O desafio do “nós”
O Papa convida-nos a sermos construtores de novos vínculos sociais. Para
isso é imprescindível, além de pregar o Evangelho, procurar ser pessoalmente um
autêntico testemunho de caridade cristã.
25/03/2021
“Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14), disse Jesus em um de seus primeiros
discursos, do alto de um monte. Era um desafio ambicioso para os seus ouvintes,
que dificilmente teriam se ausentado da Palestina alguma vez e que, em muitos
aspectos, não eram melhores do que outros povos dos arredores. Como podiam
iluminar o mundo inteiro? O Papa Francisco recordou também certa vez que nós
batizados somos chamados a ser no mundo um “evangelho vivo”, a temperar todos
os ambientes com “uma vida santa”, com “o testemunho de uma caridade genuína”[1]. A
sua proposta ganha em nossos dias uma relevância especial ao considerar que os
cristãos, em alguns lugares do mundo, são uma imensa minoria, como
acontecia nos primeiros tempos da Igreja: para muitos homens e mulheres do
século XXI, a relação com um católico que pratica a sua fé será às vezes a
única oportunidade de aproximar-se do Evangelho. Isto implica uma enorme
oportunidade. Contamos, além disso, com uma garantia: a luz que aspiramos
transmitir a outros não é nossa, mas de Deus.
Essa luz tem certamente a ver com o conteúdo de uma mensagem que
gostaríamos de estender no mundo; mas também – e isso não é menos importante –
com o meio que a transmite e com o modo de fazê-lo. Os dois aspectos estão
intrinsicamente unidos, um influi no outro: nossa condição de discípulos de
Jesus manifesta-se ao mesmo tempo no quê e no como. Não
ignoramos que o cristianismo não é puro conhecimento, não consiste num saber
teórico nem numa soma de leituras: é, sobretudo, um modo de estar no mundo e de
relacionar-se com os outros que tem origem no encontro com Jesus Cristo.
Implica um empenho prático que, quando surge desse diálogo interior com Deus,
acaba por interpelar as pessoas próximas. São Josemaria resumiu-o em um dos
pontos iniciais de Caminho: “Oxalá fossem tais o teu porte e a
tua conversação que todos pudessem dizer ao ver-te ou ouvir-te falar: Este lê a
vida de Jesus Cristo”[2].
Por isso, a formação cristã não visa uma simples erudição doutrinal, e
sim levar-nos à identificação com Jesus. Estenderemos assim a boa nova através
de nossas palavras e especialmente com a nossa própria vida, como o próprio
Jesus fez. Este modo de estar no mundo não se opõe à convivência com os outros,
inclusive logicamente, os que podem estar mais longe. A proposta de Jesus é
magnânima, e mesmo revolucionária, representa uma das grandes novidades do
Evangelho: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os
que vos maldizem e orai pelos que vos injuriam” (Lc 6, 27-29). É sempre
possível olhar para essa mensagem e examinar até que ponto a tornamos nossa.
A diferença é um presente
Todos nós somos diferentes. Distinguimo-nos no aspecto físico, na voz,
na forma de pensar, no modo de interpretar a liberdade, nas soluções que
propomos para os conflitos da existência, e mesmo no modo de entender a
humanidade ou a própria vida. Diante dessa realidade, a nossa atitude não é
simplesmente tolerar a diferença, resignar-se com ela, aceitá-la como se fosse
um mal inevitável. A diversidade foi querida por Deus e, portanto, é uma
riqueza, uma manifestação da sua infinitude. As diferenças formam parte da
grandeza da criação, podemos e devemos beneficiar-nos delas. Amando os outros
como são, nós os amamos como Deus os ama. Ouvimos dizer tantas vezes que o amor
de Deus é incondicional, que talvez o alcance desse adjetivo
tenha se diluído um pouco. Trata-se, no entanto, de um desafio decisivo: o amor
de Deus supera e ultrapassa todas as nossas condições, por muito razoáveis que
nos pareçam. Converte-se por isso também num desafio, numa chamada para que
amemos incondicionalmente, sem preconceitos, sem antecedentes, sem exceções,
sem nenhum tipo de inércia.
Esse esforço levar-nos-á a evitar o risco de passar sutilmente do “sou
diferente” ao “sou melhor”, a afastar a tentação de converter-nos em critério
para medir os outros, perigo frequente em qualquer tipo de grupo humano, desde
um círculo de amigos até uma nação inteira. Esse “sou o melhor” pode induzir a
uma certa superioridade moral que aumenta a distância entre as pessoas até
criar, às vezes, fronteiras intransponíveis. São Josemaria, pelo contrário,
pensando no espírito do Opus Dei, pregou sempre que “a missão sobrenatural
que recebemos não nos leva a distinguir-nos e a separar-nos dos outros;
leva-nos a unir-nos a todos, porque somos iguais aos outros cidadãos da nossa
pátria”[3].
Além disso, é sempre possível descobrir no próximo qualidades que o tornam
melhor que nós. “São Tomás de Aquino, uma das mentes mais prodigiosas da
história da humanidade, disse-o claramente: ‘Em qualquer homem existe algum
aspecto pelo qual outros podem considerá-lo superior’. Há sempre alguém que de
algum modo nos supera e de quem podemos aprender”[4].
Decidir-se a procurar o outro
Os algoritmos das redes sociais – a fórmula que seleciona a informação
que recebemos – geram uma tendência a procurar, promover, compartilhar e
consumir somente notícias, comentários ou interpretações que reforçam as nossas
próprias ideias. Isto pode levar-nos muitas vezes a subestimar ou ignorar
opções alternativas ou experiências diferentes da nossa. O Papa Francisco
advertiu-nos contra este perigo: “O funcionamento de muitas plataformas acaba
frequentemente por favorecer o encontro entre pessoas com as mesmas ideias,
dificultando o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados
facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando
preconceitos e ódios”[5].
É sempre mais cômodo receber permanentemente confirmações do que
pensamos. A inércia afasta-nos das dúvidas em questões opináveis, extingue o
bom espírito crítico. As conversas difíceis custam a todos,
nem sempre ficamos à vontade quando abandonamos a segurança do conhecido. Por
isso, o caminho para encontrar o outro requer uma decisão pessoal, uma atitude
proativa. Procurar juntos a verdade através do diálogo, do conhecimento mútuo,
“É um caminho perseverante, feito também de silêncios e sofrimentos, capaz de
recolher pacientemente a vasta experiência das pessoas e dos povos”[6].
Nesse diálogo, nós, cristãos, sabemos bem que não se trata de mudar a
mensagem de Cristo nem de compará-la retoricamente com outras propostas em
busca de um ponto médio conciliador. Constituiria uma armadilha colocar o quê e
o como frente a frente numa luta teórica. Nós cristãos
queremos viver a mensagem de Cristo em sua integridade,
adquirir um novo modo de ser: esta é uma premissa substancial da nossa missão.
Por isso estamos abertos a conhecer, valorizar e aproveitar a experiência dos
outros.
Esta aspiração pode complicar-se quando as pessoas que pensam de modo
diferente adotam uma postura hostil. O desenlace da vida terrena de Jesus pode
ser um espelho para nós quando as dúvidas nos inquietarem. Descobriremos em sua
paixão e morte que essa incompreensão não deveria preocupar-nos muito. A
assimetria que o cristão assume ao conviver assim, tendo a cruz como o ponto de
partida da sua vida, encarna o discurso do Senhor sobre o amor aos inimigos. Mais
ainda, essa desproporção no trato com os outros pode ser uma manifestação
específica do cristianismo. Com palavras do próprio Jesus: “Se amais os que vos
amam, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores” (cfr. Lc
6, 32-33). Podemos aplicar isso também aos que nos compreendem – ou que nós
compreendemos – menos e às pessoas cujo trato pode ser para nós um pouco mais
difícil, pelo menos no princípio.
Jesus acolhe a samaritana
É razoável imaginar uma sintonia crescente entre Jesus e os apóstolos
conforme passam os meses juntos: são seus amigos, as pessoas mais próximas, as
mais favoráveis à sua missão. Mas vão aparecendo também nos evangelhos outros
homens e mulheres alheios aos interesses, à geografia e ao estilo de vida dos
doze. A samaritana, por exemplo. O diálogo de Jesus com ela é um dos mais
extensos do Evangelho. É uma conversa da qual Jesus se serve para reduzir
rapidamente as distâncias que os separam. Enquanto Pedro e os outros vão
procurar algo para comer, ele pede água a essa mulher e inicia uma conversa em
que faz os seus preconceitos e barreiras desaparecerem rapidamente. As palavras
do Mestre sacodem a alma da samaritana e, quando se despedem, ela se sente
impulsionada a compartilhar a sua descoberta com todos: “A mulher deixou o seu
cântaro, foi à cidade e disse àqueles homens: Vinde e vede um homem que me
contou tudo o que tenho feito. Não seria ele, porventura, o Cristo?” (Jo 4,
28-29). Havia-se convertido numa mulher apóstola de quem Deus se serviu para
que muitos samaritanos acreditassem em Jesus.
A relação do Senhor com a samaritana contém um ensinamento eloquente:
não devemos descartar ninguém. As distâncias entre ambos eram evidentes, mas o
desfecho do relato evangélico anima-nos a levar a Deus pessoas que podem
parecer-nos pouco inclinadas a isso. Jesus transformou rapidamente em um nós aquele
único encontro. Às vezes, as diferenças com as outras pessoas ou os juízos
apressados que fazemos delas se manifestam por meio de uma simples conjunção
adversativa: “é bom trabalhador, mas...”, “é muito generosa com o
seu tempo, mas...”, “é bastante agradável no trato, mas...”.
O mas será frequentemente inevitável, às vezes refletirá
apenas algumas situações externas. Devemos estar atentos para não o converter
numa desculpa para manter distância do outro.
Na hora de eliminar obstáculos, pensar na própria família traz uma chave
que talvez tenhamos experimentado pessoalmente. Os laços especialíssimos que
nos unem a nossos pais, irmãos ou filhos proporcionam um sentido diferente a
esse mas. O que antes representava uma objeção, inclusive uma
trincheira, serve-nos para unir, traz-nos uma razão lógica para não descartar
ninguém. Podemos ter tal ou qual diferença com uma pessoa, inclusive importante
para nós, “mas é meu irmão”, “mas é minha filha”, “mas é
meu pai”. A caridade consiste, de alguma forma, em aplicar este critério em
outros âmbitos. No caso da samaritana, Jesus transformou o mas em
um além disso. Um cristão é uma pessoa que acolhe. E a sua
acolhida tem mais sentido com os que vêm de mais longe. “Nós, tentando – dentro
de nossa pequenez – imitar o Senhor, também não ‘excluímos ninguém, não
apartamos nenhuma alma do nosso amor em Jesus Cristo. Por isso, vocês devem
cultivar uma amizade firme, leal e sincera – isto é, cristã – com todos os seus
colegas de profissão: mais ainda, com todos os seres humanos, quaisquer que
sejam suas circunstâncias pessoais’”[7].
A “revolução copernicana” do amor
Nesse empenho por construir pontes e fortalecer as relações com pessoas
diferentes, a alegria do cristão pode representar uma vantagem decisiva.
“Ganhar mais afabilidade, alegria, paciência, otimismo, delicadeza e todas as
virtudes que tornam a convivência amável é importante para que as pessoas
possam se sentir acolhidas e felizes”[8]. Uma
pessoa alegre interpela os outros com a sua própria vida, sem necessidade de
justificações teóricas prévias. Bento XVI considera que “A força com que a
verdade se impõe tem de ser a alegria, que é a sua expressão mais clara. Os
cristãos deveriam apostar nela e nela dar-se a conhecer ao mundo”[9]. Por
isso, em certo sentido, a alegria é uma responsabilidade neste mundo agitado e
mutante. A paciência é igualmente necessária, sobretudo com pessoas que possam
manifestar uma atitude um pouco hostil. “Oferecer a nossa amizade de maneira
autêntica, pressupõe a capacidade de arriscar, pois cabe a possibilidade de não
sermos correspondidos”[10]. E,
unido à paciência, é também imprescindível o respeito, que “não é uma
resignação educada diante dos defeitos dos outros, com a qual ficamos
protegidos atrás do nosso muro de defesa. Uma postura próxima, compreensiva,
magnânima, que nos permite olhar de verdade nos olhos de cada pessoa[11]”.
As manifestações anteriores fazem parte da caridade, que é o traço
fundamental da nossa relação com os outros. São Paulo já o experimentou: “Mesmo
que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a
ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não
tiver caridade, não sou nada” (1 Co 13, 2). Bento XVI também falou da
”revolução copernicana do amor” que consiste em entrar em uma nova dimensão da
caridade: Deus nos ama não porque sejamos bons ou tenhamos algum mérito, mas
porque Ele é bom. A imitação de Cristo neste aspecto permitir-nos-á amar não
apenas um pequeno círculo de pessoas e sim todos os homens e mulheres que Deus
colocou em nosso caminho. Nunca seremos plenamente conscientes do fruto desta
atitude: nunca saberemos até que ponto a proximidade, o carinho, a paciência e
o respeito ativaram desejos magnânimos nas pessoas que encontramos na vida.
Temos, no entanto, a convicção de que, para ser luz do mundo, não há nenhuma
estratégia de transmissão possível fora da caridade. São Josemaria sintetizou
isso: “De que tu e eu nos portemos como Deus quer – não o esqueças – dependem
muitas coisas grandes”[12].
***
Vivemos tempos propícios para a magnanimidade: o Papa Francisco usou a
parábola do bom samaritano para recordar-nos que devemos ser “construtores de
um novo vínculo social”[13],
para percebermos que todos os dias estamos diante da “opção de ser bons
samaritanos ou viajantes indiferentes que passam ao largo”[14]. O
exemplo daquele único caminhante que se deteve para ver um homem ferido na
beira da estrada recorda-nos que “hoje estamos diante da grande oportunidade de
expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si
a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos”[15]. O
bom samaritano constitui uma mensagem viva, mostra a identificação entre
o quê da sua alma e o como de seus atos.
Algumas vezes os preconceitos e as barreiras poderão parecer
insuperáveis. Há, no entanto, um recurso muito eficaz para desfazer rancores ou
posturas irredutíveis: a oração. Rezar por uma pessoa com fé e constância
une-nos a ela de modo especial e nos aproxima da proposta citada do evangelho:
rezar pelos inimigos ajuda a não ter inimigos, muda a nossa visão sobre
qualquer pessoa, também aquelas que talvez sejam desagradáveis para nós. São
Josemaria pedia diariamente a Deus na Santa Missa pelas pessoas que o tinham
prejudicado alguma vez[16]. É
uma proposta que parece resumida num ponto de Forja: “Considera o
bem que fizeram à tua alma os que, durante a tua vida, te prejudicaram ou
procuraram fazê-lo. Outros chamam inimigos a essas pessoas. Tu, procurando
imitar os santos, pelo menos nisso, e sendo muito pouca coisa para ter ou ter
tido inimigos chama-lhes benfeitores. E acontecerá que, à
força de pedir a Deus por eles, simpatizará com eles”[17].
Javier Marrodán
[1] Francisco,
Ângelus, 09/02/2014.
[2] São
Josemaria, Caminho, n. 2.
[3] São
Josemaria, Carta 1, n. 5a.
[4] Isabel
Sánchez, Mujeres brújula en un bosque de retos, Planeta,
Barcelona, 2020, p. 159.
[5] Francisco, Fratelli tutti,
n. 45.
[6] Ibid.
, n. 50.
[7] Mons.
Fernando Ocáriz, Carta Pastoral,
01/11/2019, n. 7. O texto entre aspas, na citação, pertence à carta
18 de São Josemaria.
[8] Ibid.,
n. 10.
[9] Bento
XVI, Opera Omnia, vol. 11, parte C, 11, 4.
[10] Mons.
Fernando Ocáriz, Carta Pastoral,
01/11/2019, n. 12.
[11]“Com um olhar de
carinho”, em www.opusdei.org.br
[12] São
Josemaria, Caminho, n. 775.
[13] Francisco, Fratelli tutti, n.
66.
[14] Ibid.
, n. 69.
[15] . Ibid.,
n. 77.
[16] Cfr. Javier Echevarría, Carta pastoral, 01/04/1999.
[17] São Josemaria, Forja, n. 802.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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