A Criação
A doutrina
da Criação constitui a primeira resposta às indagações fundamentais sobre nossa
origem e nosso fim.
06/01/2015
Introdução
A
importância da verdade da criação vem de que é “o fundamento de todos os
projetos divinos de salvação; (...) o início da história da salvação, que
culmina em Cristo” (Compêndio, 51). Tanto a Bíblia (Gn 1,1)
como o Credo começam com a confissão de fé no Criador.
Diferentemente
dos outros grandes mistérios da nossa fé (a Trindade e a Encarnação), a criação
é “a primeira resposta às questões fundamentais do homem acerca sua própria
origem e do seu fim” (Compêndio, 51), que o espírito humano se propõe e,
em parte, pode também responder, como mostra a reflexão filosófica e os relatos
das origens pertencentes às culturas religiosas de tantos povos (cf. Catecismo,
285); não obstante, a especificidade da noção de criação só foi de fato
entendida com a revelação judaico-cristã.
A criação
é, pois, um mistério de fé e, ao mesmo tempo, uma verdade acessível à razão
natural (cf. Catecismo, 286). Esta peculiar posição entre fé e
razão faz da criação um bom ponto de partida na tarefa de evangelização e de
diálogo que os cristãos estão sempre – particularmente em nossos dias[1] –
chamados a realizar, como já fizera São Paulo no Areópago de Atenas (At 17,16-34).
Costuma-se
distinguir entre o ato criador de Deus (a criação active sumpta) e
a realidade criada, que é efeito de tal ação divina (a criação passive
sumpta)[2]. Seguindo
este esquema, são expostos a seguir os principais aspectos dogmáticos da
criação.
1. O ato
criador
1.1. “A
criação é obra comum da Santíssima Trindade” (Catecismo, 292)
A Revelação
apresenta a ação criadora de Deus como fruto da sua onipotência, da sua
sabedoria e do seu amor. Costuma-se atribuir a criação ao Pai (cf. Compêndio,
52), assim como a redenção ao Filho e a santificação ao Espírito Santo. Ao
mesmo tempo, as obras ad extra da Trindade (a primeira delas é
a criação) são comuns às três Pessoas, e por isso, faz sentido perguntar-se
pelo papel específico de cada Pessoa na criação, pois “cada Pessoa divina
cumpre a obra comum segundo a sua propriedade pessoal” (Catecismo, 258).
Este é o sentido da igualmente tradicional apropriação dos atributos essenciais
(onipotência, sabedoria, amor) respectivamente ao agir criador do Pai, do Filho
e do Espírito Santo.
No Símbolo
Niceno-Constantinopolitano, confessamos a nossa fé “em um só Deus, Pai
todo-poderoso, criador do céu e da terra”; “em um só Senhor Jesus Cristo (...)
por ele todas as coisas foram feitas”; e no Espírito Santo, “Senhor que dá a
vida” (DH 150). A fé cristã fala, portanto, não somente de uma criação ex
nihilo, do nada, que indica a onipotência de Deus Pai; mas também de uma
criação feita com inteligência, com a sabedoria de Deus – o Logos por
meio do qual tudo foi feito (Jo 1, 3) -; e de uma criação ex
amore (GS 19), fruto da liberdade e do amor que é o próprio Deus, o
Espírito que procede do Pai e do Filho. Consequentemente, as processões eternas das
Pessoas estão na base de seu agir criador[3].
Assim, como
não há contradição entre a unicidade de Deus e o seu ser três Pessoas, de modo
análogo não se contrapõe a unicidade do princípio criador com a diversidade dos
modos de agir de cada uma das Pessoas.
“Criador do
céu e da terra”
“No
princípio, Deus criou o céu e a terra. Três coisas são afirmadas nestas
primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno pôs um começo a tudo o que
existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em hebraico, “bara” –
sempre tem como sujeito Deus). Tudo o que existe (expresso pela fórmula “o céu
e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser” (Catecismo, 290).
Somente
Deus pode criar em sentido próprio[4], o que
significa dar origem às coisas do nada (ex nihilo), e não a partir de
algo pré-existente; para isso, requer-se uma potência ativa infinita que só
Deus possui (cf. Catecismo, 296-298). É congruente (adequado),
portanto, apropriar a potência criadora ao Pai, já que Ele é, na Trindade –
segundo uma expressão clássica – fons et origo, quer dizer, a
Pessoa de quem procedem as outras duas, princípio sem princípio.
A fé cristã
afirma que a distinção fundamental, de fato, é a que se dá entre Deus e as
criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos, nos quais a
polaridade entre matéria e espírito dava motivo a visões inconciliáveis entre
si (materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo rompeu
estes esquemas, principalmente com sua afirmação de que também a matéria (do
mesmo modo que o espírito) é criatura do único Deus transcendente. Mais tarde,
São Tomás desenvolveu uma metafísica da criação que descreve a Deus como o
próprio Ser subsistente (Ipsum Esse Subsistens). Como causa primeira, é
absolutamente transcendente ao mundo; e ao mesmo tempo, em virtude da
participação de seu ser nas criaturas, está presente intimamente nelas, as
quais dependem, em tudo, de quem é fonte do ser. Deus é superior summo
meo (maior do que o que há de maior em mim) e, ao mesmo tempo, intimior
intimo meo (mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim) (Santo
Agostinho, Confissões, 3,6,11; cf. Catecismo, 300).
“Por Ele
todas as coisas foram feitas”
A
literatura sapiencial do Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da
sabedoria de Deus (cf. Sab 9,9). “O mundo não é o produto de
uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso” (Catecismo,
295), mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do
entendimento divino, pode captar, não sem esforço e em espírito de humildade e
de respeito ante o Criador e sua obra (cf. Jo 42,3; cf. Catecismo,
299). Este desenvolvimento chega à sua expressão plena no Novo Testamento: ao
identificar o Filho, Jesus Cristo, com o Logos (cf. Jo 1,
1ss), afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem
tudo foi feito (Jo 1, 3). São Paulo formula esta relação do criado
com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas nele, por ele e para
ele (Col 1, 16-17).
Há, pois,
uma razão criadora na origem do cosmos (cf. Catecismo, 284)[5]. O
Cristianismo tem, desde o começo, uma grande confiança na capacidade da razão
humana de conhecer; e uma enorme segurança em que jamais a razão (científica,
filosófica etc.) poderá chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm
da mesma origem.
Não é raro
encontrar pessoas que apresentam falsos dilemas, como, por exemplo, entre
criação e evolução. Em realidade, uma epistemologia adequada não só distingue
os âmbitos próprios das ciências naturais e da fé, mas, ainda, reconhece, na
filosofia, um elemento necessário de mediação, pois as ciências, com seu método
e objeto próprios, não cobrem todo o âmbito da razão humana; e a fé, que se
refere ao mesmo mundo do qual tratam as ciências, necessita, para formular-se e
entrar em diálogo com a racionalidade humana, de categorias filosóficas[6].
É lógico,
portanto, que a Igreja, desde o início, buscasse o diálogo com a razão: uma
razão consciente de seu caráter criado, pois não se deu a si própria a
existência, nem dispõe completamente de seu futuro; uma razão aberta àquilo que
a transcende, em suma, a Razão originária. Paradoxalmente, uma razão fechada
sobre si, que acredita poder achar dentro de si a resposta às suas
interrogações mais profundas, acaba por afirmar a falta de sentido da
existência, e por não reconhecer a inteligibilidade do real (niilismo,
irracionalismo, etc.).
“Senhor que
dá a vida”
“Cremos que
o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas
participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: "Pois tu
criaste todas as coisas; por tua vontade é que elas existiam e foram
criadas". (Ap 4,11). (...). "O Senhor é bom para todos, compassivo
com todas as suas obras"” (Catecismo, 295). Em consequência,
“Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: "E Deus
viu que isto era bom... muito bom": Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Pois a
criação é querida por Deus como um dom...” (Catecismo, 299).
Este
caráter de bondade e de dom livre permite descobrir na criação a atuação do
Espírito – que “movia-se sobre as águas” (Gn 1,2) –, a Pessoa Dom
na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho. A Igreja confessa sua fé
na obra criadora do Espírito Santo, que dá a vida e é fonte de todo bem[7].
A afirmação
cristã da liberdade divina criadora permite superar a estreiteza de outras
visões que, atribuindo uma necessidade a Deus, acabam por sustentar um certo
fatalismo ou determinismo. Não há nada, nem “dentro”, nem “fora” de Deus, que o
obrigue a criar. Qual é então o fim que o move? O que se propôs ao criar-nos?
Santiago
Sanz
_______________
Bibliografia
básica
Catecismo
da Igreja Católica, 279-374.
Compêndio
do Catecismo da Igreja Católica, 51-72.
DH, nn.
125, 150, 800, 806, 1333, 3000-3007, 3021-3026, 4319, 4336, 4341.
Concílio Vaticano
II, Gaudium et spes, 10-18, 19-21, 36-39.
João Paulo
II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I), Palabra,
Madri 1996, 181-218.
Leituras
recomendadas
Santo
Agostinho, Confissões, livro XII.
São Tomás
de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 44-46.
São
Josemaria, Homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevistas com
Mons. Josemaria Escrivá, 113-123.
Joseph
Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.
João Paulo
II, Memoria e identidade, Ed. Objetiva, 2005.
________________
[1] Entre
muitas outras intervenções, cf. Bento XVI, Discurso aos
membros da Cúria Romana, 22-12-05; Fé, Razão e universidade (Discurso
em Regensburg), 12-09-06; Ângelus, 28-01-07.
[2] Cf.
São Tomás, De Potentia, q. 3, a. 3, co.; o Catecismo segue
este mesmo esquema.
[3] Cf.
São Tomás, Super Sent., lib. 1, d. 14, q. 1, a. 1, co.: “são a
causa e a razão da processão (procedência) das criaturas”.
[4] Por
isso se diz que Deus não tem necessidade de instrumentos para criar, já que
nenhum instrumento possui a potência infinita necessária para criar. Decorre
daí, também, que quando se fala, por exemplo, do homem como criador, ou,
inclusive, como capaz de participar do poder criador de Deus, o emprego do
adjetivo “criador” não é analógico, mas metafórico.
[5] Este
ponto aparece com frequência nos ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, na
Homilia de Regensburg, 12-09-06; Discurso em Verona,
19-10-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma,
22-02-2007 etc.
[6] Tanto
o racionalismo cientificista como o fideísmo científico necessitam uma correção
por parte da filosofia. Além disso, há que evitar, da mesma forma, a falsa
apologética de quem vê forçadas concordâncias, buscando nos dados fornecidos
pela ciência uma verificação empírica ou uma demonstração das verdades da fé,
quando, na verdade, como dissemos, trata-se de dados que pertencem a métodos e
disciplinas distintas.
[7] Cf.
João Paulo II, Carta Encíclica Dominum et vivificantem, 18-05-1986,
10.
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