Primeira Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"Nós, porém, encontramo-nos
aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou matrimonial,
mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não desperdiçar, se
quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de Deus, são
muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é oferecida em
seu posto de serviço".
Todo o
discurso de Jesus tende, portanto, a esclarecer que a vida é aquela que ele dá:
não vida da carne, mas vida do Espírito, a vida eterna. Não é, porém, nesta
linha que eu gostaria de prosseguir a minha reflexão, nos poucos minutos que me
restam. Em relação ao Evangelho, há sempre duas operações a se fazer
respeitando rigorosamente a sua ordem: primeiro, a apropriação, depois, a
imitação. Temos nos apropriado até agora do pão da vida mediante a fé e o
fazemos cada vez que recebemos a Comunhão. Trata-se de ver agora como
traduzi-los na prática em nossa vida.
Para fazer
isso, colocamo-nos uma simples pergunta: Como ele, Jesus, se tornou pão de vida
para nós? A resposta, deu-nos ele mesmo no Evangelho de João: “Em verdade,
em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só;
mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24). Sabemos bem a que aludem
as imagens de cair na terra e apodrecer. Toda a história da Paixão está contida
nelas. Devemos buscar ver o que essas imagens significam para nós. Jesus, de
fato, com a imagem do grão de trigo não indica apenas o seu destino pessoal,
mas o de cada seu verdadeiro discípulo.
Não se pode
escutar a palavra dirigida à Igreja de Roma pelo bispo Inácio de Antioquia sem
nos comover e sem permanecer atônitos, vendo o que a graça de Cristo é capaz de
fazer de uma criatura humana:
Deixai que
eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou
trigo de Deus, e serei moído... Suplicai a Cristo por mim, para que eu, com
esses meios, seja vítima oferecida a Deus. Não vos dou ordens como Pedro e
Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado [4].
Antes dos
dentes das feras, o bispo Inácio experimentou outros dentes que o moíam, não
dentes de feras, mas de homens: “Desde a Síria até – escreve – luto contra as
feras, por terra e por mar, de noite e de dia, acorrentado a dez leopardos, a
um destacamento de soldados; quando se lhes faz bem, tornam-se piores ainda”[5].
Isto tem algo a dizer também para nós. Cada um de nós tem, em seu ambiente,
destes dentes de feras que o moem. Santo Agostinho dizia que nós, seres
humanos, somos “vasos de argila que se ferem uns com os outros”: lutea
vasa quae faciunt invicem angustias[6].
Devemos aprender a fazer desta situação um meio de santificação e não de
endurecimento do coração, de raiva e lamentação!
Uma
sentença frequentemente repetida em nossas comunidades religiosas afirma Vita
communis mortificatio maxima: “viver em comunidade é a maior de todas as
mortificações”. Não só a maior, mas também a mais útil e mais merecedora de
tantas outras mortificações de própria escolha. Esta sentença não se aplica
apenas a quem vive em comunidades religiosas, mas em toda convivência humana.
Onde ela se realiza no modo mais exigente é, na minha opinião, o matrimônio, e
devemos ficar cheios de admiração diante de um matrimônio levado adiante com
fidelidade até a morte. Passar a vida inteira, dia e noite, lidando com a
vontade, o caráter a sensibilidade e as idiossincrasias de uma outra pessoa,
especialmente em uma sociedade como a nossa, é algo de grande e, se feito com
espírito de fé, já deveria ser qualificado como “virtude heroica”.
Nós, porém,
encontramo-nos aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou
matrimonial, mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não
desperdiçar, se quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de
Deus, são muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é
oferecida em seu posto de serviço. Menciono apenas uma ou duas que considero
válidas para todos.
Uma ocasião
é aceitar sermos contrariados, renunciar a nos justificar e querer ter sempre
razão, quando não é pedido pela importância da coisa. Uma outra é suportar
alguém, sujo caráter, modo de falar ou de fazer nos dá nos nervos, e fazê-lo
nos irritar interiormente, pensando melhor que também nós talvez sejamos para
alguém tal pessoa. O Apóstolo exortava os fiéis de Colossos com estas palavras:
“Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão
e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se
um tiver queixa contra o outro” (Cl 3,12-13). O que é mais difícil
para “moer” em nós não é a carne, mas o espírito, isto é o amor próprio e o
orgulho, e estes pequenos exercícios servem magnificamente ao objetivo.
Hoje
infelizmente existe na sociedade uma espécie de dentes que moem sem piedade,
mais cruelmente que os dentes de leopardo de que falava o mártir Santo Inácio.
São os dentes dos meios de comunicação e das chamadas redes sociais. Não quando
eles relevam as distorções da sociedade ou da Igreja (nisso merecem todo o
respeito e a estima!), mas quando se enfurecem contra alguém por tomada de
partido, simplesmente porque não pertence ao próprio lado. Com maldade, com
intuito destrutivo, não construtivo. Coitado de quem acaba hoje neste moedor,
seja ele um leigo ou um eclesiástico!
Neste caso,
é lícito e um dever fazer valer as próprias razões nos lugares apropriados e,
se isso não for possível, ou então se ver que não serve a nada, não resta a um
fiel senão unir-se a Cristo flagelado, coroado de espinhos e no qual cuspiram.
Na Carta aos Hebreus, lê-se esta exortação aos primeiros cristãos, que pode
ajudar em ocasiões semelhantes: “Pensai pois naquele que enfrentou uma
tal oposição por parte dos pecadores, para que não vos deixeis abater pelo
desânimo” (Hb 12,3).
É algo
difícil e doloroso ao máximo, sobretudo quando no meio disso está a própria
família natural ou religiosa, mas a graça de Deus pode fazer – e frequentemente
tem feito – de tudo isso ocasião de purificação e santificação. Trata-se de ter
confiança de que, no fim, como aconteceu para Jesus, a verdade triunfará sobre
a mentira. E triunfará melhor, talvez, com o silêncio, mais do que com as mais
aguerridas autodefesas.
_______________
Tradução de
Frey Ricardo Luiz Farias
Notas
[4] Cf.
Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, IV,1.
[5] Cf.
Ib. V,1.
[6] Cf.
Agostinho, Discursos, 69,1 (PL 38, 440).
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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