A terceira pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa
"Impusemo-nos em não falar,
nestas meditações, do que devemos fazer pelos outros, mas somente do que Jesus
é e faz por nós: de nos identificarmos com as ovelhas, mão com o pastor. Mas
devemos fazer uma pequena exceção nesta ocasião. Apesar de todas as exortações
do Evangelho, nem sempre está em nosso poder nos livrarmos do medo e da
angústia. Em contrapartida, está em nosso poder libertar alguém (ou ajudá-lo a
se libertar) deles."
Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“EU SOU O BOM PASTOR”
Terceira Pregação da Quaresma de 2024
Continuemos
a nossa reflexão sobre os grandes “Eu Sou” de Cristo no Evangelho de João.
Desta vez, Jesus não se apresenta a nós com símbolos de realidades físicas
inanimadas – o pão, a luz –, mas com um personagem humano, o pastor: “Eu – diz
– sou o bom pastor!”. Escutemos a parte do discurso em que está contida a
autoproclamação de Cristo:
Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá sua vida pelas ovelhas. O
mercenário, que não é pastor e a quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo
chegar, abandona as ovelhas e foge, enquanto o lobo as ataca e as dispersa. De
fato, ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom
pastor. Eu conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me
conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas (Jo
10,11-15).
A imagem de
Cristo “Bom Pastor” tem um lugar privilegiado na arte e nas inscrições
paleocristãs. O Bom Pastor é apresentado, segundo o módulo clássico, no
esplendor da juventude. Traz sobre as costas a ovelha, bem segura pelas patas.
A imagem joanina do bom pastor é já amalgamada com aquela sinótica do pastor
que vai em busca da ovelha perdida (Lc 15,4-7).
O contexto
da passagem sobre o bom pastor é o mesmo dos dois capítulos precedentes, isto
é, a discussão com “os judeus”, que acontece em Jerusalém, por ocasião da festa
das Tendas. Mas, em João, sabe-se que o contexto conta relativamente, porque,
diferentemente dos Sinóticos, ele não está preocupado em nos dar um relatório
histórico e coerente da vida de Jesus (que parece dar por conhecido), mas um
conjunto de “sinais” e ensinamentos do Mestre. Contudo, estes jamais aparecem
fora do tempo e do espaço, como acontece nos livros de teologia, mas situados
em lugares e tempos precisos (às vezes, mais precisos do que os próprios
Sinóticos), que lhes conferem um valor “histórico” no sentido mais profundo do
termo.
*
* *
Digamo-lo
também: a imagem do bom pastor, e aquelas vinculadas de ovelha e de rebanho,
realmente não estão na moda hoje em dia. Ao nos chamar de ovelhas, não teme
Jesus em ferir a nossa sensibilidade e ofender a nossa dignidade de homens
livres? O homem de hoje rejeita orgulhosamente o papel de ovelha e a ideia de
rebanho. Não se dá conta de como, porém, na realidade, ele viva a situação que
ele condena na teoria. Um dos fenômenos mais evidentes da nossa sociedade é a
massificação. Imprensa, televisão, internet, são chamados “meios de comunicação
de massa”, não só porque informam as massas, mas também porque
as formam, massificam.
Sem
perceber, deixamo-nos guiar supinamente por todo tipo de manipulação e de
persuasão oculta. Outros criam modelos de bem-estar e de comportamento, ideais
e objetivos de progresso, e as pessoas os adotam; vão atrás, com medo de perder
o passo, condicionados e sujeitados pela publicidade. Comemos o que nos dizem,
vestimos como impõe a moda, falamos como ouvimos falar. Nós nos divertimos
quando vemos um vídeo acelerado, com as pessoas que se movem por quadros,
rapidamente, como marionetes; mas é a imagem que teríamos de nós mesmos se nos
víssemos com um olhar menos superficial.
Para
entender em que sentido Jesus se proclama o bom pastor e nos chama de suas
ovelhas, é preciso referir-se à história bíblica. Israel foi, no início, um
povo de pastores nômades. Os Beduínos do deserto nos dão hoje uma ideia daquela
que um tempo foi a vida das tribos de Israel. Nesta sociedade, a relação entre
pastor e rebanho não é somente de tipo econômico, baseada no interesse.
Desenvolve-se uma relação quase pessoal entre o pastor e o rebanho. Dias e dias
passados juntos em lugares solitários, sem qualquer alma viva por perto. O
pastor acaba por conhecer tudo de cada ovelha; a ovelha reconhece a voz do
pastor, que frequentemente fala em voz alta com as ovelhas, como se fossem
pessoas. Isto explica como, para expressar sua relação com a humanidade, Deus
se serviu desta imagem, hoje ambígua. “Ó Pastor de Israel, dá ouvido, tu,
que conduzes José, como a uma ovelha”, reza o salmista (Sl 80,2).
Com a
passagem da situação de tribos nômades àquela de povo sedentário, o título de
pastor é dado, por extensão, também àqueles que fazem as vezes de Deus na
terra: os reis, os sacerdotes, os chefes em geral. Mas, neste caso, o símbolo
se divide: não evoca mais apenas imagens de proteção, de segurança, mas também
de exploração e opressão. Ao lado da imagem do bom pastor, aparece a do mau
pastor. No profeta Ezequiel, encontramos uma terrível denúncia contra os maus
pastores que apascentam apenas a si mesmos; nutrem-se de leite, vestem-se de
lã, mas não cuidam minimamente das ovelhas, as quais tratam “com dureza” (cf.
Ez 34,1ss). A esta denúncia contra os maus pastores, segue uma promessa: Deus
mesmo, um dia, assumirá o cuidado amoroso de seu rebanho:
Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a desgarrada, enfaixarei a
quebrada, fortalecerei a doente (Ez 34,16).
Jesus, no
Evangelho, retoma este esquema do bom e do mau pastor, mas com uma novidade.
“Eu – afirma – sou o bom pastor!”. A promessa de Deus tornou-se realidade,
superando toda expectativa.
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Tradução de Fr. Ricardo Farias
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt
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