A PRIMAZIA DA MISERICÓRDIA
Dom Antonio de Assis Ribeiro
Bispo auxiliar de Belém (PA)
Todos os anos a Igreja nos convida a meditar
solenemente sobre o Mistério da Misericórdia divina, no assim chamado, Domingo
da Misericórdia, a ser celebrado no segundo Domingo da Páscoa; foi instituído
por São João Paulo II no mês de maio do ano 2000. Nestas últimas décadas nossos
Papas têm nos convidado com insistência para a meditação sobre o amor de Deus.
Segundo Santa Faustina, a humanidade não terá paz, enquanto não se voltar para
a misericórdia divina.
A devoção à Divina Misericórdia e sua
dimensão pastoral
Apesar das desgraças das guerras, miséria,
corrupção, criminalidade organizada e de tantas outras formas de violência na
sociedade, contemplamos um forte crescimento da devoção à Divina Misericórdia
na Igreja Católica. É preciso, porém, muita atenção para que essa devoção não
reduza a Misericórdia Divina a uma pura prática de piedade. A forte carga
afetiva e moral dessa devoção deve ser preservada a todo custo para não cair no
esvaziamento do intimismo, sem compromissos morais e pastorais.
Para que isso não aconteça é necessário que
estejamos continuamente aprofundando teológica e moralmente o significado de
Misericórdia. Não há vínculo com a misericórdia divina um grupo do “terço da
misericórdia” que tenha características agressivas, que é fechado, intimista e
que se opõe ao pároco porque estimula o crescimento da paróquia na
sensibilidade missionária e caritativa. Alguém já viu esse filme?
Não é admissível a promoção do terço da
misericórdia e, ao mesmo tempo, a rejeição da Caritas e sem espírito
missionário. Aliás, a misericórdia divina é missionária. Jesus Cristo, o rosto
da Misericórdia de Deus Pai, é o Filho missionário que veio para salvar o
mundo. Portanto, a experiência da devoção à misericórdia sem impulso
missionário, sem movimento de saída para a promoção do Reino de Deus, torna-se
estéril.
O objetivo da devoção à Divina misericórdia, é
a contemplação do Amor de Deus que nos estimula no crescimento na santidade. A
Misericórdia é o próprio Deus que se manifesta com muitas virtudes de amor:
fazendo justiça aos oprimidos, dando pão aos famintos, libertando prisioneiros,
abrindo os olhos dos cegos, endireitando encurvados, protegendo os
desamparados… (cf. Sl 145,6-10); curando os corações despedaçados, cuidando dos
feridos (cf. Sl 146,3; Mt 11,4-6).
A misericórdia de Jesus Cristo, o missionário
do Pai, se manifestou através de muitas atitudes e iniciativas: da abertura a
todos, da acolhida incondicional aos mais desprezados, do perdão a todos os
pecadores, da cura dos doentes e deficientes; a misericórdia divina em Jesus de
Nazaré, se manifestou também através do seu espírito de tolerância, de diálogo,
presença salvadora em todos os contextos em que as pessoas viviam. Por isso
dizia: “Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do
seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim,
porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas
vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve.» (Mt
11,28-30).
A precedência da Misericórdia ao
sacrifício
Certa vez Jesus disse: “quero a misericórdia e
não sacrifício”; é uma frase do profeta Oseias (6,6). Jesus estava recordando a
seus discípulos uma grande conquista: aquela da compreensão de que a essência
da religião é a experiência de relação com alguém que tem uma identidade
específica: Deus é amor, Deus é misericórdia, Deus é bondade, Deus é o Sumo
Bem.
No decálogo (os dez mandamentos) aparece a
centralidade do amor que deve permear a vida do fiel. Esse amor deve ser vivido
em duas dimensões, para com Deus e o próximo. Todavia, a partir do decálogo
criaram muitos outros preceitos e isso começou a pesar sobre o povo chegando ao
legalismo. Inventaram muitas exigências…
Os profetas (Isaías, Oseias, Jeremias,
Ezequiel, Zacarias) deram uma grande contribuição para o retorno ao centro de
tudo que é o amor a Deus. Não basta contemplar a natureza, não lhe satisfaz
multiplicar cultos, não lhe agrada simplesmente obedecer a lei, não é
suficiente fazer sacrifícios. É necessário a experiência do amor, a prática da
justiça, da verdade, da bondade pessoal, da honestidade (cf. Is
1,1-17).
Jesus Cristo, missionário da
Misericórdia
Com a vinda de Jesus, o Filho de Deus,
chegamos ao ponto alto da revelação e da mais profunda compreensão de que Deus
é Amor. Em matéria religiosa, nada vale sem o amor. Jesus vai manifestar isso
com muita clareza, contando a parábola do Bom Samaritano, fazendo sérios
discursos contra a hipocrisia religiosa, falando do juízo final baseado na
caridade, denunciando o legalismo estéril. “Vinde, benditos de meu Pai,
recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo!
Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de
beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes;
doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes visitar-me” (Mt
25,34-36).
Os apóstolos continuaram na mesma linha, como
bons discípulos de Jesus. São João vai dizer que Deus é amor e quem ama deve
permanecer em Deus (cf. 1Jo 4,16). São Tiago vai afirmar que “o julgamento será
sem misericórdia para quem não tiver agido com misericórdia. Os misericordiosos
não têm motivo de temer o julgamento” (Tg 2,12-13).
São Paulo declara que “o amor é a plenitude da
lei” (Rm 13,10). Vai também escrever o hino do amor (cf. 1Cor 13). A Igreja
continua afirmando a mesma coisa; assim nós devemos continuar a nossa
compreensão e o exercício dessa verdade. A essência da vontade de Deus está na
prática da misericórdia que é, amor transbordante, generosa compaixão, justiça
que promove a vida.
Jesus Cristo é o portador e revelador da
Misericórdia do Pai; nas bem-aventuranças colocou a prática da misericórdia
como via de santidade: “felizes os misericordiosos, porque encontrarão
misericórdia” (Mt 5,7).
Enfim, sendo a devoção à Divina Misericórdia,
uma das mais significativas devoções relacionadas à pessoa do próprio Deus,
deve estar sempre permeada pelo nosso compromisso de sermos melhores,
profundamente humanos, bondosos, missionários. Essa devoção, quando bem
entendida e acompanhada, pode ser fonte de uma forte paixão missionária, pois a
Misericórdia de Deus se revelou como luz para iluminar quem vive nas trevas,
nas sombras da morte e para guiar nossos passos no caminho da paz (cf. Lc
1,79).
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
Qual relação existe entre a devoção à Divina
Misericórdia e a prática da Caridade?
Como a devoção à Divina Misericórdia pode ajudar a vida fraterna nas comunidades?
Por que há uma relação entre a Divina Misericórdia e a missionariedade da Igreja?
Fonte: https://www.cnbb.org.br/
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