A
Segunda Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"O
espírito do mundo age de modo análogo. Penetra em nós por mil e um canais, como
o ar que respiramos, e, uma vez dentro, muda os nossos modelos operacionais: ao
modelo “Cristo”, entra no lugar o modelo “mundo”. O mundo também tem a sua
“trindade”, os seus três deuses, ou ídolos para se adorar: prazer, poder,
dinheiro. Todos depreciamos os desastres que eles provocam na sociedade, mas
estamos certos de que, em nossa pequenez, nós mesmos não somos completamente
imunes a eles?"
Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU A LUZ DO MUNDO”
Segunda Pregação da Quaresma de 2024
Nestas
pregações de Quaresma, propomo-nos a meditar sobre os grandes “Eu Sou” (Ego
eimi) pronunciados por Jesus no Evangelho de João. Há, porém, uma pergunta
que se põe, a propósito deles: foram realmente pronunciados por Jesus, ou são
devidos à reflexão posterior do Evangelista, como tantas partes do Quarto
Evangelho? A resposta que hoje praticamente todos os exegetas dariam a esta
pergunta é a segunda. Estou convencido, porém, de que tais afirmações são “de
Jesus”, e procuro explicar porque.
Há uma
verdade histórica e uma verdade que podemos chamar de real ou
ontológica. Tomemos um desses “Eu Sou” de Jesus, por exemplo, o que diz: “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Se, por alguma improvável nova
descoberta, se viesse a conhecer que a frase foi, de fato e historicamente,
pronunciada pelo Jesus terreno, não é isto que a tornaria “verdadeira”. Pode-se
sempre pensar, de fato, que quem a pronuncia seja um iludido e se engane!
(Muitos acreditaram ser a luz do mundo antes e depois dele!). O que a torna
“verdadeira” é o fato de que – na realidade e acima de toda contingência
histórica – ele é o caminho, a verdade e a vida.
Neste
sentido mais profundo e mais importante, todas e cada uma das afirmações que
Jesus faz no Evangelho de João são “verdadeiras”, também aquela em que diz:
“Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,58). A definição clássica de verdade
é “correspondência entre a coisa e a ideia que se tem dela” (adaequatio
rei et intellectus); a verdade revelada é correspondência entre a realidade
e a palavra inspirada que a proclama. As grandes palavras que meditaremos são,
portanto, de Jesus: não do Jesus histórico, mas do Jesus que – como tinha
prometido aos discípulos (Jo 16,12-15) – nos fala com a autoridade do
Ressuscitado, mediante o seu Espírito.
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* *
Da sinagoga
de Cafarnaum na Galileia, passemos hoje ao templo de Jerusalém, na Judeia, onde
Jesus se dirigiu por ocasião da festa das Tendas. Aqui se desenvolve o debate
com “os judeus”, no qual está inserida a autoproclamação de Jesus, que, nesta
meditação, queremos acolher:
Eu sou a
luz do mundo.
Quem me segue, não caminha na escuridão,
mas terá a luz da vida (Jo 8,12).
Esta
palavra é tão impregnante e tão bela, que os cristãos, de imediato,
escolheram-na como uma das designações preferidas de Cristo. em muitas
basílicas antigas – como nas catedrais de Cefalù e de Monreale, na Sicília – no
mosaico da ábside, Jesus é representado como o Pantocrator, ou
Senhor do universo. Segura um livro aberto diante de si e mostra a página onde
estão escritas, em grego e latim, justamente aquelas palavras: “Egô eimi to
phôs tou cosmou – Ego sum lux mundi”.
Para nós,
hoje, Jesus “luz do mundo” se tornou uma verdade acreditada e proclamada, mas
houve um tempo em que ela não era somente isso; era uma experiência vivida,
como nos acontece às vezes, quando, após um blackout, a luz volta
improvisamente, ou quando, pela manhã, ao abrir a janela, somos inundados da
luz do dia. A Primeira Carta de Pedro o define um passar “das trevas para a sua
luz maravilhosa” (1Pd 2,9; Col 1,12ss). Evocando o momento da sua conversão e
do seu batismo, Tertuliano o descreve com a imagem da criança que sai do útero
escuro da mãe e se assusta ao contato com o ar e com a luz. “Saindo – escreve –
do ventre comum de uma mesma ignorância, [nós, cristãos,] sobressaltamos à luz
da verdade”: ad lucem expavescentes véritatis”[1].
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Pomo-nos
imediatamente a pergunta: o que significa para nós, aqui e agora, aquela
palavra de Jesus: “Eu sou a luz do mundo”? A expressão “luz do mundo” tem dois
significados fundamentais. O primeiro significado é que Jesus é a luz do mundo,
pois a sua é a suprema e definitiva revelação de Deus à humanidade. Afirma-o de
modo mais claro e em tom solene o início da Carta aos Hebreus:
Muitas
vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas.
Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo (Hb
1,1-2).
A novidade
consiste no fato único e irrepetível que o revelador é, ele próprio, a
revelação! “Eu sou a luz”, não eu trago a luz
ao mundo. Os profetas falavam em terceira pessoa: “Assis diz o Senhor!”, Jesus
fala em primeira pessoa: “Eu vos digo!”. Em 1964, Marshall McLuhan lançou o
famoso slogan: “O meio é a mensagem”, significando com isto que o meio pelo
qual uma mensagem é difundida condiciona a própria mensagem. Este ditado se
aplica única e transcendentemente a Cristo. Nele o meio de transmissão é
verdadeiramente a mensagem; o próprio mensageiro é a mensagem!
Este, eu
dizia, é o primeiro significado da expressão “luz do mundo”. O segundo
significado é que Jesus é a luz do mundo dado que lança luz sobre o mundo, isto
é, revela o mundo a si mesmo; faz ver cada coisa na sua verdade, pelo que é
diante de Deus. Reflitamos sobre cada um dos dois significados, partindo do
primeiro, isto é, de Jesus como suprema revelação da verdade de Deus.
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Tradução Frei Ricardo Farias, OFMCap
[1] Cf. Tertuliano, Apologeticum, 39,9.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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