Primeira Pregação da Quaresma do
cardeal Cantalamessa
"Nós, porém, encontramo-nos
aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou matrimonial,
mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não desperdiçar, se
quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de Deus, são
muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é oferecida em
seu posto de serviço".
Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU O PÃO DA VIDA”
Primeira Pregação da Quaresma de 2024
No início
destas pregações da Quaresma, retomemos o diálogo entre Jesus e os apóstolos em Cesaréia de Filipe:
Jesus foi à
região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem
os homens ser o Filho do Homem?”. Eles responderam: “Alguns dizem que é
João Batista; outros, que é Elias; outros, que é Jeremias ou um dos profetas:
Então disse-lhes: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu
és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,13-16).
De todo o
diálogo, interessa-nos, pelo momento, apenas e exclusivamente, a segunda
pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Não a tomemos, contudo, no
sentido com que esta pergunta é normalmente entendida; isto é, como se a Jesus
interessasse saber o que pensa dele a Igreja, ou o que os nossos estudos de
teologia nos dizem dele. Não! Tomemos essa pergunta como deve ser tomada toda
palavra que sai da boca de Jesus, isto é, como se dirigida, hic et nunc,
a quem a escuta, individualmente, pessoalmente.
Para
realizar este exame, deixemo-nos ajudar pelo evangelista João. Em seu
Evangelho, encontramos toda uma série de declarações de Jesus, os famosos Ego
eimi, “Eu Sou”, com os quais ele revela o que pensa, ele, de si mesmo, quem
diz, ele, ser: “Eu sou o pão da vida”, “Eu sou a luz do mundo”, e assim por
diante. Veremos cinco destas autorrevelações e nos perguntaremos cada vez se
ele é realmente para nós aquilo que ele afirma ser e como fazer para que o seja
sempre mais.
Será um
momento para se viver de modo particular. Isto é, não com o olhar voltado para
o exterior, aos problemas do mundo e da própria Igreja, como somos levados a
fazer em outros contextos, mas um olhar introspectivo. Um momento, então,
intimista e separado e, por isso, egoístico? Totalmente o contrário! É um
evangelizar-nos para evangelizar, um preencher-nos de Jesus para falar dele
“por redundância de amor”, como as primitivas Constituições da minha Ordem
Capuchinha recomendavam aos pregadores; isto é, por íntima convicção, não
apenas para cumprir um mandato.
*
* *
Iniciemos
pelo primeiro destes “Eu Sou” de Jesus que encontramos no Quarto Evangelho, no
capítulo sexto: “Eu sou o pão da vida”. Escutemos primeiramente a parte do
trecho que mais diretamente nos interessa:
Eles
perguntaram: “Que sinal realizas para que o vejamos, e creiamos em ti? Que obra
fazes? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está
escrito: ‘Deu-lhes de comer o pão do céu’”. Jesus respondeu: “Em verdade,
em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu. Meu Pai é quem
vos dá o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e
dá vida ao mundo”. Eles então pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão!”.
Jesus lhes disse: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim nunca mais terá fome, e
quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6,30-35).
Uma palavra
sobre o contexto. Jesus multiplicara anteriormente cinco pães de cevada e dois
peixes para saciar cinco mil homens. Depois se retirou para fugir do entusiasmo
do povo, que quer fazê-lo rei. A multidão o procura e o encontra do outro lado
do lago.
Neste ponto
começa o longo discurso com o qual Jesus procura explicar “o sinal do pão”.
Quer fazer entender que há um outro pão a ser buscado, do qual aquele material
é, justamente, um “sinal”. É o mesmo procedimento usado com a mulher Samaritana
no capítulo IV do Evangelho. Ali, Jesus quer conduzir a mulher a descobrir uma
outra água, além daquela física que sacia a sede apenas por um breve tempo;
aqui, quer conduzir a multidão a buscar um outro pão, diferente daquele
material que sacia apenas por um dia. À Samaritana que pede para ter aquela
água misteriosa e espera a vinda do Messias para obtê-la, Jesus responde: “Sou
eu, que falo contigo” (Jo 4,26). À multidão que agora faz o mesmo pedido pelo
pão, responde: “Eu sou o pão da vida!”.
Perguntamo-nos:
como e onde se come este pão da vida? A resposta dos Padres da Igreja era: em
dois “lugares” ou dois modos: no sacramento e na Palavra, isto é, na Eucaristia
e na Escritura. Havia, é verdade, acentos diversos. Alguns, como Orígenes e,
entre os latinos, Ambrósio, insistem mais sobre a Palavra de Deus. “Este pão
que Jesus parte – escreve Santo Ambrósio comentando a multiplicação dos pães –
significa misticamente a palavra de Deus que, distribuída, aumenta. Ele nos
deus as suas palavras como pães que se multiplicam em nossa boca enquanto os
degustamos”[1].
Outros, come Cirilo de Alexandria, acentuam a interpretação eucarística. Nenhum
deles, contudo, pretendia falar de um modo excluindo o outro. Fala-se da
Palavra e da Eucaristia, como das “duas mesas” preparadas por Cristo. Na Imitação
de Cristo, lê-se:
Confesso
que, enquanto estou detido no cárcere deste corpo, necessito de duas coisas:
alimento e luz. Por isso me destes, Senhor, a mim, fraco, o vosso sagrado
corpo, para sustento da alma e do corpo, e “pusestes a vossa palavra qual
cadeia diante de meus pés” (Sl 118,105). Sem estas duas coisas, não poderia bem
viver; porque a palavra de Deus é a luz da minha alma e vosso Sacramento o pão
da vida. Podem ser chamadas duas mesas, colocadas de um e outro lado do tesouro
da Santa Igreja[2].
A afirmação
unilateral de um destes dois modos de comer o pão da vida excluindo o outro é
fruto da nefasta divisão ocorrida no cristianismo ocidental. Da parte católica,
acabara por se tornar de tal forma preponderante a interpretação eucarística ao
ponto de fazer do capítulo sexto de João quase o equivalente à narrativa da
instituição da Eucaristia. Lutero, por reação, afirmou o contrário, ou seja,
que o pão da vida é a palavra de Deus; ele é distribuído mediante a pregação e
comido mediante a fé[3].
O clima
ecumênico que se instaurou entre os fiéis em Cristo nos permite recompor a
síntese tradicional presente nos Padres. Não há dúvida de que o pão da vida
chega a nós mediante a palavra de Deus e, em particular, as palavras de Jesus
no Evangelho. Também a sua resposta ao tentador nos recorda isso: “O
homem não vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt
4,4). Mas como não ver no discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum também uma
referência à Eucaristia? Todo o contexto evoca um banquete: fala-se de comida e
bebida, de comer e beber, do corpo e do sangue. As palavras: “Quem não comer
a minha carne e não beber o meu sangue...” recordam muito de perto as
palavras da instituição (“Tomai, comei, isto é o meu corpo” e “Tomai, bebei:
este é o meu sangue”), para se poder negar qualquer relação entre elas.
Se na
exegese e na teologia se assiste a uma polarização e, às vezes – eu dizia –, a
uma contraposição entre o pão da palavra e o eucarístico, na liturgia a sua
síntese foi sempre vivida pacificamente. Desde os tempos mais remotos, por
exemplo, em São Justino, Mártir, a Missa compreende dois momentos: a liturgia
da Palavra, com leituras tiradas do Antigo Testamento e das “memórias dos
apóstolos”, e a liturgia eucarística, com a consagração e a comunhão.
Hoje
podemos retornar, eu dizia, à síntese originária entre Palavra e Sacramento.
Nesta linha, devemos, antes, dar um passo à frente. Consiste em não limitar o
comer a carne e beber o sangue de Cristo apenas à Palavra e apenas ao
sacramento da Eucaristia, mas em vê-lo atuado em cada momento e aspecto da
nossa vida de graça.
Quando São
Paulo escreve: “Para mim, de fato, o viver é Cristo” (Fl 1,21), não pensa em um
momento particular. Para ele, Cristo é, realmente, em todos os modos da sua
presença, pão da vida; “come-se” com a fé, a esperança e a caridade, na oração
e em tudo. O ser humano é criado para a alegria e não pode viver sem alegria,
ou sem a esperança dela. A alegria é o pão do coração. E também o Apóstolo
busca a verdadeira alegria – e exorta os seus a busca-la – no Senhor Jesus
Cristo: “Gaudete in Domino semper, iterum dico, gaudete”: “Alegrai-vos
sempre no Senhor! Repito, alegrai-vos” (Fl 4,4).
Jesus é pão
de vida eterna não só pelo que dá, mas também – e antes de
tudo – pelo que é. A Palavra e o Sacramento são os meios;
viver dele e nele é o fim: “Como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo
Pai, também o que comer de mim viverá por mim” (Jo 6,57). No
hino Adoro te devote, que tem alimentado por séculos a piedade e a
adoração eucarística dos católicos, há uma estrofe que é uma paráfrase desta
palavra de Jesus. No original, que muitos de nós certamente recordam, ela soa
assim:
O memoriále
mortis Dómini,
Panis vivus vitam praestans hómini,
praesta meae menti de te vívere,
et te illi semper dulce sápere.
Em
português pode ser traduzida assim:
Ó memorial
da morte do Senhor,
Pão vivo que dá vida aos homens,
Fazei que minha alma viva de Vós,
E que a ela seja sempre doce este saber
_____________
Tradução de
Frey Ricardo Luiz Farias
Notas
[1] Cf.
Ambrósio, In Lucam, VI,86.
[2] Imitação
de Cristo, IV,11.
[3] Cf.
Lutero, Sobre o Evangelho de João, 231.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário