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domingo, 30 de junho de 2024

'A língua que falamos determina como pensamos' (1)

Língua do povo indígena pirahã é foco central de um polêmico debate acadêmico há décadas (Daniel  Everett)

'A língua que falamos determina como pensamos': americano que cresceu com indígenas na Amazônia explica relação.

  • Autor, Daniel Gallas
  • Role, Da BBC News Brasil em Londres
  • 22 junho 2024

Todos nós humanos vivemos no mesmo mundo e temos experiências semelhantes. Por isso, todas as línguas faladas no planeta possuem as mesmas categorias básicas para expressar ideias e objetos — refletindo essa experiência humana comum.

Essa noção foi defendida por anos por diversos linguistas, mas para o linguista americano Caleb Everett, quando analisamos os idiomas mais de perto, descobrimos que muitos conceitos básicos não são universais e que falantes de línguas diferentes veem e pensam o mundo de forma diferente.

Em um novo livro, baseado em muitas línguas que ele pesquisou na Amazônia brasileira, Everett mostra que muitas culturas não pensam da mesma forma o tempo, o espaço ou os números.

Algumas línguas têm muitas palavras para descrever um conceito como tempo. Outras, como a Tupi Kawahib, sequer tem uma definição de tempo.

Talvez poucas pessoas estejam mais aptas a pensar sobre esse problema do que Everett. Nascido nos Estados Unidos, ele teve uma infância incomum nos anos 1980, dividindo seu tempo entre seu país natal, escolas públicas em São Paulo e Porto Velho, e aldeias indígenas no interior da Amazônia, em Rondônia.

Caleb é filho do americano Daniel Everett, que veio ao Brasil nos anos 1970 como missionário cristão com o propósito de traduzir a Bíblia para o idioma pirahã — uma língua falada hoje por cerca de 300 indígenas brasileiros.

Daniel veio para ajudar a converter os indígenas, mas acabou ele próprio convertido: abandonou a religião e passou a se dedicar ao estudo do pirahã, com um doutorado em linguística na Unicamp.

Desde cedo, Caleb acompanhou o pai e a mãe (que também era missionária) em missões na Amazônia brasileira. Chegou a viver entre os indígenas, passando parte da infância pescando e brincando com eles na floresta.

De volta aos EUA, se formou e foi trabalhar no mercado financeiro. Mas uma questão sempre o perturbou: interessado em psicologia, ele lia em revistas científicas que diziam que a forma que os humanos aprendem e entendem os números é universal.

“Nem todos os humanos pensam assim. Eu tenho o grande privilégio de conhecer alguns dos povos indígenas do Brasil que não pensam assim”, diz Everett.

Cada vez mais interessado em pesquisar sobre os indígenas que conheceu na sua infância, ele resolveu dar uma guinada na sua vida. Abandonou o mundo financeiro, fez doutorado e voltou para Rondônia, onde foi investigar as línguas amazônicas.

Da pesquisa, saiu seu primeiro livro, de 2017, Numbers and the Making of Us: Counting and the Course of Human Cultures (“Os números e a nossa formação: a contagem e o curso das culturas humanas”, em tradução livre). No livro, Caleb Everett defende que os números são um conceito que não é natural ou inato ao ser humano — e varia imensamente de acordo com cada cultura e idioma, ao ponto que é impossível dizer que existe uma forma universal e “natural” para os humanos aprenderem quantidades.

Recentemente, ele lançou outro livro em que volta ao tema. Em A Myriad of Tongues: How Languages Reveal Differences in How We Think (“Uma miríade de línguas: como as línguas revelam diferenças na forma como pensamos”, em tradução livre), Everett diz que nos acostumamos a acreditar que todas as línguas do mundo usam categorias universais para classificar ideias e objetos — já que a experiência humana é limitada a alguns aspectos comuns de todas as culturas.

Afinal, todos nós — independentemente de onde nascemos — contamos quantidades, lembramos do passado, planejamos o futuro e usamos pontos geográficos para nos localizarmos.

O linguista americano Caleb Everett passou parte de sua infância junto ao povo pirahã, em Rondônia (Emily Fakhoury)

Mas, segundo Everett, nem todas as línguas refletem o mundo dessa forma. Há línguas no mundo — como a pirahã, que ele aprendeu na infância — que sequer têm números precisos. Algumas línguas possuem apenas dois tempos verbais (o futuro e o não-futuro); outras possuem sete.

Essas discrepâncias são muito maiores do que apenas diferenças culturais, argumenta Caleb. Elas determinam de forma profunda como cada ser humano percebe e pensa o mundo.

A diferença é que para um povo, algumas noções de tempo podem ser não só irrelevantes — como quase incompreensíveis. Já outros povos podem ter uma compreensão mais sofisticada de tempo do que outros.

Para entender isso, linguistas como Caleb estão se debruçando sobre muitas línguas que não eram devidamente estudadas no passado — sobretudo na Amazônia. A tecnologia e a facilidade de se viajar no mundo atual acelerou o trabalho dos linguistas.

Mas eles correm contra o tempo, já que a modernidade está "matando" línguas em um ritmo mais acelerado, com povos indígenas tendo cada vez mais dificuldade de se sustentarem sem o aprendizado de outros idiomas.

O estudo das línguas amazônicas também está desafiando noções antigas de intelectuais sobre como os humanos falam. Esse debate traz à tona uma famosa disputa que existe no mundo acadêmico entre seu pai, Daniel, e o linguista americano Noam Chomsky, em torno da língua pirahã, de Rondônia, justamente a que Caleb aprendeu ainda quando criança.

Chomsky é famoso por propor o conceito de “gramática universal” — a ideia de que todas as línguas humanas possuem uma estrutura comum, independentemente de onde essas línguas se desenvolvem.

Mas Daniel Everett afirma que a língua pirahã desmente a tese de Chomsky. Em pirahã, não existiria a recursividade — algo que Chomsky diz ser inerente a todas as línguas e, portanto, universal. Recursividade é quando se insere uma frase dentro de outra, como em: “O policial que prendeu o bandido que roubou uma casa está na delegacia”.

Esse é um dos debates mais acalorados no mundo da linguística. Chomsky chegou a chamar Daniel Everett de charlatão e sugeriu que sua pesquisa sobre os pirahã era falsificada – já que por anos Daniel foi o único acadêmico a falar a língua.

Em entrevista para a BBC News Brasil, Caleb disse acreditar que este debate está ficando no passado, com os avanços tecnológicos que estão acontecendo no mundo da linguística. No mundo de hoje, são faladas mais de 7 mil línguas — e graças a avanços como ciência de dados e aprendizado de máquina, linguistas estão conseguindo expandir sua compreensão desses idiomas em uma velocidade inédita.

O resultado, segundo Caleb, é que algumas noções clássicas do mundo da linguística dos anos 1970 estão finalmente podendo ser colocadas à prova — e muitas delas não estão sendo aprovadas no teste.

Confira abaixo a entrevista que Caleb Everett deu à BBC News Brasil na qual fala sobre suas experiências na Amazônia brasileira, o debate sobre como as línguas moldam o mundo que experimentamos e os avanços no estudo dos idiomas nos dias de hoje.

BBC News Brasil: Seu livro sugere que estamos tendo uma melhor compreensão das mais de 7 mil línguas que hoje são faladas no mundo. O que os linguistas estão aprendendo com essas línguas menos conhecidas?

Caleb Everett: Estamos aprendendo muito. O que está claro é que as línguas são muito mais diferentes entre si do que pensávamos. Nós costumávamos supor que existia essa diversidade entre as línguas, mas que por trás delas haveria algum tipo de componente universal — algo que todas as línguas compartilhavam.

E o que estamos descobrindo, à medida que olhamos para mais e mais línguas, é que elas são diferentes em maneiras muito profundas, que não foram previstas em alguns dos modelos teóricos da linguística dos anos 1960 e 1970.

Existem alguns pontos em comum, é claro. Todos nós temos os mesmos ouvidos, as mesmas bocas e os mesmos cérebros.

Há essas semelhanças entre as línguas, mas não é porque existe algo geneticamente programado dentro da linguagem.

Livro de Caleb Everett discute como línguas podem revelar formas diferentes de pensamento dos humanos (Divulgação)

BBC: Muito do seu trabalho é baseado em línguas amazônicas que você estuda há muito tempo. O que você aprendeu especificamente com elas?

Everett: A Amazônia é realmente fascinante, porque embora existam outras regiões do mundo, como a Nova Guiné ou a África Ocidental, que têm mais línguas, as línguas da Amazônia são totalmente não relacionadas entre si.

Existem algumas centenas de línguas, mas existem dezenas de famílias linguísticas, como tupi ou aruaque ou algumas outras línguas isoladas que não têm ‘parentes’ conhecidos.

Algumas são totalmente distintas entre si e estão a apenas 100 quilômetros de distância uma da outra.

A Amazônia é uma espécie de microcosmo fascinante da diversidade linguística que existe no mundo.

E podemos aprender muito sobre as diversas formas como os humanos se comunicam olhando apenas para as pessoas na Amazônia.

Muitas vezes, eu acho, nós somos culpados no Ocidente de uma espécie de homogeneização desses grupos. Nós meio que os colocamos suas línguas, suas culturas no mesmo bojo.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF