A Criação
A doutrina
da Criação constitui a primeira resposta às indagações fundamentais sobre nossa
origem e nosso fim.
06/01/2015
1.2. “O
mundo foi criado para a glória de Deus” (Concílio Vaticano I)
Deus criou
tudo “não para aumentar sua glória, mas para manifestá-la e comunicá-la” (São
Boaventura, Sent., 2,1,2,2,1). O Concílio Vaticano I (1870) ensina
que “por sua bondade e pela sua virtude onipotente, não para aumentar a sua
felicidade nem para adquirir sua perfeição, mas para a manifestar essa
perfeição por meio dos bens que prodigaliza às criaturas, Deus, com vontade
plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas
do nada: a espiritual e a corporal” (DS 3002; cf. Catecismo, 293).
“A glória
de Deus consiste em que se realize esta manifesta e esta comunicação de sua
bondade em vista das quais o mundo foi criado. Fazer de nós "filhos
adotivos por Jesus Cristo: conforme o beneplácito de sua vontade para louvor à
glória da sua graça" (Ef 1,5-6): "Pois a glória de Deus é o homem
vivo, e a vida do homem é a visão de Deus" (Santo Irineu, Adversus
haereses, 4,20,7)” (Catecismo, 294).
Longe de
uma dialética de princípios contrapostos (como ocorre no dualismo de tipo
maniqueísta, como também no idealismo monista hegeliano), afirmar a glória de
Deus como fim da criação não comporta uma negação do homem, mas uma condição
indispensável para a sua realização. O otimismo cristão tem as suas raízes na
exaltação conjunta de Deus e do homem: “somente se Deus é grande, o homem
também é grande”[8]. Trata-se
de um otimismo e uma lógica que afirmam a absoluta prioridade do bem, mas que
não são, por isso, cegos ante a presença do mal no mundo e na história.
1.3.
Conservação e providência. O mal
A criação
não se reduz aos começos; uma vez realizada a criação, “Com a criação, Deus não
abandona sua criatura a ela mesma. Não somente lhe dá o ser e a existência, mas
também a sustenta a todo instante no ser, dá-lhe o dom de agir e a conduz a seu
termo” (Catecismo, 301). A Sagrada Escritura compara esta atuação de
Deus na história com a ação criadora (cf. Is 44,24; 45,8;51,13). A
literatura sapiencial explicita a ação de Deus que mantém suas criaturas na
existência. “Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido,
e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada?” (Sab 11,25).
São Paulo vai mais longe e atribui esta ação conservadora a Cristo: “Ele existe
antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nele” (Cl 1,17).
O Deus dos
cristãos não é um relojoeiro ou arquiteto que, após ter realizado sua obra, se
desentende dela. Estas imagens são próprias de uma concepção deísta, segundo a
qual Deus não se imiscui nos assuntos deste mundo. Mas isto supõe uma distorção
do autêntico Deus criador, pois separa drasticamente a criação da conservação e
governo divino do mundo[9].
A noção de
conservação “faz o papel de ponte” entre a ação criadora e o governo divino do
mundo (providência). Deus não só cria o mundo e o mantém na existência, mas,
além disso, “conduz as suas criaturas para a perfeição última, à qual Ele mesmo
as chamou” (Compêndio, 55). A Sagrada Escritura apresenta a soberania
absoluta de Deus e testemunha constantemente o seu cuidado paterno, tanto nas
coisas pequenas como nos grandes acontecimentos da história (cf. Catecismo,
303). Neste contexto, Jesus se revela como a providência “encarnada” de Deus,
que atende, como Bom Pastor, as necessidades materiais e espirituais dos homens
(Jo 10,11.14-15; Mt 14, 13-14, etc.) e nos ensina
a abandonar-nos aos seus cuidados (Mt 6,31-33).
Se Deus
cria, sustenta e dirige tudo com bondade, de onde provem o mal? “Para esta
pergunta tão premente quão inevitável, tão dolorosa quanto misteriosa, não há
uma resposta rápida. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a esta
pergunta (...). Não há nenhum elemento da mensagem cristã que não seja, por uma
parte, uma resposta à questão do mal” (Catecismo, 309).
A criação
não está terminada desde o princípio, mas Deus a fez in statu viae,
isto é, em direção a uma meta última por alcançar. Para a realização dos seus
desígnios, Deus se serve do concurso das criaturas, e concede aos homens uma
participação da sua providência, respeitando sua liberdade, ainda quando atuem
mal (cf. Catecismo, 302, 307, 311). Aquilo que realmente surpreende
é que Deus “em sua onipotente providência pode tirar um bem das consequências
de um mal” (Catecismo, 312). É uma misteriosa e grandíssima verdade que
“todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28)[10].
A
experiência do mal parece mostrar uma tensão entre a onipotência e a bondade
divinas em sua atuação na história. Aquela recebe resposta, certamente
misteriosa, no evento da Cruz de Cristo, que revela o “modo de ser” de Deus, e
é, portanto, fonte de sabedoria para o homem (sapientia crucis).
1.4.
Criação e salvação
A criação é
“o primeiro passo para a Aliança do Deus único com seu povo” (Compêndio,
51). Na Bíblia, a criação está aberta à atuação salvífica de Deus na história,
que tem a sua plenitude no mistério pascal de Cristo, e que alcançará sua
perfeição final no fim dos tempos. A criação foi feita com vistas ao sábado, o
sétimo dia, em que o Senhor descansou, dia em que culmina a primeira criação e
que se abre ao oitavo dia em que começa uma obra ainda mais maravilhosa: a
Redenção, a nova criação em Cristo (2 Cor 5,7; cfr Catecismo,
345-349).
Assim, fica
patente a continuidade e unidade do desígnio divino de criação e redenção.
Entre ambos, não há qualquer hiato, mas um vínculo, pois o pecado dos homens
não corrompeu totalmente a obra divina. A relação entre ambas – criação e
salvação – pode expressar-se dizendo que, de um lado, a criação é o primeiro
evento salvífico; e por outro lado, que a salvação redentora possui as
características de uma nova criação. Esta relação ilumina importantes aspectos
da fé cristã, como a ordenação da natureza à graça, ou a existência de um único
fim sobrenatural do homem.
Santiago
Sanz
_______________
Bibliografia
básica
Catecismo
da Igreja Católica, 279-374.
Compêndio
do Catecismo da Igreja Católica, 51-72.
DH, nn.
125, 150, 800, 806, 1333, 3000-3007, 3021-3026, 4319, 4336, 4341.
Concílio
Vaticano II, Gaudium et spes, 10-18, 19-21, 36-39.
João Paulo
II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I), Palabra,
Madri 1996, 181-218.
Leituras
recomendadas
Santo
Agostinho, Confissões, livro XII.
São Tomás
de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 44-46.
São
Josemaria, Homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevistas com
Mons. Josemaria Escrivá, 113-123.
Joseph
Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.
João Paulo
II, Memoria e identidade, Ed. Objetiva, 2005.
________________
[8] Bento
XVI, Homilia, 15-08-2005.
[9] O
deísmo implica em um erro na noção metafísica de criação, pois esta, enquanto
doação do ser, leva consigo dependência ontológica por parte da criatura, que
não é separável de sua continuação no tempo. Ambas constituem um mesmo ato,
ainda que possamos distingui-las conceitualmente: “a conservação das coisas por
Deus não se dá por uma ação nova, mas pela continuação da ação que dá o ser,
que é certamente uma ação sem movimento e sem tempo” (São Tomás, Summa
Theologiae, I, q. 104, a. 1. ad 3).
[10] Em
continuidade com a experiência de tantos santos da história da Igreja, esta
expressão paulina se encontrava frequentemente nos lábios de São Josemaria, que
vivia e animava assim a viver em uma gozosa aceitação da vontade divina (cf.
São Josemaria, Sulco, 127; Via Sacra, IX, 4; Amigos
de Deus, 119). Por outro lado, o último livro de João Paulo II, Memória
e Identidade, constitui uma profunda reflexão sobre a atuação da
providencia divina na história dos homens, segundo aquela outra asserção de São
Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal; antes, vence o mal com o bem” Rm 12,
21).
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