O Ícone da Mãe de Deus das três mãos – a «Tricherousa»
D. Teodoro de Faria,
Bispo Emérito do Funchal
Para a Igreja Ortodoxa ou Oriental, os santos ícones do Pantokrator,
Deus Todo Poderoso, e da Mãe e Deus, Theotokos, encontram a sua
expressão nos textos litúrgicos de forma que o iconógrafo ou pintor de ícones
atinja a experiência da Igreja.
A liturgia exalta o mistério de Maria como derivado
do mistério de Cristo, nada se pode afirmar de grande em Maria senão que ela é
Mãe de Deus, a Theotokos.
Constantinopla e Tessalônica foram os dois
principais centros do mosaico e do fresco bizantino em todo o tempo do seu
desenvolvimento. A Igreja russa, por seu lado, explicitou de uma forma original
os elementos da tradição que tinha recebido de Constantinopla na época em que
se tornou cristã, entre os séculos XIII e inícios do século XI.
A propósito do ícone das Três Mãos da Mãe
de Deus, ele apareceu na Síria no século VIII, no tempo da luta contra os
defensores das imagens sagradas, conhecido como iconoclasmo. Nesta época, o
grande defensor dos ícones foi João Damasceno, nascido na cidade de Damasco, em
oposição ao imperador Leão XIII que acusou falsamente João Damasceno perante o
califa muçulmano de Damasco, tendo este mandado cortar-lhe a mão direita.
Durante a noite, reza a tradição, a Virgem Maria apareceu em sonho ao leigo
cristão de Damasco, afirmando que: «A tua mão será curada se tu cumprires a tua
promessa de, em toda a tua vida, defenderes os santos ícones». Tendo sido
curado, João compôs um hino à Mãe de Deus com o título «Em ti se alegra toda a
criatura» e mandou esculpir uma mão de prata que colocou num ícone da Mãe de
Deus que possuía. João foi residir no mosteiro de São Savas entre Jerusalém e
Belém. Aí escreveu vários textos e livros sobre a Mãe de Deus que foram
enviados para o Concílio II de Niceia em 784.
O ícone das três mãos tornou-se célebre, foi levado
para a Síria, depois para a Grécia para os mosteiros do Monte Athos e,
finalmente, para a Rússia, onde teve grande aceitação, como aconteceu com
outros ícones.
Uma das muitas visitas que recordo com simpatia dos
tempos de estudante na École Biblique de Jerusalém, foi a do
mosteiro de São Savas, onde viveu, escreveu e morreu São João Damasceno,
edifício incrustado na geografia impressionante do vale do Cedron, envolvido
num grande silêncio, com muitas sepulturas, cemitérios e túmulos de judeus,
cristãos e muçulmanos no Vale de Josafat, onde esperam o juízo final. O
multissecular mosteiro de São Savas, do século V d.C. é majestoso, bem
defendido, com três igrejas, capelas, escadarias, portões, arquitetura que
remonta aos tempos em que ali residia o monge São Savas. Chegado ao vetusto
edifício, esperamos longo tempo para o monge porteiro abrir o portão. O
mosteiro estava muito limpo e o monge em silêncio só fez sinais e chamou um
jovem russo com veste secular, sorridente, que falava além do russo, alemão e
espanhol. Chamava-se Ivan, era refugiado da Alemanha, será o nosso guia neste
impressionante mosteiro; disse-nos que ali viviam 14 monges sendo 4 sacerdotes,
quase todos envelhecidos, levando uma vida de grande austeridade.
O dia é preenchido com longos ofícios litúrgicos,
segundo as diversas estações do ano, regulando-se pela luz do sol, lua e
sombras. Ivan já tinha perdido a noção de tempo, deixara de olhar para o
relógio há três meses. O almoço era tomado às 9 horas da manhã e a ceia às três
da tarde, mas só duas vezes por semana. Os ofícios litúrgicos da noite
começavam às 23h30 e só terminavam às cinco ou seis horas da manhã,
prolongando-se nos dias festivos até às sete horas.
O mosteiro tivera propriedades que cederam ao
Patriarca grego de Jerusalém que lhes fornecia a alimentação. No grandioso
mosteiro existem nove igrejas, além de capelas, celas, escadarias, corredores,
e grutas com capelas. A principal igreja é dedicada à Anunciação do Anjo a
Maria e remonta ao imperador Justiniano no século VI, segue-se a igreja de São
Nicolau, a de São João Damasceno e a de São João Crisóstomo. Todas elas estão
cobertas com pinturas de ícones. Em certo tempo, este mosteiro foi o mais importante
da Palestina. São Savas e São João Damasceno foram ali sepultados, sendo o
corpo do fundador roubado pelos marinheiros de Veneza, o de São João Damasceno
desapareceu na Idade Média. O mosteiro conheceu épocas de muitos mártires, tem
uma capela com dezenas de caveiras de monges barbaramente assassinados por
invasores e beduínos. Uma palmeira plantada por São Savas viveu muitos séculos,
hoje, só resta um tronco seco e envelhecido. Ali perto, em Belém, Herodes
mandara degolar «todos os meninos de idade de dois anos para baixo» (Mt 2,16).
FONTE: JM – Opinião e Crônicas |
Crônicas, 13/12/2020
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