A Bem-Aventurada Virgem Maria e a Busca da Unidade
Ervino Schmidt
Teólogo*
5. Dois novos dogmas marianos: imaculada conceição e assunção ao céu
Surgem novos dogmas marianos. Entende-se que todos eles são
desenvolvimento das afirmações contidas no Novo Testamento e nas confissões da
igreja antiga a respeito da concepção pelo Espírito Santo e do nascimento
virginal. O nascimento virginal já havia sido ampliado no sentido de Maria
semper virgo. Um passo além e então a afirmação da imaculata conceptio. Em 1854
o Papa Pio IX proclama: por singular privilégio da graça de Deus Todo-Poderoso,
com vistas aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano, desde o
primeiro instante da sua conceição, foi preservada imune do labéu do pecado
original… (7) Maria é totalmente sem pecado. Ela está livre de qualquer
mancha do pecado original. Isto para ouvidos protestantes soa como de difícil
conciliação com a Sagrada Escritura, pois são muito habituados com a teologia
paulina e, sobretudo, com a constatação em Rm 3.10: Não ha justo, nem sequer
um. Não ha distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus (v.23).
Tem-se a impressão que, no fundo, Maria não fazia parte do gênero humano.
Cem anos mais tarde, já no nosso século, surgiu o quarto dogma mariano.
Em 1950 o Papa Pio XII proclama a glorificação de Maria: no fim de sua vida
terrena, a imaculada Mãe de Deus e sempre Virgem Maria foi levada com corpo e
alma para a celeste glória. (8)
Para as igrejas da Reforma essa doutrina é estranha ao Evangelho. Ela
espelha uma indevida glorificação da natureza humana. Maria é destacada da
comunhão dos santos, é elevada para a celeste glória e colocada junto ao Filho.
Desta forma ela é co-redentora e mediadora de todas as graças.
Estes dois novos dogmas são realmente problemáticos e são um empecilho
para o diálogo ecumênico sobre o papel de Maria na história da salvação. Ulrich
Wilckens, renomado professor de teologia evangélica diz: Ambos os dogmas
baseiam-se exclusivamente em uma tradição constitutiva extra e pós-biblica.
Isso ainda pode passar como fundamentação de uma piedade mariana do alvitre de
cada um. Porém, ao elevá-los a dogma, o magistério eclesiástico pôs-se acima da
Escritura e exerceu coação sobre as consciências. Com isso, o magistério
impulsionou uma piedade mariana que (…) obscurece a visão sobre Cristo,
mediador único entre Deus e o homem. (9)
Na concepção evangélica Maria é exemplo do agir gracioso de Deus. Como
tal ilumina a existência cristã, mas não a fundamenta. Ela é ilustração, mas
jamais norma da fé. (10)
6. O lugar de Maria na espiritualidade das igrejas evangélicas, hoje
É difícil pintar um quatro preciso. A mesma igreja, em países e culturas
diversas, assume atitudes e práticas diferentes quanto ao cultivo da memória de
Maria. Mesmo no Brasil, há diferentes ênfases nas diversas igrejas. De modo
geral, porém, pode-se dizer que as igrejas da Reforma assumiram as críticas
feitas pelos reformadores quanto a invocação dos santos.
Muitas vezes, porém, assumiram somente as críticas e deixaram de
perceber a valorização do exemplo dos santos que também faz parte do pensamento
da Reforma. Não se recorda os santos que nos antecederam na fé, também são
esquecidos os exemplos de fé e os mártires de hoje. Mas o povo que ignora os
exemplos verdadeiros de seu passado, torna-se sem raízes, sem identidade. Não
se respeita o que se diz em Hebreus (13.7): Lembrai-vos dos vossos guias que
vos pregaram a palavra de Deus, considerando atentamente a sua maneira de viver
e imitando a fé que tiveram. Em datas especiais são lembradas unicamente as
figuras dos próprios Reformadores.
Quanto a Maria, ela é mencionada quando se recita os credos (Apostólico
e Niceno) e na época de Natal. A Igreja Luterana tem belas canções natalinas
nas quais se destaca o nascimento virginal de Jesus. Eis alguns exemplos:
Menino lindo vos nasceu, Maria foi que à luz o deu;… (HPD, 16) ou ainda:
Louvado sejas, O Jesus! Resplandece o céu em luz. Da Virgem nasceu em Belém; os
anjos cantam: Cristo vem! Aleluia (HPD, 18). Mas a Igreja Luterana não tem
hinos mariológicos. Maria não aparece no calendário litúrgico e no lecionário.
Uma posição especial, neste particular, ocupa a Igreja Anglicana. Luiz Caetano
Grecco Teixeira, teólogo anglicano, a meu pedido, escreveu um artigo com o
titulo: A Bem-Aventurada Virgem Maria no Anglicanismo. Basicamente passo a
reproduzir aqui, alguns pensamentos expressos neste seu artigo.
O Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil,
aprovado pelo Sínodo Geral em 1984, registra as seguintes festas marianas:
Anunciação (25 de março); Visitação (31 de maio); Bem-Aventurada Virgem Maria,
Mãe de nosso Senhor Jesus Cristo (15 de agosto) e Natividade da Bem-Aventurada
Virgem Maria (8 de setembro). Todas as festas têm seus próprios ordinários para
a Eucaristia. No Hinário Episcopal, há mesmo um hino mariano.
Virgem Maria
1. Honra demos a Maria
Virgem bem-aventurada;
Adoremos a seu filho,
Luz do céu a nós mandada.
Deus Menino veio a Terra,
Virgem-mãe lhe deu beleza,
Fez-se carne o eterno Verbo
Nossa é dele a natureza.
2. Honra ao filho de Maria!
Em seu lar de piedade,
Nem pobreza nem fadiga
Nele impedem a bondade.
Seu amor à mãe bendita
é constante, puro e forte;
Se deveres os separam,
Nela pensa até na morte.
3. Toda a glória ao Pai se oferta
Toda glória ao Filho seja,
Toda glória ao Paracleto
Cante sempre a santa Igreja.
Essa mesma trilogia,
Lá no Céu, Maria entoa,
Repetida pelos santos,
Pela terra inteira ecoa!
(Hino 107 – Hinário Episcopal)
Mas, Caetano esclarece: Embora o calendário e o lecionário incluam
festas marianas, não há culto mariano na Igreja Anglicana; o culto anglicano é
exclusivamente cristocêntrico e dirigido a Santíssima Trindade. Maria não ocupa
nenhum lugar de destaque na liturgia anglicana, tampouco é invocada ou honrada
nos altares. Maria é reverenciada e reconhecida como Mãe de Deus e, como os
demais Santos do calendário, como testemunha do Cristo e referência para a vida
dos cristãos. Os próprios para as festas marianas estão centrados no Cristo,
único Senhor, único Mediador e único Intercessor diante do Pai. Não se dirigem
orações nem louvores à Virgem, como não se dirigem orações aos demais Santos.
Isso é praticamente uma regra geral.
Podemos concluir que na Igreja Anglicana a Virgem Maria ocupa um lugar
de destaque. Mas de modo algum é entendida como mediadora da graça. e tida,
como nas demais Igrejas, herdeiras da Reforma como exemplo e modelo de fé, mas
não como advogada ou co-operadora na graça.
Bibliografia:
·
ALTHAUS, Paul. Die Chistliche Wahrheit. Gütersloh, 1969, p. 440-443.
·
ALTMAM, Walter. O segundo artigo. In: Proclamar Libertação (Catecismo).
São Leopoldo, Sinodal, 1982, p. 99-106.
·
CONFISSÃO DE AUGSBURGO. São Leopoldo, Sinodal, 1980.
·
KIESSIG, Manfred (ed.). Maria, die Mutter unseres Herrn. Lahr, Ernest
Kaufmam, 1991.
·
MISSÃO PRESBITERIANA DO BRASIL CENTRAL. O LIVRO DAS CONFISSÕES. São
Paulo, 1969.
·
NAVARRO, Juan B. Para compreender o ecumenismo. São Paulo, Loyola, 1995,
p. 173-176.
·
PRENTER, Regin. In: Van der Gemeinschaft der Kinder Gottes (uma
interpretação do artigo 21). Das Bekenntnis un Augsburg. Erlangen, Martin
Luther, 1980.
·
RITSCHL, Dietrich. Berlegungen zur gegenewdrtigen Diskussion über
Mariologie. In Ökumenische Rundschau, 31 (1982/4) Frankfurt a Main, Otto
Lembeck.
·
STROHL, Henri. In ASTE – Associação dos Seminários Teológicos
Evangélicos. O pensamento da Reforma. São Paulo, ASTE, 1993.
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TAKATSU, Sumio. Dogmas mariológicos e suas implicações. In: ASTE –
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ed.). O Catolicismo Romano: um
simpósio protestante. São Paulo, ASTE, s.d.
·
TEIXEIRA, Luís Caetano G. A Bem-aventurada Virgem Maria no Anglicanismo.
Policopiado, 1996.
·
WILCKENS, Ulrich. Maria. In: Feiner, Johannes – Vischer, Lucas (eds.). O
novo livro da fé. Petrópolis, Vozes, 1976.
Notas:
7. Palestra proferida no Encontro Latino-Americano de Estudos – Curso para
Bispos, Ibiuna-SP, 15 a 24/10/96.
8. Walter ALTMANN, Proclamar libertação, Catecismo p. 101.
9. O novo livro da fé, p. 390.
10. Catecismo maior, interpretação do 1º Mandamento
*Mestre em Teologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha), Pastor da
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Secretário Executivo
do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), em Brasília.
Publicado in: (ESPAÇOS 4/2 (1996), p. 119-130)
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