O HOMEM PODE SER REDUZIDO A UMA MÁQUINA?
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
Baseado no livro “O Princípio da Humanidade”,
de Jean-Claude Guillebaud, discutimos os desafios em redefinir a humanidade do
homem na era da tecnociência. Guillebaud ressalta que, se no passado os
perigos para definir a humanidade do homem provinham dos totalitarismos e
tiranias, hoje são os avanços da pesquisa científica que colocam em questão a
essência do ser humano. A ciência contemporânea, ao ressuscitar questões
denunciadas por Primo Levi sobre a redução do homem ao animal, objeto ou coisa,
desperta preocupações sobre a possibilidade de equiparar o ser humano a uma
máquina. As ciências cognitivas não nos sugerem a hipótese do cérebro
eletrônico? A inteligência artificial não é uma concretização dessa hipótese
que mostra a proximidade do homem com a máquina?
As memórias do Holocausto servem como
lembretes sombrios do que acontece quando a humanidade da pessoa humana é
negada ou reduzida e, portanto, mostram que o homem jamais deve ser assemelhado
ao animal, à máquina ou à coisa.
A discussão sobre a redução do homem à máquina
é um dilema filosófico e ético que se intensificou com os avanços da tecnologia
e da ciência. Ela envolve questões fundamentais sobre a natureza do ser humano,
consciência, alma e espírito.
Guillebaud apresenta um embate entre duas
perspectivas: a teoria forte da inteligência artificial (AI), que argumenta não
haver diferença ontológica entre humanos e máquinas, e a teoria fraca, que
reconhece limitações e diferenças fundamentais. A ideia de que não há diferença
ontológica desafia concepções tradicionais sobre a singularidade e dignidade
humanas.
Os defensores da teoria forte da AI sugerem
que os humanos são essencialmente máquinas complexas, prevendo que as máquinas
realizarão todas as tarefas humanas. No entanto, críticos como Hubert L.
Dreyfus contestam essa visão, argumentando que o cérebro humano não opera como
um computador e que a compreensão da psique humana vai além das capacidades da
inteligência artificial.
Os elementos essenciais que definem a
humanidade não se limitam apenas às habilidades cognitivas. Há aspectos como a
subjetividade, emoções e responsabilidade moral, intrínsecos à profundidade da
experiência humana, que não podem ser replicados por máquinas e que distinguem
o homem delas, desafiando a ideia de uma redução simplista à tecnologia. O
computador, por mais avançado que seja, é incapaz de experimentar emoções ou
compreender a profundidade da experiência humana. A subjetividade faz a
diferença no homem, separando-o da máquina e do animal, e nenhum estudo
neurobiológico pode capturar completamente esse aspecto essencial da
humanidade.
O neurobiologista Antonio Damasio destaca a
importância das emoções na racionalidade humana e como estão ligadas à
percepção da alma ou espírito. Além disso, a crítica de Thomas Nagel sobre a
incompreensibilidade da experiência subjetiva de outros seres, como morcegos,
ressalta a lacuna na capacidade das teorias neurobiológicas em compreender a
profundidade da consciência humana.
As metáforas científicas, como a comparação do
homem com uma máquina, especialmente o computador, refletem nossa tentativa de
compreender aspectos complexos da inteligência humana, mas são limitadas e não
devem ser tomadas como explicações definitivas. Embora o computador possa
fornecer insights sobre certos aspectos do intelecto humano, é essencial
reconhecer as limitações dessa metáfora, pois ela não pode ser considerada uma
explicação completa nem dá fundamentos para negar a essência humana. A comparação
do homem com uma máquina não é uma verdade objetiva, mas sim uma construção que
reflete nossos próprios desejos e limitações. Em última análise, a
interpretação em sentido realístico da metáfora coloca em risco a compreensão
da verdadeira natureza e dignidade humanas.
Portanto, a afirmação da humanidade do homem não depende apenas da pesquisa científica (genética, neurociência, teoria computacional), mas também de abordagens filosóficas e dos diversos ramos das ciências humanas que deem conta de considerar o ser humano em suas multifacetadas dimensões. A responsabilidade, emoção e subjetividade são aspectos fundamentais que distinguem o homem da máquina e devem ser levados em consideração em qualquer discussão sobre a relação entre o homem e a inteligência artificial. Afinal, a verdadeira compreensão do humano não pode ser reduzida a simples metáforas ou modelos simplificados.
Em última análise, a tentativa de reduzir o homem à máquina coloca em risco a compreensão sobre sua natureza e dignidade. É necessário um diálogo ético e reflexivo sobre os limites e implicações de nossas tentativas de entender e replicar a complexidade da mente humana, celebrando a diversidade e singularidade do ser humano em vez de reduzi-lo a simples metáforas ou modelos simplificados.
Fonte: https://www.cnbb.org.br/
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