Jejum e Ascese
01 de março de 2024
Na Bíblia tem um significado profundo a
prescrição do jejum, ou seja privação de alimento ou bebida com um fito
religioso. Trata-se de uma homenagem a Deus, acompanhada de preces. É um ato,
portanto, de fé e de notável humildade.
Jesus mesmo jejuou quarenta dias
e quarenta noites (Mt 4,2), enquanto seus discípulos não se entregavam a esta
prática e o questionaram a respeito. Sua resposta foi esta: “Podem porventura
jejuar os companheiros do esposo, enquanto o esposo está com eles? Todo o
tempo que têm consigo o esposo não podem jejuar. Mas virão os dias em que lhes
será tirado o esposo; e então nesses dias jejuarão” (Mc 2,18-21). Segundo os
melhores biblistas isto mostra que o verdadeiro jejum é o da fé, isto é, a
privação da presença visível de Jesus e sua permanente busca por entre as
incongruências da vida. Entretanto, enquanto o cristão espera a volta de
seu Redentor há lugar para práticas físicas do jejum penitencial como uma
maneira de mortificar o corpo e dispor o espírito para as ascensões
espirituais. Há, de fato, valores espirituais de rara valia nesta maneira de
agir. Hoje, na Igreja Católica, o jejum está restrito a dois dias:
Quarta-feira de Cinzas e
Sexta-feira Santa, mas o espírito penitencial deve abranger todos os dias do
ano, sobretudo as sextas-feiras, o que necessariamente não se trata de uma mera
abstenção de algum alimento. Qualquer ato penitencial se traduz numa disciplina
de vida, num auto domínio na relação corpo-espírito. Toda austeridade redunda
em benefício espiritual. A própria resistência ao sofrimento que é
sublimado com uma aplicação em benefício próprio e alheio é de extrema valia.
Não se trata nem da busca de um condenável angelismo, nem ainda de um funesto
masoquismo que seriam desvios lamentáveis. Atitudes duras
e incontroladas fogem inteiramente da mortificação evangélica. A
verdadeira penitência começa no interior de cada um com a repulsa absoluta do
pecado. Exteriormente ela é antes de tudo e sobretudo o cumprimento exato do
dever de cada hora, sempre penoso, fatigoso. Seria um grave erro alguém se
entregar a grandes sacrifícios, mas fugindo das obrigações cotidianas de seu
estado de vida. Adite-se que o necessário exercício da caridade traz consigo
louváveis abstenções como o suportar o próximo, o se privar de algo não
necessário à saúde e drenar tal economia para a ajuda ao mais necessitado, o
esforço muitas vezes penoso de se ir ao encontro de quem padece. Deixar a
comodidade para socorrer quem precisa, eis aí o que, realmente,
agrada muitíssimo a Deus. O desapego dos bens materiais é outra forma de
penitência. Como ensina o Apóstolo Paulo a ambição lança o batizado na
ruína e na perdição (1Tm 6,8-9). É que isto impede a busca de Deus que foi
sempre a meta de todos os que procuraram a perfeição prescrita por Cristo.
A acesse, assim concebida, é
transformadora e imprescindível para o progresso espiritual do epígono de
Jesus. É a renúncia colocada a serviço dos valores maiores. Ao se purificar
através da mortificação, o cristão saboreará grande paz e até seus sentidos
servir-lhe-ão de instrumentos para a posse mais total de Deus. O
verdadeiro cristão antecipa a vida gloriosa do céu onde todo o ser é
espiritualmente transformado, uma vez que passa a não viver escravizado às
exigências corporais, porque tem total domínio sobre si mesmo. No fundo de
toda esta experiência está o desejo de união com Jesus paciente e
padecente o que sobretudo os mártires realizaram em plenitude. Não se trata,
pois, de uma fuga do mundo, mas de uma transfiguração no mundo e das coisas
temporais em vista a um bem maior que é o reino de Deus. Eis por que o
autêntico asceta tem muito mais facilidade de se entregar à oração, pois está
muito mais apto para as realidades do espírito. A mortificação é deste modo a
prova definitiva do compromisso de secundar os dons salvíficos que o Espírito
Santo oferece para a construção de um mundo menos materializado, no qual se
realize inteiramente o vasto e rico projeto divino da felicidade de todos.
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