A DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA
Dom Lindomar Rocha Mota
Bispo de São Luís de Montes Belos (GO)
Como em nenhum outro domínio da ciência ou do
discurso uma ideia tem envelhecido tão rapidamente e de maneira tão completa
quanto na sociedade.
O indivíduo contemporâneo está disposto a
muitas coisas para se manter no limite da própria existência. O medo do
isolamento foi substituído pelo medo do outro, e, no limiar do otimismo
aristotélico, desconfia-se que viver em sociedade produz perplexidades capazes
de concorrer com a felicidade que a associação produz.
Assim como os impérios romano e medieval eram
diferentes das cidades onde Aristóteles e Platão pensaram a política, os
Estados democráticos contemporâneos muito se diferem do início da modernidade.
Também o conceito político precisa se ajustar às democracias atuais. A
liberdade do indivíduo foi legitimamente reivindicada e desenvolvida ao longo
do tempo, mas parece necessitar de reformulações, principalmente a partir do
século passado.
Com bastante frequência John Rawls aborda o
tema da religião para esclarecer o mecanismo atual da democracia. A exemplo de
Locke, ele retoma a tolerância para explicar elementos que superam os limites
da religião, mas encontram nela um caso típico que serve de parâmetro para uma
adequada medida dos interesses que tendem a ser diferentes, sobretudo quando
está em jogo os desejos de cada um. Pois, como já foi dito por Beccaria “numa
reunião de homens, percebe-se a tendência contínua de concentrar no menor número
os privilégios, o poder e a felicidade, e só deixar para a maioria miséria e
debilidade”
A teoria do Contrato “social”,
tão presente em nossa tradição política, é apresentada como condição básica
para corrigir as visões distorcidas quando os indivíduos se reúnem. Tomando
como suficiente às observações operadas por Rawls na “posição original” quando
os termos do Contrato são decididos, acentuo o fato, também já
delineado, que o Contrato é hipotético, ou seja, não será a partir
do Contrato que a sociedade começará. Ela já existe, e os termos postos
servirão mais para resolver as questões atuais e futuras que propriamente gerar
uma sociedade.
O Contrato original, pensado hipoteticamente,
reflete a situação contemporânea e demarca a linha principal das ações e das
atividades sociais, razão pela qual ele deve ser constituído por princípios
clássicos e prezados pela sociedade a qual se destina, e não por cláusulas e
teses. Esta salvaguarda é importante, dado que parece inviável a possibilidade
de qualquer Contrato conter e prevenir, em suas linhas gerais,
todas as situações benéficas e impedir todos os malefícios que uma sociedade
possa experimentar ao longo de sua infindável existência.
Uma lista completa de cláusulas e artigos,
mesmo no interior de uma sociedade específica, tende a criar uma série de
conflitos que se anulam respectivamente por exclusão e contrariedade, causando
um desequilíbrio severo em sua estrutura básica. O exemplo bastante atual
refere-se à Constituição brasileira vigente desde 1988, que com pouco mais de
30 anos já conta com mais de 100 emendas. Assim, da euforia de texto perfeito,
tão alardeado pelos constitucionalistas, passou-se a desilusão de um texto
confuso, contraditório, que gera inúmeras batalhas jurídicas, quase sempre
privilegiando os mais afortunados.
A grande extensão dos contratos econômicos,
até mesmo para a aquisição de bens relativamente simples, absolutizam-se em
contratos de adesão, no qual os interesses das partes não são representados a
contento.
Desse modo, verifica-se que, quanto maior a
extensão do contrato, menos ele parece ser capaz de evitar os conflitos. Isso
se dá pelo fato de que, do mesmo modo como a sociedade evolui, as pretensões
também evoluem, e o acordo precisa ser costurado ao longo do tempo. Ao se
alongar excessivamente o Contrato precisa sofrer ajustamentos em sua
estrutura.
A própria apreciação que alguns juristas fazem
a respeito da confusa distinção entre direitos e garantias, afirmando que os
primeiros são ideais e norteadores e os segundo imperativos e concretos, joga
sobre o peso da subjetividade dos indivíduos o dilema sobre as muitas partes de
um Contrato. Essa distinção, tão comum na interpretação vulgar também dos
textos bíblicos, onde cada um entende a parte citada como o todo e coloca em
conflito o desenrolar do texto todo, também se verifica numa Constituição demasiadamente
longa.
A única explicação para assegurar os direitos
daqueles que se tornaram prejudiciais para a maioria se sustenta no
delicadíssimo limite entre garantias e direitos. Mas parece oportuno salientar,
como em vários casos, que as garantias sem direitos terminam por não garantirem
nada a ninguém ao longo do tempo.
Para fugir dessa aporia, começo pela
apreciação dos direitos e não pelas garantias. Pois, enquanto a segunda pode
ser de qualquer espécie e tantas quantas necessárias na sociedade, os primeiros
são de espécies restritas e se alinham em uma família historicamente
reconhecida, entre as quais se destaca com eminente prioridade a condição da
liberdade. Essa é uma razão pela qual Rawls aponta que “é […] urgente
estabelecer os elementos essenciais que lidam com as liberdades
fundamentais”.
Observa-se ainda que na realidade política
contemporânea, onde todas as pretensões estão juntas e postas lado a lado, os
acordos devem ser de natureza prática e não ideal. Um acordo estável é
essencial para que cada um desenvolva suas pretensões e realize a sua ideia de
bem. Ao nos referirmos a dificuldade de conseguir acordos numa sociedade
dividida por doutrinas filosóficas, religiosas e morais conflitantes, nota-se
que “é muito mais fácil chegar a uma concordância sobre quais devem ser os
direitos e liberdades fundamentais” que propriamente sobre as garantias.
Postas as garantias dos acordos políticos, por
força do pluralismo democrático, resulta que a justiça se torna o elemento
determinante, e sobre ela se desenrolará os outros casos, inclusive as
garantias advenientes dessa primeira condição. Começar com a elaboração de uma
ideia de justiça é essencial para qualquer tentativa de Contrato.
A proximidade dos indivíduos não é apenas
material, ela se consolida, com muito mais razão, nas aspirações, pontos de
vistas e desejos de verem suas ideias, principalmente àquelas que dizem
respeito ao seu bem e ao bem dos demais realizados. O fato de os indivíduos
viverem tão próximos, sem muitos princípios norteadores, coloca constantemente
os termos do Contrato sob suspeita. A situação de estranhamento social, mesmo
na efetivação das ideias de bem, já foi largamente examinado com fartos
argumentos e pesquisas em nosso tempo.
Todas essas possibilidades juntas,
acrescentadas pela constante dificuldade de classificá-las em quantidade e qualidade,
como se discutiu na mensurabilidade do Estado de Hobbes, dispõe inúmeras
probabilidades de agrupamentos e reagrupamentos para os indivíduos. Ao tomar
essas duas categorias em suas acepções clássicas, quando se admitia que a
quantidade de bens que os indivíduos buscam é mais claro e
calculável que a qualidade desses mesmos bens, que são
subjetivos, parece não mais ser correto, pois a capacidade de valorar
livremente o que mais interessa para si mesmo faz com que eles sejam
classificados com a mesma dose de subjetividade e de objetividade.
A sociedade contemporânea, portanto,
assemelha-se a ideia do claustro, onde inovações e criatividades são
necessárias para não produzir a claustrofobia.
As definições simples e assertivas parecem não
mais corresponderem a nenhuma solução digna num debate tão disperso.
A visão do claustro conduz, inegavelmente, ao
emaranhado medieval expresso nos infinitos labirintos da biblioteca em O
nome da rosa, de Umberto Eco. Entretanto, apenas a imagem pode
representar a sociedade atual, dado que os corredores daquele medievo pareciam
sempre terminar em um beco sem saída ou numa parede sólida, mas os corredores
contemporâneos levam, com absurda velocidade, às direções que dificilmente
encontram algum impedimento.
Embora pareça sem sentido comparar a ilimitada
capacidade de progredir no pensar, julgar e agir com a figura do claustro, ela
não é estranha, pois o que importa na observação é o fato de que todos os
juízos e caminhos são possíveis numa proximidade desconcertante. Na origem,
portanto, de todas as possibilidades contemporâneas, presencia-se um aglomerado
de vontades, ideologias e razoáveis discordâncias sobre quase todos os aspectos
da realidade.
As combinações e recombinações de posições no ponto
de partida da sociedade tornam a ideia de Contrato ainda mais
complicada. As definições de suas cláusulas e limitações podem variar
essencialmente entre temas que a maioria preza, mas não preza do mesmo modo,
nem na mesma ordem de prioridades. Portanto, acertar o equilíbrio nas diversas
partes e proposições do Contrato na democracia contemporânea
se impõe como a mais crítica e urgente das questões, chegando a exigir, até
mesmo, a conciliação das contradições.
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