A Bem-Aventurada Virgem Maria e a Busca da Unidade
Ervino Schmidt
Teólogo*
4. A Reforma e a veneração de santos
Se em tudo que foi exposto acima identificamos herança comum, porque
tanta dificuldade quanto à veneração de Maria, nas igrejas da Reforma?
Parece-me que a questão deve ser examinada no contexto mais amplo da invocação
dos santos.
Na piedade medieval era prática corrente depositar grande esperança no
poder de intercessão dos santos. Havia os patronos da região ou de determinada
corporação. Havia santos especialistas em livrar de perigos específicos.
Entendia-se que estes santos, como intermediários, estariam bem mais próximos
dos seres humanos. Pedia-se, por isso, a sua intervenção junto a Deus. O povo
era, inclusive, encorajado neste sentido. Era um verdadeiro florescimento dessa
devoção aos santos como intercessores e milagreiros.
Os Reformadores viam ai Deus relegado a um plano secundário. Sabemos que
Lutero, durante sua vida, estava sempre preocupado em deixar Deus ser Deus.
Todo seu trabalho era, por assim dizer, uma interpretação do primeiro
mandamento, ou seja, do Senhorio incondicional de Deus. No Catecismo Maior,
Lutero volta-se contra a prática de buscar socorro junto aos santos. Via nisso
uma usurpação do lugar que cabe exclusivamente a Deus. Diz ele: a idolatria (…)
não consiste unicamente em erigir uma figura qualquer e se prostrar diante
dela, mas sim, antes de mais nada, consiste em distrair-se, olhando para o
lado, ao invés de olhar para Deus. (4)
Exclusivamente em Jesus Cristo, o grande advogado, diante de quem se
dobra todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra (Fp 2,10)
temos quem defenda a nossa causa. Na confissão de Augsburgo (1530) isso tudo é
assim resumido: A Escritura, porém, não ensina que invoquemos os santos ou
peçamos auxílio deles, porque nos propõe um só, Cristo, como mediador,
propiciador, sumo sacerdote e intercessor. É a ele que se deve invocar e ele
prometeu que haveria de ouvir as nossas preces. E esse culto aprova-o
muitíssimo, a saber, que seja invocado em todas as aflições. (1 Jo 2.1): ‘Se
alguém pecar, temos Advogado junto a Deus’ etc.
Também Zwínglio ocupa-se extensivamente com esse assunto. Julga
importante que os fieis intercedam uns pelos outros, mas volta-se com veemência
contra a invocação dos santos. Cristo é único Mediador entre Deus e os homens.
De forma alguma há necessidade da mediação dos santos. Os méritos dos santos
não nos podem ajudar. Na concepção de Zwínglio seria ofensa a Deus pensar que
ele precisa ser influenciado para que nos venha a ser favorável. Já não nos
disse Ele que é nosso Pai? (5) Podemos buscar inspiração na coragem e na fé dos
santos, isso sim, mas não nos dirigirmos a eles em oração. Nem Maria deseja ser
invocada. Ela nos diria: Honrai a Deus como eu o honrei com a fé, a obediência
e a paciência na afeição; que minha vida vos seja uma prova de que todos aqueles
que pertencem a Deus hão de passar por duras provações na terra. Quando não
sofri eu mesma? Se, pois, a mãe do Filho conheceu a benção do sofrimento
(Hartseligkeit), deveis conhecê-la também. Suportareis mais facilmente vossas
provações quando vos lembrardes de que eu já as venci. (6)
Igualmente Calvino foi bastante explicito quanto ao assunto da invocação
dos santos. Para ele importa, manter-se nos limites do que nos foi revelado.
Volta-se contra todo tipo de especulação. Em parte nenhuma a Escritura diz algo
sobre a invocação dos santos. Tudo isso fica bem explicito na Confissão
Helvetica, cap. V: Ensinamos que somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e
cultuado. Esta honra não concedemos a nenhum outro, segundo o mandamento do
Senhor: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto’ (Mt 4.10).
Somente Deus deve ser invocado e isso pela exclusiva mediação de Cristo. Em
todas as crises e provações de nossa vida invocamos somente a ele e isso pela
mediação de Jesus Cristo, nosso único mediador e intercessor. Eis o que nos é
claramente ordenado: ‘Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me
glorificarás’ (Sl 50. 15). Temos uma promessa generosíssima do Senhor, que
disse: ‘Se pedirdes alguma coisa ao Pai, Ele vo-la concederá em meu nome’ (Jo
16.23), e: ‘Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu
vos aliviarei’ (Mt 11.28).
E mais adiante se reafirma com todo vigor que os santos não devem ser
adorados, cultuados ou invocados. Por essa razão não adoramos, nem cultuamos
nem invocamos os santos dos céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos como
nossos intercessores ou mediadores perante o Pai que está no céu. Deus e
Cristo, o Mediador, são-nos suficientes. Nem concedemos a outros a honra que é
devida somente a Deus e ao seu Filho, porque ele claramente disse: ‘A minha
glória, pois, não a darei a outrem’ (Is 42.8). é porque São Pedro disse:
‘Porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo
qual importa que sejamos salvos’, a não ser o nome de Cristo (At 4.12). Nele,
os que dão seu assentimento pela fé não buscam coisa alguma além de Cristo.
Os reformadores são unânimes em se voltar contra a invocação dos santos.
Mas, é importante notar que, no fundo, ha uma concepção positiva dos santos.
Numa lindíssima interpretação do Magnificat (1521) Lutero não se cansa de
ressaltar o quanto podemos aprender em termos de espiritualidade, da oração de
Maria. Aliás, a primeira edição dessa obra no Brasil foi promovida pela Igreja
Católica Apostólica Romana. É um sinal visível de ecumenismo.
A posição luterana conforme o artigo 21 da Confissão de Ausburgo é de
grande respeito aos santos: Do culto aos santos ensinam que se pode lembrar a
memória dos santos, a fim de lhes imitarmos a fé e as boas obras – E ainda
mais: o artigo que fala dos santos, encontra-se na primeira parte da Confissão
de Ausburgo, entre os artigos principais da fé, e não na segunda parte que fala
das divergências. E expressamente se diz: Esta é, mais ou menos, a suma da
doutrina entre nós. Pode-se ver que nela nada existe que divirja das
Escrituras, ou da Igreja Romana, até onde nos é conhecida dos escritores. Assim
sendo, julgam duramente os que requerem sejam os nossos tidos por hereges. A
dissensão toda diz respeito a alguns poucos abusos, que se infiltraram nas
igrejas sem autoridade certa. Temos ai, sem dúvida, indicadores que nos podem
ajudar no caminho do diálogo ecumênico.
Bibliografia:
·
ALTHAUS, Paul. Die Chistliche Wahrheit. Gütersloh, 1969, p. 440-443.
·
ALTMAM, Walter. O segundo artigo. In: Proclamar Libertação (Catecismo).
São Leopoldo, Sinodal, 1982, p. 99-106.
·
CONFISSÃO DE AUGSBURGO. São Leopoldo, Sinodal, 1980.
·
KIESSIG, Manfred (ed.). Maria, die Mutter unseres Herrn. Lahr, Ernest
Kaufmam, 1991.
·
MISSÃO PRESBITERIANA DO BRASIL CENTRAL. O LIVRO DAS CONFISSÕES. São
Paulo, 1969.
·
NAVARRO, Juan B. Para compreender o ecumenismo. São Paulo, Loyola, 1995,
p. 173-176.
·
PRENTER, Regin. In: Van der Gemeinschaft der Kinder Gottes (uma
interpretação do artigo 21). Das Bekenntnis un Augsburg. Erlangen, Martin
Luther, 1980.
·
RITSCHL, Dietrich. Berlegungen zur gegenewdrtigen Diskussion über
Mariologie. In Ökumenische Rundschau, 31 (1982/4) Frankfurt a Main, Otto
Lembeck.
·
STROHL, Henri. In ASTE – Associação dos Seminários Teológicos
Evangélicos. O pensamento da Reforma. São Paulo, ASTE, 1993.
·
TAKATSU, Sumio. Dogmas mariológicos e suas implicações. In: ASTE –
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ed.). O Catolicismo Romano: um
simpósio protestante. São Paulo, ASTE, s.d.
·
TEIXEIRA, Luís Caetano G. A Bem-aventurada Virgem Maria no Anglicanismo.
Policopiado, 1996.
·
WILCKENS, Ulrich. Maria. In: Feiner, Johannes – Vischer, Lucas (eds.). O
novo livro da fé. Petrópolis, Vozes, 1976.
Notas:
4. Palestra proferida no Encontro Latino-Americano de Estudos – Curso para
Bispos, Ibiuna-SP, 15 a 24/10/96.
5. Walter ALTMANN, Proclamar libertação, Catecismo p. 101.
6. O novo livro da fé, p. 390.
*Mestre em Teologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha), Pastor da
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Secretário Executivo
do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), em Brasília.
Publicado in: (ESPAÇOS 4/2 (1996), p. 119-130)
Nenhum comentário:
Postar um comentário