Os outros são nossos (2)
A correção
fraterna é um fruto da proximidade com a outra pessoa e pressupõe vê-la com a
amplitude com que Deus a vê.
15/06/2021
“Chegou,
pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto da propriedade que Jacó
tinha dado a seu filho José” (Jo 5,5). Esta viagem e este momento em particular
tinham sido cuidadosamente planejados por Jesus. Queria que a sua sede e a sede
da samaritana pudessem se encontrar junto do poço. É um ambiente propício ao
dom, tudo ali tem sabor de oferenda: a natureza, o poço, a água... No entanto,
Jesus procura um dom maior: quer a alegria e a paz de uma alma escolhida desde
a eternidade, embora nos últimos tempos, um tanto fugidia ao coração de Deus.
A
proximidade é o estilo de Deus
São
Josemaria dizia que “mais do que em 'dar', a caridade está em 'compreender'”[1], em tomar consciência dos problemas e
dificuldades dos outros. Quando procuramos ter esta atitude, as pessoas ou as
suas dificuldades não são alheias a nós, mas sim parte de nós mesmos. Cristo
não ficou fazendo cálculos de tempo ou oportunidade para ir ao encontro da
samaritana. Quem cuida do outro reconhece o dom que cada um é, contempla a
imagem de Deus que há nele, a infinidade do amor com que Jesus a ama. Cada um
de nós é um dom para os que estão perto, e descobrir isto é o primeiro passo
para podermos nos ajudar mutuamente. Jesus reconhece o dom que é a vida da
samaritana e por isso lhe pede de beber. Tem sede do seu amor.
O Papa vê a
origem desta atitude no fato de Jesus, anos antes, ter querido ser batizado
como um de nós, embora não precisasse: Cristo vai ao encontro do outro para o
compreender, para o acompanhar, e não o ajuda apenas exteriormente. “No
primeiro dia do seu ministério, Jesus oferece-nos assim o Seu manifesto
programático. Ele diz-nos que não nos salva de cima, com uma decisão
soberana ou um ato de força, um decreto, não: salva-nos vindo a nós e assumindo
os nossos pecados. É assim que Deus vence o mal do mundo: abaixando-se, e
assumindo-o sobre si mesmo. É também o modo como podemos elevar os outros: não
os julgando, não lhes dizendo o que fazer, mas estando perto deles, partilhando
o amor de Deus. A proximidade é o estilo de Deus para conosco”[2].
O fundador
do Opus Dei dizia que “a correção fraterna é parte do olhar de Deus, da
Sua providência amorosa”[3]. Quem cuida do seu irmão não julga os outros:
procura olhar para eles como Deus olha, e por isso, todos lhe parecem um
tesouro, procura guardá-los como algo precioso. “A correção fraterna nasce do
carinho. Manifesta que queremos que os outros sejam cada vez mais felizes”[4]. Esta certeza de procurar a sua felicidade
envolve-nos na vida deles com o máximo respeito à sua liberdade, porque só
assim o amor é verdadeiro. Ajudar um irmão nosso no caminho da santidade tem
mais a ver com uma calorosa e paciente noite de vigília, em que se espera a
ação de Deus, do que com uma fria supervisão. “Supervisar refere-se mais ao
cuidado da doutrina e dos costumes, enquanto velar se refere mais ao cuidado de
que haja sal e luz nos corações. Vigiar fala de estar alerta para o perigo
iminente, enquanto velar fala de acompanhar, com paciência, os processos em que
o Senhor vai gerindo a salvação do Seu povo”[5].
O coração
das pessoas importa
“Quando
vocês fizerem uma correção fraterna, devem amar os defeitos dos seus irmãos”[6], dizia também São Josemaria. Cuidar não é só
curar uma pequena ferida, mas olhar para a pessoa toda, amá-la no tempo,
projetada até ao céu. Neste sentido, é no coração do homem que se forjam as
boas ou as más ações, em conjunto (cf. Mt 15,19): isso é o que
nos interessa de forma especial, mais do que pequenos detalhes que muitas vezes
podem ser parte de uma maneira de ser. Quem quer ajudar não fica preso no
exterior, não avalia um aspecto isoladamente, mas olha para os acontecimentos à
luz desse desejo de santidade do outro, tirando as sandálias, porque está no
mais profundo da sua alma (cf. Ex 3, 5). Uma correção fraterna
exprime, de certa forma, a atitude de quem quer ajudar a descobrir os dons que
Deus quer nos dar nas mil e uma batalhas diárias: “Se conhecesses o dom de
Deus” (Jo 4, 10). Toda a ajuda se deve apresentar assim, como uma
lente para descobrir o dom que há em cada luta. Na correção fraterna, devemos
ser como alguém que vela ternamente pela santidade do outro, não como alguém
que vela pelo cumprimento de “certas atividades-padrão que nos tenhamos imposto
como tarefa”[7].
Jesus, por
exemplo, não se detém nas questões periféricas da vida da samaritana. Vai ao
núcleo da dor dessa alma predileta. Através da conversa, Jesus vai conduzindo-a
àquela verdade que já não a envergonha. É por isso que ela regressa à aldeia e
conta a todos como se sentiu libertada: “Vinde ver um homem que me disse tudo o
que eu fiz. Não será ele o Cristo?” (Jo 4, 29).
Jesus
ensina-nos que o olhar de Deus é integrador. Sabe ascender do aparentemente
insignificante até ao espiritual, grande e relevante. É paciente, vê tudo como
parte do conjunto de toda uma vida. “Neste nosso mundo impregnado de
individualismo, é necessário redescobrir a importância da correção fraterna,
para caminharmos juntos para a santidade (…). É um grande serviço ajudar, e
deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria
vida e seguir mais retamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um
olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa
(cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós”[8]. Este olhar não se detém apenas em detalhes
de pouca importância, não os aumenta, pelo contrário, enche-se de esperança
para grandes horizontes e, se for o caso, assim o transmite. Sabe que está
cumprindo um desejo expresso de Jesus, por isso tenta fazê-lo como Ele o faria:
“vai corrigi-lo, tu e ele a sós! Se ele te ouvir, terás ganho o teu irmão” (Mt 18,
15).
Através da
correção fraterna, apoiamos um irmão nos seus desejos de santidade concretos e
diários. Não é uma correção à totalidade da pessoa, pois Deus é que atua em
cada um, mas precisamente o contrário: é uma confirmação de que a santidade é
compatível com essa debilidade. Estas palavras de São João Crisóstomo podem
ajudar-nos: “O Senhor não diz: Acusem, discutam, procurem vingança, mas sim,
corrijam”[9]. Transmitimos aos outros o nosso apreço pela
sua luta, reconhecemos os seus sentimentos, apoiamo-los nessa batalha. Com a
nossa ajuda, recordamos-lhes que também contamos com a sua. Em cada correção
fraterna, há uma admiração discreta pelo nosso irmão e pelo trabalho da graça
na sua alma.
Fruto da
amizade
Para criar
um contexto em que este apoio seja possível, precisamos ter interesse sincero,
proximidade, cuidado real pela vida do outro. Quem presta favores de irmão e
conhece os outros em profundidade pode construir uma relação de mútua e
verdadeira amizade. A correção fraterna é um fruto natural deste solo cultivado
com paciência. Além disso, a empatia é necessária para poder entrar no coração
dos outros. Este serviço não se pode realizar a partir de fora, nem de longe.
Nos nossos dias, as operações cirúrgicas de grande precisão são realizadas com
instrumentos capazes de atuar no interior do doente, sem necessidade de
cirurgias invasivas. Poderia dizer-se que um irmão que cuida de outro procura
ir delicadamente até ao lugar sagrado que é o coração, sem invadir essa
intimidade.
É também
indispensável conhecer bem a pessoa que se vai corrigir. Há disposições de
temperamento que nos tornam muito diferentes uns dos outros, e que São
Josemaria considerava parte central desse “numerador muito diverso”[10] de pessoas, no Opus Dei e na
Igreja. Não é justo pensar que essa diversidade de reações só tem a ver com a
humildade de quem recebe a correção fraterna, ou com a sua suscetibilidade.
Para alguns, as palavras, mesmo as mais delicadas, soam facilmente a
reprovação; a esses, Jesus coloca-os diante da sua verdade com suavidade e
elogios. Fê-lo, por exemplo, com aquela mulher que Lhe ungiu os pés, em casa de
Simão, o fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Para outros, funciona ao contrário, se as
palavras não são especialmente claras, sentem falta de interesse e de afeto
verdadeiros. Marta precisou ouvir duas vezes o seu nome para descobrir que ela
também podia escolher a melhor parte, no seu trabalho (cf. Lc 10, 38-42). Tomé
precisou da proximidade física do Senhor para voltar a ser o Apóstolo fiel que
daria a vida pelo seu Mestre (cf. Jo 20, 26-29). Para o bom ladrão, a emenda
chegou sob a forma de um presente inesperado: naquela mesma tarde, ele estaria
com Jesus no Paraíso (cf. Lc 23, 39-43). E a samaritana precisou de tempo, de
uma conversa calma e tranquila, num lugar isolado: a sós com Jesus. Não há duas
pessoas iguais no Evangelho, e também não há duas reações iguais naqueles que
nos rodeiam.
“Quando
temos alguma coisa que não está bem, ajudam-nos com essa bendita correção
fraterna, que requer um carinho muito sobrenatural e muita força, porque às
vezes custa-nos muito praticar a correção fraterna. Avisam-nos com lealdade
sobre o que não está bem e dão os motivos. Por outro lado, nas tuas costas
dizem que és um grande santo, melhor que um pão doce. Não é belo isto, meus
filhos? Falamos de lealdade, e isto é lealdade humana. Não mentimos, não
afirmamos de outra pessoa que tem excelentes qualidades que lhe faltam, mas
jamais toleramos que seja criticada pelas costas. E as coisas desagradáveis
dizemos assim, carinhosamente, para que as corrija”[11].
* * *
São
Josemaria afirmava com grande convicção, como quem o experimentara na própria
pele, tanto de forma passiva como ativa: “Convence-te: quando fazes a correção
fraterna, estás ajudando com Jesus Cristo o teu irmão a levar a Cruz; uma ajuda
inteiramente sobrenatural, pois a correção fraterna é precedida, acompanhada e
seguida pela tua oração”[12].
Em Caná da
Galileia, Maria descobre que o vinho acabou e que isso pode comprometer a
alegria dos recém-casados. Como boa observadora que é, ela desencadeia
uma correção materna. Procura a solução, fala com Jesus, fala aos
que estavam servindo. Ajudar desta forma uma irmã ou um irmão significa obter
de Cristo o melhor vinho para eles. E isto só se consegue pondo as almas junto
d’Ele, falando com Jesus sobre elas, sabendo que quem mais as ama é Aquele que
empreendeu a missão de as salvar.
Diego
Zalbidea
[1] 1. São Josemaria, Caminho, n. 463.
[2] Papa Francisco, Ângelus, 10 de janeiro
de 2021.
[3] D. Javier Echevarría, Recordações sobre
Mons. Escrivá, Editora Quadrante, São Paulo, 2001.
[4] Mons. Fernando Ocáriz, Carta Pastoral, 1
de novembro de 2019, n. 16.
[5] Cardeal Bergoglio [agora: Papa
Francisco], 10ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 2 de outubro
de 2001.
[6] São Josemaria, Notas de uma reunião
familiar, 18 de outubro de 1972.
[7] Mons. Fernando Ocáriz, Carta Pastoral,
28 de outubro de 1920, n. 6.
[8] Bento XVI, Mensagem para a Quaresma de
2012, n. 1.
[9] São João Crisóstomo, Homiliae in
Matthaeum, n. 60, 1.
[10] Há lugar para todos no Opus Dei,
razão pela qual São Josemaria escreveu que embora o ‘denominador comum’ seja a
busca da santidade, existem “numeradores muito diversos (autonomia), que
correspondem às diferentes condições de cada caráter e temperamento, e até
mesmo ao caminho diferente por onde Jesus conduzirá as suas almas”.
Apontamentos Íntimos, n. 511.
[11] São Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 21-5-1970.
[12] D. Javier Echevarría, Recordações sobre Mons. Escrivá, Editora Quadrante, São Paulo, 2001.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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