A vocação de Maria narrada como se fosse um filme
Há filmes
que vimos tantas vezes que somos capazes de repetir alguns de seus diálogos de
memória. Muitos são ambientados em lugares onde nunca estivemos, mas que nos
parecem muito familiares. A anunciação é um desses filmes com os quais temos
familiaridade.
20/07/2023
Há dois mil
anos existia uma pequena casa de tijolo incrustada na rocha e que foi o cenário
em que se realizou o maior acontecimento da história da humanidade. Ainda que
não tenhamos ido lá, esse recanto – que nunca teria constado em livros e nem
sequer em mapas – foi objeto da imaginação de gerações de cristãos e são
incontáveis os artistas que, com mais ou menos verossimilhança, plasmaram-no em
suas obras.
Com certeza
teremos ouvido muitas vezes o diálogo (cfr. Lc 1, 26-38) que uma jovem de nome
Maria e o arcanjo Gabriel, enviado por Deus, mantiveram entre aquelas paredes.
Uma troca de palavras à qual podemos voltar sempre (fazemos isso todos os dias
ao recitar o ângelus), pois se trata de um ponto alto na aliança entre Deus e
os homens.
Um coração
que ora
Podemos
entrar nesta casa com a imaginação em um dia que está começando a raiar. É uma
manhã cálida de primavera e o silêncio ainda reina nas ruelas de Nazaré,
interrompido apenas esporadicamente por passos, pelo trote de um burrico ou por
um diálogo em voz baixa. Maria, como sempre, acordou cedo. Antes de ir buscar
água no poço, gosta de reservar uns minutos à oração. Pode assim elevar o
coração a Javé e dar-lhe graças pelo dom de um novo dia. Sua meditação flui
como um rio, “manso e largo”[1], sem ruído de palavras.
Repete o Shemá Israel[2] e muitas vezes a
sua oração é inspirada nos salmos do rei Davi.
Maria sabe
que a memória é um componente essencial da fé do povo eleito. É constante na
Bíblia a exortação dos escritores sagrados a Israel para que conserve a
recordação da providência divina[3]. Ela havia refletido
numerosas vezes sobre esses textos: “Nossa Mãe meditara longamente sobre as
palavras das mulheres e dos homens santos do Antigo Testamento, que esperavam o
Salvador, e sobre os acontecimentos de que tinham sido protagonistas. Admirara
aquele cúmulo de prodígios, o esbanjamento da misericórdia de Deus sobre o seu
povo”[4]. Habituada como estava
desde a infância a conversar com Javé na intimidade do seu coração, considerava
a sua proteção paternal e como seu desígnio de salvação ia se desenvolvendo
desde o início dos tempos. Havia pedido em sua oração, com insistência, pela
vinda do Messias prometido.
Apesar da
sua juventude, Maria aprendeu a fazer silêncio para contemplar a presença
divina em sua alma. Agrada-lhe ponderar em seu coração[5] os grandes e
pequenos acontecimentos, para avaliá-los sob o prisma da Providência. Não
surpreende, por isso, pensar que o anjo Gabriel, quando apareceu para fazer-lhe
a maior proposta que pode ser feita a uma criatura, a encontrasse recolhida em
oração[6]. “Não há melhor forma
de rezar do que ficar como Maria em uma atitude de abertura, de coração aberto
a Deus: ‘Senhor, o que você quiser, quando você quiser e como você quiser’.
Quer dizer, o coração aberto à vontade de Deus”[7].
A humildade
da cheia de graça
O
mensageiro divino saúda a Maria com reverência e entusiasmo: “Alegra-te, cheia
de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1, 28). O texto sagrado afirma que “ficou
perturbada com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da
saudação” (Lc 1, 29). Não é a visita de um ser angélico que surpreende a Virgem
Maria, mas as palavras com as quais se dirige a ela: “O mensageiro,
efetivamente, saúda Maria como "cheia de graça"; e chama-lhe assim,
como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua interlocutora com o
nome que lhe é próprio segundo o registo terreno: "Miryam" (= Maria);
mas sim com este nome novo: "cheia de graça"”[8]. É revelado a ela o
nome que Javé pensou para a sua Mãe desde toda eternidade, aquele que melhor a
descreve. Por contraste, Ela tem consciência de ser tão pequena diante da
grandeza do Criador! E é precisamente esta humildade de Maria que cativa a Deus
e a converte em objeto da sua predileção: “O segredo de Maria é a humildade.
Foi a humildade que atraiu o olhar de Deus sobre ela. O olhar humano procura
sempre a grandeza e fica deslumbrado com o que é ostensivo. Deus, ao contrário,
não olha para as aparências, Deus olha para o coração (cf. 1 Sm 16, 7) e a
humildade o encanta: a humildade do coração encanta Deus”[9].
Gabriel
continua sua embaixada: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça
diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome
de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe
dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de
Jacó, e o seu reino não terá fim” (Lc 1, 30-33). “Ne timeas, Maria! Não
temas, Maria! Também podemos considerar essas palavras dirigidas a nós: não
tenha medo. São João escreve algo surpreendente em sua primeira carta:
"quem teme não é perfeito no amor" (1 Jo 4, 17), que São Josemaría
traduzia assim: "quem tem medo, não sabe amar" (Forja, n.
260). Senhor, nós queremos saber amar, crescer no amor”[10].
A jovem,
que desde a infância escutou a promessa messiânica, compreende bem as palavras
do mensageiro celeste. E apesar de ter feito a promessa de entregar totalmente
a Deus a sua alma e o seu corpo, descobre naquele momento que foi a escolhida,
entre todas as mulheres de Israel, para converter-se na mãe do Messias. Como
faz habitualmente, ela põe em jogo todos os seus talentos para discernir a
vontade divina. Abre a inteligência à mensagem recebida e procura compreender
como tornar compatível esse pedido de Deus com o desejo que sente no coração de
ser toda dele: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1,
34). Não duvida que o plano divino vai se realizar. Desejou sempre seguir a
vontade de Javé, mas quer entender como a providência encaminhará os
acontecimentos e como ela pode responder com generosidade e com plena adesão do
coração. “Maria não foi um instrumento puramente passivo nas mãos de Deus, mas
cooperou para a salvação dos homens com fé e obediência livres”[11].
A espera de
um sim
Gabriel
prossegue: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do altíssimo te cobrirá com sua
sombra. Por isso, o menino que vai nascer será chamado santo, Filho de Deus”
(Lc 1, 35). E acrescenta um dado surpreendente: “Também Isabel, tua parenta,
concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada
estéril, porque para Deus nada é impossível” (Lc 1, 36,37). O anjo resolve a
dúvida: o fruto do ventre de Maria será obra do Espírito Santo. Nestas simples
palavras está contida a primeira revelação da fé trinitária no Novo Testamento.
E a Virgem Maria é a primeira criatura a prestar assentimento a esta verdade,
que forma o conteúdo central do dogma cristão. Como pregou Santo Agostinho,
antes de conceber em seu seio, Maria concebe Jesus em seu coração: “Ela
acreditou em Cristo e o concebeu mediante a fé. Realiza-se primeiro a vinda da
fé ao coração da Virgem, e a seguir vem a fecundidade ao seio da mãe”[12].
O anjo
oferece um sinal à Senhora ao falar da sua prima Isabel, a esposa de Zacarias,
sacerdote que mora em Ain-Karim. Isabel também recebeu uma grande graça divina
e está a ponto de dar à luz um filho, apesar de ser estéril e de ter
ultrapassado há tempo a idade de ser mãe. Maria compreende que Isabel, além de
necessitar de sua ajuda no fim de sua gravidez, é a confidente ideal com quem
compartilhar a maravilha que Javé está a ponto de realizar em suas entranhas e
na sua vida.
A seguir,
vem o silêncio. São apenas uns segundos, mas parece que, nesse pequeno quarto,
o tempo e a eternidade se fundem, ultrapassando os limites do possível. Toda a
história da salvação depende dos lábios de Maria, a redenção de milhões de
almas, desde Adão até o último homem que pisar esta terra. O anjo aguarda com
expectativa que ela preste o seu consentimento[13]. Maria fecha os olhos
por um instante e se recolhe em oração. Compreende agora como os acontecimentos
da sua breve existência se encaminharam para aquele momento e todas as peças da
sua vida, cada talento e graça recebidos, e inclusive a dor, ganham um sentido
novo ao ouvir essa proposta divina. Sabe que não será fácil, pensa em José e
também intui que muitos não entenderão a sua situação, mas já comprovou que
Deus é capaz de resolver cada prova ou cada obstáculo, como fez com o seu povo
durante a travessia no deserto do Sinai, quando dividiu as águas do mar
Vermelho. Não se sente digna de um dom tão imenso, alegra-se, porém, de
comprovar mais uma vez como o Senhor tem predileção pelos anawin, pelos
pequenos. “Ela sobressai entre os humildes e pobres do Senhor, que esperam
confiadamente e recebem dele a salvação”[14].
Se não
tivesses aberto...
Maria de
Nazaré eleva o olhar e fixa os olhos em Gabriel, enquanto um sorriso se esboça
em seus lábios. A surpresa, a ternura, e um sutil gesto de emoção aparecem no
seu semblante, enquanto responde: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim
segundo a tua palavra” (Lc 1, 38) “Ao encanto destas palavras virginais, o
Verbo se fez carne”[15]. Maria disse que sim
e, embora na aparência nada tenha mudado, a partir desse instante o Filho do
Altíssimo foi concebido em seu seio. “Nesse momento produz-se o grande milagre:
Deus se faz homem”[16]. O céu explode numa
festa. E é tanta a felicidade e a pressa de Gabriel, que parece ir embora sem
se despedir: “E o anjo afastou-se dela” (Lc 1, 38).
Esta cena
revela o imenso amor de Deus por suas criaturas, mas também mostra como conta
com a correspondência humana para realizar o seu plano de salvação. Maria
faz-nos ver até que ponto Deus ama e respeita a liberdade do homem e deseja a
sua colaboração para que a redenção continue a realizar-se em todas as almas.
“Ó Maria, nós vemos em vós, a força e a liberdade do homem; pois foi após a
deliberação da augusta Trindade, que um anjo vos foi enviado para anunciar o
mistério dos conselhos divinos e para solicitar o vosso consentimento. Antes de
descer em vosso seio, o Filho de Deus se dirigiu à vossa liberdade; Ele
aguardou na soleira de vossa vontade, Ele submeteu à vossa deliberação o desejo
de habitar em vós e não teria jamais vivido em vosso seio se vós não tivésseis
dito: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua
palavra" (Lc I, 38 Deus Todo-Poderoso batia à vossa porta, e se vós não
lhe tivésseis aberto a vossa vontade, ele não teria tomado a natureza humana”[17].
Nosso
agradecimento à santíssima Virgem por ter dito que sim à chamada de Deus nunca
será suficiente. Em É Cristo que passa, refletindo sobre “a
realidade do carinho de tantos cristãos à Mãe de Jesus”, São Josemaría comenta:
“Sempre pensei que este carinho era uma correspondência de amor, uma prova de
agradecimento filial. Porque Maria está muito unida à máxima manifestação do
amor de Deus: a Encarnação do Verbo”[18].
[1] Caminho, n.
145.
[2] Dt 6, 4.
[3] Cfr. Sl 78 ou Dt
4, 9.
[4] Amigos de Deus, n.
241.
[5] Cfr. Lc 2, 19.51.
[6] Cfr.Santo
Rosário, comentário ao primeiro mistério gozoso.
[7] Francisco,
Audiência, 18/11/2020.
[8] São João Paulo
II, Redemptoris Mater, n. 8.
[9] Francisco,
Ângelus, 15/08/2021.
[10] Do Padre,
Anotações de uma meditação, 25/03/2023.
[11] Const.
Dogmática Lumen Gentium, n. 56.
[12] Santo Agostinho,
Sermão 293, PL. 38, 1327.
[13] Um texto que
descreve de um modo belíssimo este momento é de autoria de São Bernardo de
Claraval, um grande devoto de Santa Maria: Das Homilias em louvor da
Virgem Mãe, de São Bernardo, abade; (Hom. 4,8-9: Opera omnia, Edit.
Cisterc. 4, [1966], 53-54). Inclui-se na liturgia das horas do dia 20 de
dezembro.
[14] Const.
Dogmática Lumen gentium, n. 55.
[15] Santo Rosário,
comentário ao primeiro mistério gozoso
[16] Do Padre,
Anotações de uma meditação, 25/03/2023.
[17] De las Oraciones
de santa Catalina de Siena, virgen y doctora (OR, XI, Anunciación 1379).
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