'A língua que falamos determina como pensamos': americano que cresceu com indígenas na Amazônia explica relação.
- Autor, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em
Londres
- 22 junho 2024
Todos nós humanos vivemos no mesmo mundo e temos
experiências semelhantes. Por isso, todas as línguas faladas no planeta possuem
as mesmas categorias básicas para expressar ideias e objetos — refletindo essa
experiência humana comum.
Essa noção foi defendida por anos por diversos
linguistas, mas para o linguista americano Caleb Everett, quando analisamos os
idiomas mais de perto, descobrimos que muitos conceitos básicos não são universais
e que falantes de línguas diferentes veem e pensam o mundo de forma diferente.
Em um novo livro, baseado em muitas línguas que ele pesquisou na Amazônia brasileira, Everett mostra que muitas
culturas não pensam da mesma forma o tempo, o espaço ou os números.
Algumas línguas têm muitas palavras para descrever um conceito como
tempo. Outras, como a Tupi Kawahib, sequer tem uma definição de tempo.
Talvez poucas pessoas estejam mais aptas a pensar
sobre esse problema do que Everett. Nascido nos Estados Unidos, ele teve uma
infância incomum nos anos 1980, dividindo seu tempo entre seu país natal,
escolas públicas em São Paulo e Porto Velho, e aldeias indígenas no interior da
Amazônia, em Rondônia.
Caleb é filho do americano Daniel Everett, que veio ao Brasil nos anos 1970 como missionário cristão com o propósito de
traduzir a Bíblia para o idioma pirahã — uma língua falada hoje por cerca de
300 indígenas brasileiros.
Daniel veio para ajudar a converter os indígenas,
mas acabou ele próprio convertido: abandonou a religião e passou a se dedicar
ao estudo do pirahã, com um doutorado em linguística na Unicamp.
Desde cedo, Caleb acompanhou o pai e a mãe (que
também era missionária) em missões na Amazônia brasileira. Chegou a viver entre
os indígenas, passando parte da infância pescando e brincando com eles na
floresta.
De volta aos EUA, se formou e foi trabalhar no
mercado financeiro. Mas uma questão sempre o perturbou: interessado em
psicologia, ele lia em revistas científicas que diziam que a forma que os
humanos aprendem e entendem os números é universal.
“Nem todos os humanos pensam assim. Eu tenho o
grande privilégio de conhecer alguns dos povos indígenas do Brasil que não
pensam assim”, diz Everett.
Cada vez mais interessado em pesquisar sobre os
indígenas que conheceu na sua infância, ele resolveu dar uma guinada na sua
vida. Abandonou o mundo financeiro, fez doutorado e voltou para Rondônia, onde
foi investigar as línguas amazônicas.
Da pesquisa, saiu seu primeiro livro, de
2017, Numbers and the Making of Us: Counting and the Course of Human
Cultures (“Os números e a nossa formação:
a contagem e o curso das culturas humanas”, em tradução livre). No livro, Caleb
Everett defende que os números são um conceito que não é natural ou inato ao
ser humano — e varia imensamente de acordo com cada cultura e idioma, ao ponto
que é impossível dizer que existe uma forma universal e “natural” para os
humanos aprenderem quantidades.
Recentemente, ele lançou outro livro em que volta
ao tema. Em A Myriad of Tongues: How Languages Reveal Differences in How We Think (“Uma miríade de línguas: como as línguas
revelam diferenças na forma como pensamos”, em tradução livre), Everett diz que
nos acostumamos a acreditar que todas as línguas do mundo usam categorias
universais para classificar ideias e objetos — já que a experiência humana é
limitada a alguns aspectos comuns de todas as culturas.
Afinal, todos nós — independentemente de onde
nascemos — contamos quantidades, lembramos do passado, planejamos o futuro e
usamos pontos geográficos para nos localizarmos.
Mas, segundo Everett, nem todas as línguas refletem
o mundo dessa forma. Há línguas no mundo — como a pirahã, que ele aprendeu na
infância — que sequer têm números precisos. Algumas línguas possuem apenas dois
tempos verbais (o futuro e o não-futuro); outras possuem sete.
Essas discrepâncias são muito maiores do que apenas
diferenças culturais, argumenta Caleb. Elas determinam de forma profunda como
cada ser humano percebe e pensa o mundo.
A diferença é que para um povo, algumas noções de
tempo podem ser não só irrelevantes — como quase incompreensíveis. Já outros
povos podem ter uma compreensão mais sofisticada de tempo do que outros.
Para entender isso, linguistas como Caleb estão se
debruçando sobre muitas línguas que não eram devidamente estudadas no passado —
sobretudo na Amazônia. A tecnologia e a facilidade de se viajar no mundo atual
acelerou o trabalho dos linguistas.
Mas eles correm contra o tempo, já que a
modernidade está "matando" línguas em um ritmo mais acelerado, com
povos indígenas tendo cada vez mais dificuldade de se sustentarem sem o
aprendizado de outros idiomas.
O estudo das línguas amazônicas também está
desafiando noções antigas de intelectuais sobre como os humanos falam. Esse
debate traz à tona uma famosa disputa que existe no mundo acadêmico entre seu
pai, Daniel, e o linguista americano Noam Chomsky, em torno da língua pirahã,
de Rondônia, justamente a que Caleb aprendeu ainda quando criança.
Chomsky é famoso por propor o conceito de
“gramática universal” — a ideia de que todas as línguas humanas possuem uma
estrutura comum, independentemente de onde essas línguas se desenvolvem.
Mas Daniel Everett afirma que a língua pirahã
desmente a tese de Chomsky. Em pirahã, não existiria a recursividade — algo que
Chomsky diz ser inerente a todas as línguas e, portanto, universal.
Recursividade é quando se insere uma frase dentro de outra, como em: “O
policial que prendeu o bandido que roubou uma casa está na delegacia”.
Esse é um dos debates mais acalorados no mundo da
linguística. Chomsky chegou a chamar Daniel Everett de charlatão e sugeriu que
sua pesquisa sobre os pirahã era falsificada – já que por anos Daniel foi o
único acadêmico a falar a língua.
Em entrevista para a BBC News Brasil, Caleb disse
acreditar que este debate está ficando no passado, com os avanços tecnológicos
que estão acontecendo no mundo da linguística. No mundo de hoje, são faladas
mais de 7 mil línguas — e graças a avanços como ciência de dados e aprendizado
de máquina, linguistas estão conseguindo expandir sua compreensão desses
idiomas em uma velocidade inédita.
O resultado, segundo Caleb, é que algumas noções
clássicas do mundo da linguística dos anos 1970 estão finalmente podendo ser
colocadas à prova — e muitas delas não estão sendo aprovadas no teste.
Confira abaixo a entrevista que Caleb Everett deu à
BBC News Brasil na qual fala sobre suas experiências na Amazônia brasileira, o
debate sobre como as línguas moldam o mundo que experimentamos e os avanços no
estudo dos idiomas nos dias de hoje.
BBC News Brasil: Seu livro sugere que estamos tendo
uma melhor compreensão das mais de 7 mil línguas que hoje são faladas no mundo.
O que os linguistas estão aprendendo com essas línguas menos conhecidas?
Caleb Everett: Estamos aprendendo muito. O que está claro é que as línguas são
muito mais diferentes entre si do que pensávamos. Nós costumávamos supor que
existia essa diversidade entre as línguas, mas que por trás delas haveria algum
tipo de componente universal — algo que todas as línguas compartilhavam.
E o que estamos descobrindo, à medida que olhamos
para mais e mais línguas, é que elas são diferentes em maneiras muito
profundas, que não foram previstas em alguns dos modelos teóricos da linguística
dos anos 1960 e 1970.
Existem alguns pontos em comum, é claro. Todos nós
temos os mesmos ouvidos, as mesmas bocas e os mesmos cérebros.
Há essas semelhanças entre as línguas, mas não é
porque existe algo geneticamente programado dentro da linguagem.
BBC: Muito do seu trabalho é baseado em línguas
amazônicas que você estuda há muito tempo. O que você aprendeu especificamente
com elas?
Everett: A Amazônia é realmente fascinante, porque embora existam outras
regiões do mundo, como a Nova Guiné ou a África Ocidental, que têm mais
línguas, as línguas da Amazônia são totalmente não relacionadas entre si.
Existem algumas centenas de línguas, mas existem
dezenas de famílias linguísticas, como tupi ou aruaque ou algumas outras
línguas isoladas que não têm ‘parentes’ conhecidos.
Algumas são totalmente distintas entre si e estão a
apenas 100 quilômetros de distância uma da outra.
A Amazônia é uma espécie de microcosmo fascinante
da diversidade linguística que existe no mundo.
E podemos aprender muito sobre as diversas formas
como os humanos se comunicam olhando apenas para as pessoas na Amazônia.
Muitas vezes, eu acho, nós somos culpados no
Ocidente de uma espécie de homogeneização desses grupos. Nós meio que os
colocamos suas línguas, suas culturas no mesmo bojo.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese
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