A
Segunda Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"O
espírito do mundo age de modo análogo. Penetra em nós por mil e um canais, como
o ar que respiramos, e, uma vez dentro, muda os nossos modelos operacionais: ao
modelo “Cristo”, entra no lugar o modelo “mundo”. O mundo também tem a sua
“trindade”, os seus três deuses, ou ídolos para se adorar: prazer, poder,
dinheiro. Todos depreciamos os desastres que eles provocam na sociedade, mas
estamos certos de que, em nossa pequenez, nós mesmos não somos completamente
imunes a eles?"
A fé e o mundo
Acenei
acima a um segundo significado da expressão “luz do mundo”, e é a ele que
gostaria de dedicar a última parte da minha reflexão, também porque é aquela
que nos diz respeito mais de perto. Trata-se, eu dizia, do significado, por
assim dizer, instrumental, em que Jesus é luz do mundo: ou seja, dado que lança
luz sobre todas as coisas; em relação ao mundo, faz o que faz o sol em relação
à terra. O sol não ilumina e não revela a si mesmo, mas ilumina todas as coisas
que estão sobre a terra e deixa ver cada coisa sob a justa luz.
Também
neste segundo sentido, Jesus e o seu Evangelho têm um concorrente que é o mais
perigoso de todos, sendo um concorrente interno, um inimigo dentro de casa. A
expressão “luz do mundo” muda completamente de significado conforme se toma a
expressão “do mundo” como genitivo objetivo, ou como genitivo subjetivo; ou
seja, dependendo se o mundo for o objeto iluminado ou, ao invés, o sujeito que
ilumina. Neste segundo caso, não é o Evangelho, mas o mundo que deixa ver todas
as coisas à própria luz. O Evangelista João exortava os seus discípulos com
estas palavras:
Não ameis o
mundo, nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do
Pai. Porque tudo o que há no mundo – o desejo da carne, o desejo dos olhos e a
ostentação da riqueza – não vem do Pai, mas do mundo (1Jo
2,15-16).
O perigo de
conformar-se a este mundo – a mundanização – é o equivalente, no âmbito
religioso e espiritual, ao que, no âmbito social, chamamos de secularização.
Ninguém (eu, menos do que todos) pode dizer que este perigo não paira também
sobre ele ou ela. Um dito atribuído a Jesus em um antigo escrito não canônico
afirma: “Se não jejuardes do mundo, não descobrireis o reino de Deus”[7].
Eis o jejum mais necessário hoje do que todos: jejuar do mundo, nesteuein
tô kosmô, segundo o dito citado!
O mundo de
que falamos e ao qual não devemos nos conformar não é o mundo criado e amado
por Deus, não são os homens do mundo, dos quais, ao invés, devemos sempre ir ao
encontro, especialmente os pobres, os últimos, os sofredores. O “misturar-se”
com este mundo do sofrimento e da marginalização é, paradoxalmente, o melhor
modo de “separar-se” do mundo, pois é ir lá, donde o mundo refulge com todas as
suas forças. É separar-se do próprio princípio que rege o mundo, que é o
egoísmo.
Antes do
que nas obras, a mudança deve ocorrer no modo de pensar. São Paulo exortava os
cristãos de Roma com as palavras:
Não vos
conformeis com este mundo, mas transformai-vos,
pela renovação da mente,
para que possais distinguir o que é da vontade de Deus,
o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito (Rm
12,2).
Na origem
da mundanização, há muitas causas, mas a principal é a crise de fé. É a fé o
terreno de choque primário entre o cristão e o mundo. É pela fé que o cristão
não é mais “do” mundo. Entendido em sentido moral, o “mundo” é tudo o que se
opõe à fé. “Pois todo o que foi gerado de Deus vence o mundo”, escreve
João na Primeira Carta, “a nossa fé” (1Jo 5,4). Na Carta aos Efésios, a
este respeito, há uma palavra sobre a qual vale a pena nos determos um pouco
mais. Diz:
E vós
estáveis mortos por causa de vossas transgressões e pecados, nos quais andastes
outrora, seguindo o Mentor deste mundo, seguindo o Chefe das potências dos
ares, o espírito que atualmente está agindo nos rebeldes (Ef 2,1-2).
O exegeta
Heinrich Schlier fez uma análise penetrante deste “espírito do mundo”,
considerado por Paulo o antagonista direto do “Espírito que vem de Deus” (1Cor
2,12). Um papel decisivo desempenha nisso a opinião pública. Hoje podemos
chamá-lo, em sentido literal, de “espírito que está nos ares”, porque se
difunde sobretudo pelos ares, pelos meios de comunicação virtual.
Determina-se
– escreve Schlier – um espírito de grande intensidade histórica, ao qual o
indivíduo dificilmente consegue se subtrair. Reside no espírito geral, é
considerado óbvio. Agir, ou pensar, ou dizer algo contra ele é considerado
coisa insensata ou mesmo uma injustiça ou um delito. Então, não se ousa mais
pôr-se diante das coisas e das situações e, sobretudo, da vida, de maneira
diversa de como ele as apresenta... Sua característica é interpretar o mundo e
a existência humana à sua maneira[8].
É o que
chamamos de “adaptação ao espírito dos tempos”. A moral da ópera mozartiana
“Così fan tutte” (“Assim fazem todas”). Hoje possuímos uma imagem nova para
descrever a ação corrosiva do espírito do mundo, o vírus de computador. Pelo
pouco que sei, o vírus é um programa malignamente projetado que penetra no
computador pelas vias mais insuspeitadas (troca de e-mails, sites da
internet...), e, uma vez dentro, confunde ou bloqueia as operações normais,
alterando os chamados “sistemas operacionais”.
O espírito
do mundo age de modo análogo. Penetra em nós por mil e um canais, como o ar que
respiramos, e, uma vez dentro, muda os nossos modelos operacionais: ao modelo
“Cristo”, entra no lugar o modelo “mundo”. O mundo também tem a sua “trindade”,
os seus três deuses, ou ídolos para se adorar: prazer, poder, dinheiro. Todos
depreciamos os desastres que eles provocam na sociedade, mas estamos certos de
que, em nossa pequenez, nós mesmos não somos completamente imunes a eles?
A nossa
maior consolação, nesta luta com o mundo que está fora de nós e aquele que nos
está dentro, é saber que Cristo continua, como ressuscitado, a rezar ao Pai por
nós com as palavras com que se despediu dos seus Apóstolos:
Não rogo
que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do
mundo, como eu não sou do mundo... Assim como tu me enviaste ao mundo, eu
também os enviei ao mundo... Eu não rogo somente por eles, mas também por
aqueles que hão de crer em mim, pela palavra deles (Jo
17,15-20).
__________________________
Tradução Frei Ricardo Farias, OFMCap
[7] Cf.
Clemente de Alexandria, Stromati, 111, 15; A. Resch, Agrapha,
48 (TU, 30, 1906, p. 68).
[8] Cf.
H. Schlier, Demoni e spiriti maligni nel Nuovo Testamento, in Riflessioni
sul Nuovo Testamento, Paideia, Brescia 1976, pp. 194ss (Ed. original in
“Geist und Leben 31 (1958), pp. 173-183).
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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