Primeira Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"Nós, porém, encontramo-nos
aqui no contexto da Cúria, que não é uma comunidade religiosa ou matrimonial,
mas de serviço e de trabalho eclesial. As ocasiões para não desperdiçar, se
quisermos também nós sermos moídos para nos tornarmos trigo de Deus, são
muitas, e cada um deve identificar e santificar aquela que lhe é oferecida em
seu posto de serviço".
O objetivo
final do deixar-se moer não é, porém, natureza ascética, mas mística; não serve
tanto para mortificar a si mesmo, mas para criar a comunhão. É uma verdade
esta, que tem acompanhado a catequese eucarística desde os primeiros dias da
Igreja. Está presente já na Didaqué (IX,4), um escrito dos
tempos apostólicos. Santo Agostinho desenvolve este tema de modo estupendo em
um seu discurso ao povo. Ele põe em paralelo o processo que leva à formação do
pão que é o corpo eucarístico de Cristo e o processo que leva à formação do seu
corpo místico que é a Igreja. Dizia:
Lembrai-vos
um instante o que era uma vez, quando estava ainda no campo, esta criatura que
é o trigo: a terra a fez germinar, a chuva a nutriu; depois houve o trabalho do
homem que a trouxe para a eira, a debulhou, a peneirou e a depositou nos
celeiros; daí, levou-a para moê-la e cozinha-la e, assim, finalmente, tornou-se
pão. Agora pensai novamente em vós mesmos: não existíeis e fostes criados,
fostes trazidos à eira do Senhor, fostes debulhados... Quando destes vossos
nomes para o batismo, começastes a ser moídos pelos jejuns e pelos exorcismos;
depois, finalmente viestes à água fostes modelados e vos tornastes uma só
coisa; sobrevindo o fogo do Espírito Santo, fostes cozidos e vos tornastes pão
do Senhor. Eis o que recebestes. Como, portanto, vedes que é um o pão
preparado, assim também sois vós uma só coisa, amando-vos, conservando a mesma
fé, uma mesma esperança e indivisa caridade”[7].
Entre os
dois corpos – o eucarístico e o místico da Igreja – não há somente semelhança,
mas também dependências. É graças ao mistério pascal de Cristo operante na
Eucaristia que nós podemos encontrar a força de nos deixar moer, dia após dia,
nas pequenas (e às vezes nas grandes!) circunstâncias da vida.
*
* *
Concluo com
um episódio realmente ocorrido, narrado em um livro intitulado “O preço a pagar
por me tornar cristão”, escrito em francês e traduzido em várias línguas. Ele
serve, melhor do que longos discursos, para nos dar conta da potência encerrada
nos solenes “Eu Sou” de Jesus no Evangelho e, particularmente, daquele que
comentei nesta primeira meditação.
Há algumas
décadas, em uma nação do Oriente Médio, dois soldados – um cristão e o outro
não – encontraram-se juntos para fazer guarda a um depósito de armas. O cristão
frequentemente tirava, às vezes também à noite, um pequeno livro e o lia,
atraindo a curiosidade e a ironia do companheiro de armas. Certa noite, este
último tem um sonho. Encontra-se diante de uma torrente que, porém, não
consegue atravessar. Vê uma figura envolta de luz que lhe diz: “Para
atravessá-la, precisas do pão da vida”. Fortemente impressionado pelo sonho,
pela manhã, sem saber porque, pede, melhor, força o companheiro a lhe dar
aquele seu livro misterioso (tratava-se naturalmente dos Evangelhos). Abre-o, e
cai sobre o evangelho de João. O amigo cristão o aconselha a começar pelo de
Mateus, que é mais fácil de entender. Mas ele, sem saber porque, insiste. Lê
tudo avidamente, até chegar ao capítulo sexto. Mas, neste ponto, é bom escutar
diretamente a sua narrativa:
Chegando ao
capítulo sexto, detenho-me, tocado pela força de uma frase. Por um momento,
penso ser vítima de uma alucinação, e volto a olhar o livro, no ponto onde me
detive... Acabei de ler estas palavras: “...o pão da vida”. As mesmas palavras
que ouvi há algumas horas em meu sonho. Releio lentamente a passagem na qual
Jesus, voltando aos discípulos, diz: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim
nunca mais terá fome”. Desencadeia em mim, justamente naquele instante,
algo de extraordinário, como uma explosão de calor e de bem-estar... Tenho a
impressão de ser arrebatado, levado ao alto pela força de um sentimento jamais
provado, uma paixão violenta, um amor desmedido por este homem Jesus, de quem
falam os Evangelhos”[8].
O que, em
seguida, esta pessoa teve que sofrer por sua fé, confirma a autenticidade da
sua experiência. Nem sempre a palavra de Deus age em um modo assim explosivo,
mas o exemplo, repito, mostra-nos que força divina está encerrada nos solenes
“Eu Sou” de Cristo, que, com a graça de Deus, repropomo-nos comentar nesta
Quaresma.
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Tradução de
Frey Ricardo Luiz Farias
Notas
[7] Cf.
Agostinho, Sermo 229 (Denis 6) (PL 38, 1103).
[8] Cf.
Joseph Fadelle, Le prix à payer. Les Editions de l’Oeuvre, Paris
2010.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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