Criar o lar: uma tarefa
comum que dá sentido ao trabalho
O ritmo de vida atual parece colocar um dilema: ou trabalho ou filhos;
ou você trabalha ou cuida da casa; parece impossível fazer as duas coisas ao
mesmo tempo. Artigo da série sobre o amor humano.
12/01/2016
Para conhecer o plano de Deus para o homem e a família é preciso voltar
às origens. “Ortega y Gasset recorda a história do explorador do Polo que
depois de apontar com sua bússola para o norte, corre com seu trenó (...) para
comprovar que se encontra ao sul da sua posição inicial. Ignora que não viaja
por terra firme, mas sobre um grande iceberg, que navega veloz na
direção oposta ao seu caminho. Também hoje, muitos com boa vontade apontamos a
nossa bússola ao norte para avançar, ignorando que navegamos sobre o
grande iceberg das ideologias e não sobre a terra firme da
verdade e da família”[1].
No berço da humanidade, estão as pautas necessárias, a bússola que
marcará sempre o norte.
A primeira dessas pautas ou chaves indicadas no Gênesis é que fomos
criados para amar e ser amados, e isto se realiza no “serão uma só carne”[2] de
homem e mulher, um dom de si enriquecedor e fecundo, que se abre para novas
vidas. O casamento, configurado como entrega recíproca, como chamado ao amor,
seria uma primeira pauta.
A segunda deriva da anterior, e se concretiza no mandato divino: “Sede
fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a”[3].
Aqui aparece a conexão entre família (multiplicai-vos) e trabalho (dominai a
terra), inseparavelmente unidos num mandato único. Ou seja, desde que Deus cria
o homem deixa clara a obrigação de trabalhar, e também o sentido profundo do
trabalho: não se trata da mera realização pessoal, de um capricho, ou de um
passatempo, mas de transformar a terra para convertê-la em lar. Desde a origem
da humanidade, trabalho e família vão unidos e o sentido do trabalho não é
outro que o de servir à família. É uma forma de entrega – como o era a dos
esposos Adão e Eva –, um dom de si, nunca um dom para si mesmo.
Perdido o sentido da família, perdido o sentido do trabalho
No entanto, no último século e meio houve – ao menos nos países mais
desenvolvidos – uma ruptura, e dá a sensação de que família e trabalho, que na
sua origem são inseparáveis, são agora incompatíveis. A família aparece como um
obstáculo para o trabalho, e vice-versa. Ser mãe, por exemplo, converteu-se
para muitas mulheres numa desvantagem no trabalho. Então, onde fica aquele
preceito do Gênesis? O que era um único mandamento, e vocação original,
transformou-se, para muitos, em um dilema: o trabalho ou os filhos, ou
trabalhar ou cuidar da casa, as duas coisas parecem impossíveis juntas.
É significativo que esta contraposição coincida no tempo com a crise da
família. O que pode levar-nos a pensar que uma crise tenha levado à outra, já
que as suas raízes se comunicam. A perda do sentido da família levaria
automaticamente à perda do sentido do trabalho. Pois, de fato, em muitos casos,
não se concebe o trabalho como um serviço para a família, mas como um fim em si
mesmo; e não há lar, ou são lares desfeitos, esquecidos, onde falta o calor
familiar.
Ao produzir essa contraposição, em muitos países do Ocidente se
inverteram os termos: a empresa se apresenta como uma família, e a família se
reinventa como uma empresa, com divisão de funções e cotas paritárias, tal como
observava Arlie Hochschild num estudo com título eloquente: “Quando o trabalho
se converte em casa e a casa se converte em trabalho”[4].
Mas seria errado pensar que o ambiente do lar se alcança através de
cotas paritárias ou uma espécie de divisão de trabalho. Alcança-se, em vez
disso, recuperando o verdadeiro significado da família e, ao mesmo tempo, o
verdadeiro significado do trabalho. A verdadeira conciliação não depende –
somente – das leis do Estado, mas fundamentalmente de que marido e mulher se
conciliem. Porque eles são os verdadeiros artífices do lar. São livres para
trabalhar fora de casa e ter filhos, escolhendo recuperar o trabalho do lar.
Isto resolveria o dilema ao que antes nos referíamos.
Depois virá a tentativa de transformar as leis para que o Estado
facilite essa escolha a serviço da família, e conseguir uma cultura empresarial
nessa linha. Porém primeiro devem ser as próprias famílias, os esposos, que
reconquistem o verdadeiro sentido do trabalho como dom de si e serviço ao
cônjuge e aos filhos. Algumas mães optarão por manter uma atividade
profissional fora de casa e outras se dedicarão plenamente ao lar, sendo as
duas opções igualmente legítimas e, em primeiro lugar, sabendo que o trabalho é
serviço e não um fim em si mesmo.
O lar, primeiro passo para superar a crise da sociedade.
Construído assim, o lar se converterá em ponto de encontro das duas
realidades, família e trabalho. O lar como lugar do dom de si e do amor dos
esposos, e, portanto da verdadeira conciliação; e como tarefa comum que cabe a
todos os membros da família. A casa não é só abrigo para descansar e depois
voltar ao trabalho, mas o lugar do amor sacrificado, a escola de virtudes, e a
melhor resposta ao mandamento de “crescei e multiplicai-vos e dominai a terra”.
Sem sair das quatro paredes do lar pode-se transformar o mundo:
“atrevo-me a afirmar que, em boa parte, a triste crise que agora padece a
sociedade está enraizada no descuido do lar”[5].
Se o centro do lar é o amor dos esposos que transmite vida e se irradia
aos filhos, seus eixos são o leito conjugal e a mesa, entendida como espaço de
convivência entre pais e filhos e entre irmãos, lugar de ação de graças a Deus
e de diálogo. É significativo que os ataques mais duros à família se produzem
aí. No primeiro caso, do hedonismo e da ideologia do gênero, que separam os
aspectos unitivo e procriativo do ato conjugal; e no segundo, através do
barulho gerado pelo mau uso da televisão, internet e outras tecnologias que
tendem a isolar o adolescente, impedindo sua abertura aos outros.
Não é casualidade que uma das primeiras medidas que adotaram alguns
regimes totalitários foi proibir a fabricação de mesas altas, e promover o uso
de mesinhas baixas ou individuais; com isso a reunião familiar em torno da
refeição ficava muito difícil. Atualmente, o abuso da televisão e da tecnologia
– unido a outros fatores como o trabalho ou as longas distâncias – estão
produzindo um efeito semelhante no seio das famílias.
A importância da mesa: ação de graças, diálogo, convivência
Devolver à mesa a sua categoria é uma forma de recuperar o ambiente do
lar. Na mesa confluem os dois elementos do mandato duplo do Gênesis: a família,
pais e filhos –“crescei e multiplicai-vos”–, e o fruto do trabalho –“dominai a
terra”–. A mesa oferece a oportunidade de agradecer ao Criador o dom da vida e
os dons da terra: é diálogo com Deus, também através da materialidade dos
alimentos que recebemos da sua bondade; e tem uma função crucial educativa e
comunicativa: os filhos se nutrem da comida, e também da palavra, da conversa,
do debate de ideias, e até dos atritos e discussões, que contribuem para formar
seu caráter.
Daí a importância de dedicar um tempo diário e específico à mesa. Se não
é possível tomar o café da manhã ou almoçar juntos, ao menos convém reservar o
jantar para promover esse espaço de diálogo e de convivência.
Um espaço que se prepara com tempo e vontade; que se constrói com
renúncia e sacrifício; que inicia com a benção dos alimentos,[6] e
que gira ao redor de uma conversa. É uma ocasião de ouro para os pais educarem
não com discursos, mas com gestos pequenos, detalhes aparentemente
insignificantes; e para os irmãos aprenderem a entender-se, colaborar,
renunciar... Tempos e lugares compartilhados que formarão sua identidade,
recordações memoráveis que os marcarão profundamente.
Uma tarefa estimulante que envolve todos, já que a oração, a ação de
graças e o diálogo, mais do que a comida, é o que realmente alimenta e sustenta
a família.
Apostar numa cultura da família supõe “sair” do iceberg de
ideologias enganosas e recuperar o verdadeiro sentido do duplo mandato do
Gênesis. E pode-se conseguir a partir de um perímetro tão modesto como as
quatro paredes do lar, contorno paradoxal porque sempre é “maior por dentro do
que por fora”, como descrevia Chesterton; resgatando a comunicação, o amor dos
esposos, e a participação na mesa; deixando sempre um prato a mais..., para o
caso de Deus querer vir jantar nesta noite.
Teresa Díez-Antoñanzas González y Alfonso Basallo Fuentes
___________________
[1] J.
Granados, Ninguna familia es una isla, Burgos 2013.
[2] Gn
2,24.
[3] Gn
1,28.
[4] A.R.
Hochschild, “When work becomes home, and home becomes work”, California
Management Review (1997), 79-97.
[5] J.
Echevarría, Carta pastoral, 1-06-2015.
[6] Cfr.
Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato si’, n. 227.
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