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sábado, 2 de março de 2024

A Segunda Pregação da Quaresma 2024 do cardeal Cantalamessa - Parte 2

2ª Pregação da Quaresma - Cardeal Cantalamessa (VATICAN NEWS)

A Segunda Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

"O espírito do mundo age de modo análogo. Penetra em nós por mil e um canais, como o ar que respiramos, e, uma vez dentro, muda os nossos modelos operacionais: ao modelo “Cristo”, entra no lugar o modelo “mundo”. O mundo também tem a sua “trindade”, os seus três deuses, ou ídolos para se adorar: prazer, poder, dinheiro. Todos depreciamos os desastres que eles provocam na sociedade, mas estamos certos de que, em nossa pequenez, nós mesmos não somos completamente imunes a eles?"

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU A LUZ DO MUNDO”
Segunda Pregação da Quaresma de 2024

Razão e fé

Deste ponto de vista, a luz que é Cristo tem desde sempre um concorrente aguerrido: a razão humana. Falamos disso não com intuito polêmico ou apologético, ou seja, para saber o que responder aos adversários da fé (eu faltaria com meu propósito inicial), mas para nós mesmos nos confirmarmos na fé.

Os debates sobre fé e razão – mais exatamente, seria dizer sobre razão e revelação – são anulados, a meu ver, por uma radical assimetria. O fiel compartilha com o ateu a razão; o ateu não compartilha com fiel a fé na revelação. O fiel fala a língua do interlocutor ateu; este não fala a língua do homólogo fiel.

Justamente por isso, o debate mais convincente sobre o tema “fé e razão” é aquele que acontece na mesma pessoa, entre a sua fé e a sua razão. Temos exemplo célebres na história do pensamento humano, em homens nos quais não se pode pôr em dúvida uma idêntica paixão tanto pela fé quanto pela razão: Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Blaise Pascal, Søren Kierkegaard, John Newman, aos quais poderíamos acrescentar, com plena razão, João Paulo II, Bento XVI... A conclusão a que chegou cada um deles é que o ato supremo da razão é reconhecer que há algo que a supera. Este é também o ato que mais honra a razão porque indica a sua capacidade de transcender a si mesma. A fé não se opõe à razão, mas supõe a razão, exatamente como “a graça supõe a natureza”[2].

Há também um outro equívoco a ser esclarecido a respeito do diálogo entre fé e razão. A crítica de fundo dirigida ao fiel é que ele não pode ser objetivo, a partir do momento em que a sua fé lhe impõe, em princípio, a conclusão à qual chegar, e constitui, por isso, uma pré-compreensão e um pré-juízo. Não se leva em conta que o mesmo “pré-juízo” age, em sentido oposto, também no cientista ou filósofo não crente, e de modo bem mais radical. Se ele dá por certo que Deus não existe, que não o sobrenatural e que não é possível o milagre, também a sua conclusão não poderá ser senão uma, e já dada em princípio.

Eis um exemplo entre muitos. Em base à visão que tinha da realidade, poderia Freud admitir que o “amor universal” de Francisco de Assis tivesse um componente sobrenatural, chamado graça? Certamente não, e, de fato, ele faz disso uma “derivação do amor genital”. Francisco de Assis, escreve ele, “é aquele que foi mais longe ao utilizar o amor em vantagem do seu sentimento interior de felicidade”[3]. Em outras palavras, amava Deus, os homens, toda a criação e, de modo especialíssimo, Jesus Crucificado, porque isto o gratificava, o fazia estar bem!

O homem moderno, no lugar da verdade, põe como valor supremo a busca da verdade. Lessing escreveu: “Se Deus tivesse segurado toda a verdade na sua direita, e na sua esquerda apenas a aspiração sempre viva à verdade, ainda que na condição de estar eternamente no erro, e me dissesse: ‘Escolhe!’, inclinar-me-ia humildemente à esquerda dizendo: ‘Esta, Pai! A pura verdade pertence só a ti’”[4].

O motivo disso é simples. Enquanto se está em fase de busca, é ele, o homem, aquele quem conduz o jogo, o protagonista, enquanto que ao lado da Verdade reconhecida como tal, não tem mais escape e deve prestar “a obediência da fé”. A fé põe o absoluto, enquanto a razão gostaria de prosseguir indefinidamente a discussão. Como a bela Sherazade de As mil e uma noites, a razão humana tem sempre uma nova história para contar, para retardar a própria rendição.

Há somente duas possíveis resoluções para a tensão entre fé e razão: ou restringir a fé “dentro dos limites da pura razão”, como se propunha o filósofo Kant, ou infringir os limites da pura razão para vagar por um horizonte sem limites. Um pouco como o Ulisses dantesco que, tendo chegado às colunas de Hércules, consideradas então o limite terra, decide não se deter, mas fazer “dos remos asas na empresa ousada”[5].

Devo, contudo, ser coerente com a promessa feita no início. O discurso sobre fé e razão, antes de ser um debate entre “nós e eles”, entre fiéis e não fiéis, deve ser um debate “entre nós e nós”, isto é, entre os próprios fiéis. A pior espécie de racionalismo, de fato, não é aquele externo, mas o interno. São Paulo escrevia aos Coríntios:

Também a minha palavra e a minha pregação não se apoiavam na persuasão da sabedoria, mas na manifestação do Espírito e do poder, para que a vossa fé se fundamentasse não na sabedoria humana mas no poder de Deus (1Cor 2,4-5).

E ainda:

Pois as armas do nosso combate não são carnais. São armas poderosas aos olhos de Deus, capazes de derrubar fortalezas, destruir sofismas e todo orgulho intelectual que se levanta contra o conhecimento de Deus e capazes de subjugar todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo (2Cor 10,3-5).

Frequentemente se tem verificado, infelizmente, o que o Apóstolo temia. A teologia, especialmente no Ocidente, tem sempre mais se afastado do poder do Espírito, para favorecer a sabedoria humana. O racionalismo moderno tem pretendido que o cristianismo apresentasse a sua mensagem de modo dialético, submetendo-o, ou seja, em tudo e por tudo, à busca e à discussão, de modo que ele pudesse se colocar no quadro geral – aceitável também filosoficamente – de um esforço comum e sempre provisório de autocompreensão do homem e do universo. Assim fazendo, porém, o anúncio de salvação sobre Cristo morto e ressuscitado era subjugado a uma diversa e suposta instância superior. Não era mais um querigma, mas somente uma hipótese.

O perigo inerente neste modo de fazer teologia é que Deus se torna objetivado. Torna-se um objeto do qual se fala, não um sujeito com o qual – ou na presença do qual – se fala. Um “ele” – ou, pior, um isso –, jamais um “tu”. É o contragolpe de se ter feito da teologia uma “ciência”. O primeiro dever de quem faz ciência é ser neutral diante do objeto da própria pesquisa; mas podemos ser neutrais quando se trata de Deus? Foi este o motivo principal que me induziu, a uma certa altura da vida, a abandonar o ensinamento acadêmico da teologia, para me dedicar, em tempo integral, à pregação. A consequência daquele modo de fazer teologia, de fato, é que ela se torna sempre mais um diálogo com a elite acadêmica do momento, e sempre menos um nutrimento para a fé do povo de Deus.

Desta situação, só se sai acompanhando o estudo com a oração, falando Deus, não falando sempre e só de Deus. Santo Agostinho realizou a sua teologia mais duradoura falando com Deus nas Confissões. “Se és teólogo, rezarás realmente, e se rezas realmente, serás teólogo”, dizia um antigo Padre do deserto[6]. Ajuda também a contemplação e a imitação da Mãe de Deus. Em sua vida terrena, ela não teve nada a ver com ideias abstratas sobre Deus e sobre seu filho Jesus, mas só com suas vivas realidades.

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Tradução Frei Ricardo Farias, OFMCap

Notas:
[2] Cf. Tomás de Aquino, S.Th. I, q.2, a.2, ad 1.
[3] Cf. Sigmund Freud, Il disagio della civiltà, IV.
[4] Cf. Gotthold Lessing, Eine Duplik, I, in Werke 3, Zrich 1974, p.149.
[5] Cf. Dante Alighieri, Inferno, XXVI,125.  
[6] Cf. Evágrio do Ponto, De oratione, 60 (PG 79,1180).

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF