ensaios. É a hora de ajustar, harmonizar instrumentos, adaptar-se ao
maestro. Então, finalmente, o grande dia chega, quando tudo está pronto, e o
concerto acontece em uma sala luxuosa, em meio à alegria e emoção geral.
A vida de
Cristo não mostra apenas o amor de Deus, mas também o seu poder, o poder de
devolver com acréscimo tudo aquilo que não correspondeu à justiça, tudo aquilo
em que parecia que Deus não estava presente, ou onde Ele deixou que o mal e a
dor acontecessem e que nós, então, não chegamos a compreender. Jesus também
experimentou seu momento de abandono (cf. Mc 15,34), sofreu-o com amor e à Cruz
seguiu-se uma glória eterna. O último livro da Escritura, o Apocalipse, nos
fala de um Deus que “enxugará toda lágrima” (Ap. 21, 4) porque Ele faz novas
todas as coisas (cf. Ap 21,5) e será uma fonte de abundante felicidade.
Como ajudar
os que sofrem?
Em muitas
ocasiões, perante a dor alheia, nos sentimos impotentes e só podemos fazer o
mesmo que o bom samaritano (cf. Lc 10,25-37): oferecer carinho, ouvir,
acompanhar, estar ao lado, isto é, não nos afastarmos. Algumas obras de arte
retratam o bom samaritano e o homem assaltado com o mesmo rosto. E isso pode
ser interpretado como: Cristo cura e, ao mesmo tempo, é curado. Cada um de nós
é ou pode ser o bom samaritano que cura as feridas de outro e, nesse momento,
somos Cristo. Mas às vezes também precisamos ser curados porque algo nos feriu
– uma cara feia, uma resposta atravessada, um amigo que nos deixou – e somos
curados por um bom samaritano, que pode ser o próprio Cristo quando nos
aproximamos na oração, ou uma pessoa próxima que se torna Cristo quando nos
ouve. E nós somos Cristo para os outros, porque cada um de nós é imagem e
semelhança de Deus.
O
sofrimento permanece sempre como um mistério, mas um mistério que pela ação
salvadora de Nosso Senhor pode nos abrir para os outros: “Por toda parte há
crianças abandonadas ou porque as abandonaram quando nasceram ou porque a vida
as abandonou, a família, os pais e não sentem o carinho da família. Como sair
dessa experiência negativa de abandono, de distância de amor? Existe apenas um
remédio para sair dessas experiências: fazer o que eu não recebi. Se você não
recebeu compreensão, seja compreensivo com os outros. Se você não recebeu amor,
ame os outros. Se você sentiu a dor da solidão, aproxime-se daqueles que estão
sozinhos. A carne é curada com a carne e Deus se fez carne para nos curar.
Façamos o mesmo com os outros”[7].
Muitas
pessoas sentiram o carinho de Deus precisamente nos momentos mais difíceis: os
leprosos acariciados por Santa Teresa de Calcutá, os tuberculosos que São
Josemaria consolava espiritualmente e materialmente, ou os moribundos tratados
com respeito e amor por São Camilo de Lelis. Isso também nos diz algo sobre o
mistério da dor na existência humana: são momentos em que a dimensão espiritual
da pessoa pode se desdobrar com força se ela se deixa abraçar pela graça do
Senhor, dignificando até mesmo as situações mais extremas.
Antonio
Ducay
[1] Cfr. João Paulo II, Carta Apostólica
Salvifici Doloris, n. 9.
[2] Cfr. J. Ratzinger, Deus e o mundo.
Crer e viver em nossa época. 2005.
[3] João Paulo II, Carta Apostólica
Salvifici Doloris, n. 11.
[4] Cfr. São Tomás de Aquino, Summa
Teológica, I, q.48, a 2 ad 3.
[5] Os irmãos Karamazov, 2006.
[6] Cfr. S. Josemaria, Via Sacra,
Estação XII.
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