Sonhar o futuro
Nesses dias tão singulares, tão cheios de preocupações e pensamentos,
trazemos alguns conselhos do sacerdote italiano Andrea Mardegan, com ideias de
como crescer na nossa vida espiritual mesmo em momentos de crise.
29/06/2020
Escrevo de Milão, onde moro. Não saio de casa há vários dias, como
tantos outros em toda a Itália. Na escola onde trabalho não temos aulas desde o
dia 24 de fevereiro. Estamos vivendo uma experiência completamente nova. Em
primeiro lugar o vírus que se espalha, o número de mortos que aumenta, os
hospitais em dificuldades, médicos, enfermeiros e profissionais da saúde
submetidos a um ritmo de trabalho e estresse emocional devastadores: sofrem por
não poder dar a todos a assistência devida, e muitas vezes eles mesmos acabam
se contaminando.
Estão fechadas as escolas e as universidades e, desde esta manhã, 12 de
março, também outras atividades que favorecem a vida social: lojas, cafés,
restaurantes. Também outros setores estão fechados ou mudaram seus hábitos com
o trabalho em casa. Eventos, conferências, e feiras adiados. Atividades
esportivas suspensas. As crises econômicas que já estão acontecendo ou estão
previstas para o futuro. A isso se soma o sofrimento de muitos fiéis pela
impossibilidade de participar das Missas festivas e diárias ou outras
cerimônias religiosas com participação dos fiéis, e a preocupação das famílias
com as pessoas doentes ou de risco.
O Papa confia seu povo à Maria Mãe do Divino Amor, o arcebispo de Milão,
monsenhor Delpini, invoca entre os pináculos do Duomo a Madonnina e lhe entrega
toda a sociedade sofredora. A vida cotidiana de pessoas, famílias e
instituições mudou, e percorre caminhos difíceis. As pessoas me pedem, como a
outros sacerdotes, uma palavra de conforto, conselhos e orientações de como
viver como cristãos este período. Tentarei dar algumas ideias, sabendo que
muitas palavras sábias e santas são dirigidas continuamente aos fiéis por seus
pastores.
Uma palavra de conforto: olhemos a família de Jesus
Olhemos para Jesus e para a sua família de Nazaré. O Verbo de Deus se
encarnou na História e a acolheu plenamente, com todas as suas complexas
vicissitudes. Dá exemplo de obediência à história humana e também às
autoridades que naquele tempo a guiavam. José e Maria tiveram de ir até Belém
para o recenseamento de César Augusto, o que provavelmente atrapalhava suas
ideias e planos.
Tiveram que fugir para o Egito porque Herodes procurava o Menino para O
matar. Obedeceram à lei religiosa do seu povo: circuncidaram Jesus depois de
oito dias, apresentaram-no no Templo como primogênito após quarenta dias; iam a
Jerusalém todos os anos para a Páscoa, mesmo não sendo estritamente obrigados,
dada a distância de Nazaré (mais de um dia de caminhada). Jesus adulto, quando
encontra dez leprosos no caminho para Jerusalém, não os cura imediatamente (Lc
17,12 sg), mas lhes diz para irem até os sacerdotes que, segundo o livro do
Levítico, eram os que deviam confirmar a lepra ou a cura da lepra, e somente
enquanto estão indo até os sacerdotes, quando estão cumprindo a lei, se veem
curados. Mesmo na ocasião da Sua Morte e Ressurreição Jesus se deixa capturar e
condenar à morte de cruz por todas as autoridades, civis e religiosas, do seu
tempo e lugar.
Todos os eventos da história humana em que Jesus está imerso, constituem
a trama da história da Redenção que Jesus veio cumprir. Também a doença faz
parte da história na qual Jesus entrou com a Encarnação. Na sua vida pública
cura muitas doenças, para nos falar da sua benevolência, e que chegou para nós
o reino de Deus, que porém não tem como fim a abolição das doenças, ou da
pobreza, mas a transformação dos nossos corações chamados a viver uma vida nova
em Cristo.
No final dos tempos, “quando vier o Filho do homem na sua majestade” e
diante d’Ele comparecerem todos os povos, e Ele os separar à Sua direita e à
Sua esquerda, “dirá então o Rei aos da Sua direita: ‘Vinde, benditos de
meu Pai, entrai na herança do Reino que vos está preparado desde o princípio do
mundo, porque (…) estava doente e visitastes-Me’”. Portanto a doença
não será jamais erradicada completamente antes do fim da História, mas será
sempre ocasião de visita, de cuidado, de prevenção, de precaução para evitar
contágios, de elaboração de dados nos laboratórios médicos. Tudo isso e muito
mais está contido naquelas palavras de Jesus: “estava doente e visitastes-Me”
e merece o prêmio eterno do rei da Glória. A doença, que entrou no mundo depois
do pecado original, é, portanto, deixada no mundo pelo Redentor, junto à fome,
sede, pobreza, prisão, exílio, carestias, catástrofes naturais, e qualquer
outra provação, como ocasiões para vivermos o nosso ser Cristo para os outros,
na caridade.
Acreditamos que Jesus é o Senhor da história e o rei do universo. E que
deixando à história humana todo tipo de calamidades, pede a nós cristãos, e a
cada homem de boa vontade, que trabalhemos sempre, e em particular nas
situações de crise, para difundir o bem, pessoal e comum. Esse bem será sempre
frágil porque estamos em um mundo passageiro, mas somos chamados a agir sempre
e em qualquer caso para amar os nosso irmãos como Ele nos amou, com obras e
verdade, dando a vida se necessário, e justamente por isso entenderão que somos
Seus discípulos e assim, vendo o nosso testemunho, se difundirá a boa nova em
todo o mundo e junto a todos os povos, aos quais Cristo nos enviou antes de
subir ao Céu. Jesus é o Senhor da História e com a sua Providência infinita consegue
orientar todas as coisas ao bem. Coloquemo-nos à Sua disposição para que se
realize a afirmação de São Paulo: “tudo concorre para o bem”, que São Josemaria
citava com as palavras: omnia in bonum!, expressão da sua fé cheia
do otimismo de filho de Deus.
Assim a história do mundo, que é sempre entrelaçada com a história da
salvação, empresta-nos uma ocasião nova de viver como Cristo hoje, nesta
pandemia. Acredito que na prioridade, compartilhada pela grande maioria dos
italianos, da saúde e do cuidado de cada um, prioritária em relação a qualquer
outro objetivo humano (econômico, esportivo, didático, social…) podemos ver
enraizar-se profundamente, mesmo nos que não têm fé, aquela mensagem do
Evangelho, “estava doente e visitastes-Me”, que se tornou cultura geral,
e se manifesta também em leis e decretos.
O mesmo pode ser visto na virtude da solidariedade com os irmãos e as
irmãs: evitemos em primeiro lugar o possível contágio ativo ou passivo;
ajudemos como for possível os que sofrem, ou que estão sozinhos. Cuidemos dos
doentes e nos façamos presentes, telefonemos, façamos as compras para quem não
pode, ajudemos as mães com filhos pequenos em casa, incentivemos os estudantes
a estudarem, alegremos os desanimados, apoiemos os idosos, confortemos a quem
perdeu entes queridos. Obedecendo às autoridades civis e às autoridades da
Igreja, para evitar que o mal se difunda, vivamos uma caridade sublime para com
o próximo, com os nossos familiares, conosco mesmos, com a sociedade mais
globalizada e mais conectada do que pensávamos, como o Papa Francisco, na Laudato
si’, nos ensinou.
Inventemos formas de transformar esta ocasião em oportunidade de
conversarmos mais, pelas redes sociais ou na família, e de refletir sobre temas
mais profundos e decisivos para o destino do homem. Ocasião de deixar de lado
críticas inúteis e prejudiciais e de nos ajudarmos. Também na dimensão
formativa da vida cristã: se houver menos ocasiões de organizar encontros,
avançaremos mais com iniciativa e criatividade, com espírito construtivo. Como
fizeram os primeiros cristãos? Ou os primeiros leigos que evangelizaram a
Coréia, onde os padres não puderam entrar durante muito tempo? Conversemos com
nossos amigos, seguindo o conselho de Jesus: “a sós, entre ti e ele”. Se não é
possível ou prudente frequentar os sacramentos, saibamos que Jesus pode nos dar
a sua graça mesmo fora desses meios ordinários. Podemos finalmente compreender
a situação de tantas regiões do mundo, como os vilarejos dos Andes ou da
Amazônia, onde o sacerdote só consegue chegar de tempos em tempos.
A Santa Missa dominical: confiança na Igreja
Estejamos tranquilos em relação ao preceito dominical: a mesma
autoridade da Igreja que o estabeleceu no Concílio Lateranense IV de 1215,
pode, toda vez que o julgar útil ou necessário, dispensar os fiéis da
participação na Missa como de qualquer outro preceito de origem eclesiástica.
Isso pode ser feito mesmo por um único pároco em tempos normais, com
maior razão o Bispo de Roma em momentos de calamidade natural ou de saúde. Nos
dá muita alegria pertencer a uma Igreja que não é clerical, mas que vive
plenamente a cidadania com a mentalidade laical que tanto amava e ensinava São
Josemaria, uma Igreja que não pretende discutir sobre temas do campo da ciência
humana e do governo civil, mas que obedece às autoridades competentes, “dai,
pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, segundo o
ensinamentos dos tempos apostólicos: “Sede obedientes a toda instituição
humana, por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores,
como enviados por ele” (1 Pet 2, 13-14), naquilo que a autoridade civil
determina e que não vai contra a fé nem contra a moral; pelo contrário, neste
caso, nos orienta a viver de forma mais plena a fé, a caridade e a moral de
colaborar para o bem comum, hoje em grande perigo. Podemos rezar
individualmente e unidos em família.
Se não é prudente sair para visitar a Jesus Eucarístico e adorá-Lo,
podemos fazê-lo de longe, dirigindo-nos com o pensamento ao tabernáculo mais
próximo, ao vislumbrar um campanário pela janela ou ao ouvir o som dos sinos.
A comunhão espiritual acende
o desejo de receber a Eucaristia e Jesus responde ao nosso desejo vindo habitar
em nós com a Sua graça. Temos mais tempo para estudar e preparar uma catequese
personalizada, que nesses dias faremos pelo telefone, ou pelas redes sociais.
Inventaremos novos modos de nos tornarmos protagonistas positivos da
evangelização e da construção de uma nova época.
Começamos a Quaresma contemplando Jesus conduzido ao deserto para ser
tentado pelo diabo, e para vencê-lo. Fomos conduzidos ao deserto do
coronavírus: aceitemos esses quarenta dias ou mais de deserto inesperado, de
ausência, de vazio, de incerteza, e descubramos esse deserto como um lugar onde
nos redescobrimos irmãos dos nossos irmãos, não isolados uns dos outros, mas
mais solidários que nunca em tudo. Talvez tenhamos perdido seguranças,
certezas, programas, corridas, previsões. Podemos ganhar muito mais: confiança
em Deus, o prazer do tempo passado juntos, liberdade de responder a Deus de um
modo novo, libertação dos aborrecimentos. Apoiemos médicos, enfermeiros e
autoridades com a nossa oração, com a proximidade do coração, a esmola
generosa, a obediência escrupulosa a todos os seus apelos, que é a prioridade
da caridade neste momento.
Nós nos redescobriremos desejosos de Deus, contentes com aquilo que
estávamos acostumados a ter e que descobrimos ser, na verdade, um dom. Sedentos
de comunhão com os outros, desejosos de nos reaproximarmos dos lugares de
encontro só quando for possível sem perigo, protagonistas responsáveis da nossa
história. Aprendamos dos heróis da normalidade, que já vemos em ação.
Coloquemos em jogo a nossa liberdade construtiva, a nossa vontade de amar.
Compreendamos que a vida não é nossa, que estamos nas mãos de Deus. Usemos bem
o tempo, estudemos e façamos planos, redescobrindo amizades e relacionamentos
antigos e novos.
Sonhemos um futuro cheio de esperança. Coloquemos as bases para
recomeçar. Façamos sugestões e indiquemos às autoridades o que pode ajudar, mas
sobretudo arregacemos as mangas e redescubramos o gosto por construir, pelo
trabalho, estudo, lazer, relacionamentos, amizade e futuro. Os
acontecimentos da vida de repente desaceleraram e pode acontecer que a vontade
de conversar passe. Mas, ao contrário, podemos reatar relacionamentos sobre
bases mais profundas: temos menos detalhes fúteis para contar, menos fofocas:
contemos quem somos de verdade e como estamos vivendo este período. É uma
ocasião para nos perguntarmos: o que me pede Deus Espírito Santo levando-me
como Jesus a esse deserto, nessa situação tão nova, tão desconcertante para
meus hábitos, inclusive mentais: onde quer me fazer chegar? A viver uma vida
verdadeiramente nova em Cristo, com hábitos novos e capacidades que eu não
sabia que tinha? Sairemos desta provação, com a ajuda de Deus, com a fé
reforçada, livre de rotinas e exterioridades.
São João Paulo II aplicava a categoria de “noite escura” da fé, de que
falava São João da Cruz, às vicissitudes da história humana: “Sofrimentos
físicos, morais ou espirituais, como a doença, o flagelo da fome, a guerra, a
injustiça, a solidão, a falta do sentido da vida, a própria fragilidade da
existência humana, a consciência dolorosa do pecado, a aparente ausência de
Deus, são para quem crê uma experiência purificadora que poderia ser chamada de
noite escura” (carta Maestro della fede, 14-12-1990, n.14).
E nessa noite da fé, a fé pode crescer e sair purificada. Invoquemos a Deus através da intercessão de São Josemaria, que passou vários meses sem Missa recluso na Legação de Honduras e soube até mesmo transformar a guerra civil espanhola em uma ocasião de crescimento na vida espiritual e no apostolado. Com dor pelos falecidos e solidariedade para com todos aqueles que foram particularmente feridos por essa crise, com a descoberta de poder viver em família momentos inesperados de comunhão e de serenidade, e confortando as famílias que estão ao limite, compartilhando ideias novas para a solidariedade. Com a esperança de que os anjos venham servir-nos como a Jesus, no fim dos quarenta dias de deserto, e que Nossa Senhora da saúde, temporal e eterna, nos proteja e nos abençoe sempre.
Andrea Mardegan
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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