Com os braços abertos a todos. A visita de São Josemaria Escrivá ao Brasil
1974. São Josemaria Escrivá esteve 15 dias no Brasil. Que mensagem
deixou aos brasileiros? Qual foi a sua impressão sobre o país? Este artigo
inédito descreve como foram organizados os encontros com o fundador do
Opus Dei em São Paulo, e resume a sua mensagem.
29/08/2017
Studia et Documenta é uma publicação anual do Istituto Storico San Josemaría
Escrivá dedicada à história do Opus Dei e
de seu Fundador. O tema monográfico da décima primeira edição, que ocupa a
primeira parte do volume, são as viagens de São Josemaria Escrivá à América
Latina entre os anos 1974-1975. Oferecemos a seguir o Artigo de Alexandre
Antosz sobre a visita de São Josemaria ao Brasil (Studia et Documenta vol.11,
pág 65-99, 2017).
***
INTRODUÇÃO. A VIAGEM AO BRASIL
Este artigo trata do conteúdo da mensagem de São Josemaria Escrivá no
Brasil, particularmente do que transmitiu nos dois encontros gerais, nos dias
1o e 2 de junho de 1974, oferecendo, na medida das possibilidades, informações
sobre as circunstâncias desses eventos. O estudo pretende contribuir para
aprofundar o conhecimento de sua catequese na América e ser um estímulo para
futuros trabalhos, que possam explorar o abundante material existente sobre
essa viagem. Em 2007 foi publicado um primeiro texto sobre o tema[1]; mas não
se trata de um relato histórico, apenas de alguns traços da santidade cristã
presentes na vida do fundador do Opus Dei, tomando como exemplo,
principalmente, seus dias no Brasil, como o próprio autor adverte[2]. Embora as
atuais biografias sejam muito parcas em informações sobre a estadia de São
Josemaria no Brasil[3], não
faltam documentos que possibilitam um conhecimento detalhado desta viagem[4]. O
presente trabalho está apoiado na transcrição fiel das tertúlias[5], nos
diários escritos durante a estadia de São Josemaria, entre os dias 22 de maio e
7 de junho de 1974[6], além dos
testemunhos de algumas pessoas que presenciaram os acontecimentos[7]. Todos
esses documentos se conservam nas sedes da Comissão Regional e da Assessoria
Regional[8] do
Opus Dei no Brasil, em São Paulo. Também tem em conta que as duas
tertúlias, como quase todas as suas palavras no Brasil, foram registradas e
parcialmente reproduzidas em Catequesis en América.
O avião que trouxe São Josemaria à América, o DC-8 da Ibéria, procedente
de Madri com escala nas Ilhas Canárias, aterrissou no aeroporto do Galeão, no
Rio de Janeiro, às 18h18 do dia 22 de maio de 1974[9]. Aguardavam-no
o conselheiro regional, pe. Francisco Javier de Ayala Delgado (1922- 1994)[10], conhecido
em Portugal e no Brasil como dr. Xavier de Ayala, Emérico da Gama (1931-2014) e
Alfredo Canteli. O Brasil foi o primeiro país que visitou na sua viagem pela
América do Sul, na qual pretendia realizar uma autêntica catequese[11].
Acompanhavam-no o beato Álvaro del Portillo (1914- 1994), o pe. Javier
Echevarría (1932-2016)[12] e
Alejandro Cantero, médico. Enquanto estes últimos, ajudados por Alfredo
Canteli, pegavam as bagagens, mons. Escrivá encaminhou-se com os outros para o
Bandeirantes, um avião menor de 15 lugares que os levaria a São Paulo[13].
O Brasil vivia um acelerado desenvolvimento econômico e, apesar da
ditadura política imposta pelos militares desde 1964, os cidadãos comuns
gozavam de uma relativa tranquilidade. A ditadura brasileira não era de cunho
pessoal: os presidentes alternaram-se, sempre escolhidos de dentro das Forças
Armadas. Não faltaram alguns acontecimentos violentos de repressão aos
movimentos de oposição e restrições às liberdades civis. Contudo, o governo
alcançava êxitos na área econômica. Em 1968 e 1969, o Produto Interno Bruto
(PIB) do país crescera respectivamente 11,2% e 10%, começando o que foi chamado
de “milagre econômico”, que atingiu o seu pico em 1973, quando o PIB teve uma
variação de 13%. Apesar das condições externas terem mudado muito com a crise
internacional do petróleo iniciada em outubro de 1973, no ano seguinte, quando
São Josemaria Escrivá chegou, o país ainda vivia a euforia com os resultados
satisfatórios na economia. Não podemos desdenhar ainda a alegria que permanecia
pela terceira conquista da Copa do Mundo pela seleção brasileira de futebol, em
1970, da qual o governo soube tirar proveito para sua propaganda nacionalista[14].
O general Ernesto Geisel (1907-1996), presidente empossado em março de
1974, desejava realizar uma abertura política lenta e gradual. A oposição
política, na qual havia também grupos favoráveis à luta armada, estava
abrandada pela dura repressão, que crescera gradativamente até este período.
Contudo, manifestações de vários grupos sociais como os estudantes, os
trabalhadores das fábricas, as associações profissionais, etc., vieram à tona
com novos ímpetos no governo Geisel. Também a Igreja no Brasil procurou sair em
defesa das liberdades civis, e alguns membros da hierarquia se defrontaram com
o governo, que procurava estabelecer um diálogo. Foi através da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), juntamente com outros grupos, que o
governo negociou o modo de encaminhar a restauração das liberdades públicas em
1978[15]. Esta
situação, porém, facilitou que uma parte considerável do clero se politizasse,
e se propagassem em seu meio as teses da Teologia da Libertação[16].
É relevante também citar a profunda e rápida transformação demográfica
que o Brasil estava vivendo. Na década de 1940, as mulheres brasileiras
apresentavam uma taxa de fecundidade de 6,3 filhos; caiu para 5,8 na década de
1960. A partir dos anos 70 a taxa de fecundidade reduziu-se drasticamente e, na
primeira década de 1980, foi para 3,3. Além disso, o país tornava-se muito mais
urbano: em 1940 apenas 16% da população morava nas cidades, enquanto que em
1980 eram 51,5%. O crescimento populacional também era acelerado: o Brasil
passou de 52 milhões de habitantes em 1940 para 146 milhões em 1990. Além
disso, havia um grande deslocamento migratório entre 1950 e 1970, do Nordeste
do país para o Sul, Sudeste e Centro-Oeste, o que se percebia particularmente
na cidade de São Paulo, que se tornou a maior cidade do país, com uma população
que já ultrapassava os 6 milhões de habitantes[17]. Junto a
todos esses fatores que levavam a um crescimento econômico acelerado nas
cidades, notava-se o início de uma decadência na vida moral e religiosa da
sociedade[18], o que se
pode intuir em algumas das perguntas formuladas a mons. Escrivá, como teremos
ocasião de notar mais adiante.
Os primeiros fiéis que vieram começar o trabalho apostólico no Brasil
chegaram em março de 1957, e instalaram-se na cidade de Marília[19]. Contudo,
depois de poucos anos, mudaram-se definitivamente para São Paulo, onde se
concentrava quase todo o trabalho apostólico em maio de 1974. Ver o fundador no
país era um sonho antigo dos membros do Opus Dei no Brasil, especialmente
do dr. Xavier de Ayala, que constantemente manifestava este desejo em suas
viagens a Roma, pois pensava que seria uma forma de fortalecer o trabalho
apostólico no país[20]. Sabemos
que por volta de março de 1974 a possibilidade de repetir a correria
catequética de 1972 por terras americanas ia ganhando força, e o desejo
explícito de São Josemaria de viajar é atestado por uma carta ao cardeal da
Guatemala Mario Casariego y Acevedo (1909-1983) de 25 de março[21]. Contudo,
no outro lado do Atlântico, essa possibilidade tornou-se mais real quando um
grupo que voltava de um encontro de estudantes universitários em Roma[22], em abril
de 1974, comentou que teriam feito ali algumas perguntas sobre o Brasil, como,
por exemplo, a temperatura no mês de maio[23]. Então,
foram vários os telefonemas e contatos com Roma e Espanha, e alguns dias depois
puderam ter a certeza da sua vinda e, passado mais um tempo, souberam da data
precisa[24]. Para
todos os membros do Opus Dei que moravam no Brasil era realmente um sonho
que estava a ponto de se realizar.
_____________
Alexandre Antosz Filho, sacerdote. Licenciado e bacharel em História
pela Universidade Federal do Paraná, mestre em História pela Universidade de
São Paulo e doutor em Teologia (especialidade em História da Igreja) pela
Pontificia Università della Santa Croce (Roma). e-mail: alexantosz@gmail.com
Notas:
[1] Francisco
Faus, São Josemaria Escrivá no Brasil, São Paulo, Indaiá, 20112.
[2] Cfr. ibid,
pp. 11-12.
[3] Cfr.,
por exemplo, Andrés Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei,
São Paulo, Quadrante, vol. III, 2004 (or: El Fundador del
Opus Dei, 2004, vol. III), pp. 632-637; Hugo de Azevedo, Uma
luz no mundo, Lisboa, Prumo - Rei dos Livros, 1988, pp. 345-348; Ana
Sastre, Tempo de Caminhar, Lisboa, Diel, 1994 (or: Tiempo
de Caminar, 1991), pp. 559-566; Peter Berglar, Opus Dei Vida y
obra del fundador Josemaría Escrivá de Balaguer, Madrid, Rialp, 19895
(or: Opus Dei Leben und Werk des Gründers Josemaria Escrivá de
Balaguer, 1983), pp. 290-293; Salvador Bernal, Mons Josemaria
Escrivá de Balaguer Perfil do Fundador do Opus Dei, São Paulo,
Quadrante, 1978 (or: Mons Josemaría Escrivá de Balaguer Apuntes sobre
la vida del Fundador del Opus Dei, 1977), pp. 50-51; 58-59; 60-62;
203-205; 244-249; 342-343; 411-414.
[4] Além
dos citados logo abaixo, devemos incluir um documento impresso dirigido aos
membros do Opus Dei, que traz abundantes informações sobre sua
viagem, Catequesis en América, vol. I, pp. 24-69, AGP, P04.
[5] Os
dois encontros gerais, como se explicará pormenorizadamente neste artigo, além
de filmados, foram gravados e transcritos integralmente. Para este artigo
tivemos acesso a este material, que ainda não foi publicado.
[6] O
diário da casa onde morou, no bairro do Sumaré, é um caderno de tamanho médio
com 143 páginas, escritas e numeradas a mão, intitulado: Diário da
primeira estadia do Padre no Brasil. O título era uma simpática
manifestação do desejo de que a estadia viesse a se repetir, o que, como é
sabido, não aconteceu. O relato, em estilo familiar mas muito preciso,
centra-se nos episódios vividos na casa, e começa exatamente no dia 22 de maio,
terminando no dia 7 de junho de 1974. Passaremos a citar como Diário da
primeira estadia. O diário do centro da Casa Nova, assim chamada a sede do
órgão de governo da sessão feminina, na rua Martiniano de Carvalho, é do mesmo
estilo e abrange o mesmo intervalo cronológico; ocupa 26 folhas A4
datilografadas, divididas em duas partes, intituladas: Rascunho do
diário da estadia do nosso Padre em São Paulo (1a parte), 10 páginas; Rascunho
do diário da estadia do nosso Padre em São Paulo (2a parte), 16 páginas.
Passaremos a citar Diário da Casa Nova, 1a parte e 2a parte,
respectivamente.
[7] São
muitas as pessoas que estiveram com São Josemaria na época. Entrevistamos
pessoalmente cerca de vinte pessoas, e nem todas são citadas, pois
acrescentaram pouco às fontes disponíveis. Pudemos esclarecer uma ou outra
informação pouco precisa ou pequenos detalhes contraditórios. Agradecemos
especialmente a ajuda de Alfredo Canteli, José María Córdova Fernández e
Francisco Faus Pascuchi, que foram membros da Comissão Regional na época.
[8] Chama-se
Comissão Regional o órgão de governo da sessão masculina de uma circunscrição
do Opus Dei, e Assessoria Regional o correspondente à sessão feminina.
[9] Diário
da primeira estadia, p. 1.
[10] Assim
chamava-se o sacerdote posto à frente do governo regional em cada
circunscrição. Atualmente o governo do Opus Dei está a cargo de um Prelado
e seus representantes em cada circunscrição denominam-se Vigário regional.
Francisco Xavier de Ayala Delgado era doutor em Direito Civil e Direito
Canônico, pediu admissão ao Opus Dei em 03 de março de 1940 e foi ordenado
sacerdote em 1948. Nomeado o primeiro conselheiro do Opus Dei em Portugal
(1949-1958), foi ao Brasil em 1961, onde dirigiu o Opus Dei até sua morte,
em 7 de outubro de 1994. Integrou também a Comissão Pontifícia de Revisão do
Código de Direito Canônico e a Comissão Paritária para a ereção da Obra em
Prelazia Pessoal.
[11] Sobre
os motivos e intenções desta viagem, ver Vázquez de Prada, O Fundador,
vol. III, pp. 620-632. A necessidade de difundir e confirmar a doutrina perene
da Igreja e dar a conhecer o Opus Dei de um modo mais vasto, que surgiu já
na década de 1960, foi a gênese remota desta viagem. Sobre isso, cfr. Conversaciones
con Monseñor Escrivá de Balaguer Edición crítico-histórica preparada
por José Luis Illanes − Alfredo Méndiz (eds.), Roma -Madrid, Instituto
Histórico San Josemaría Escrivá de Balaguer – Rialp, 2012, pp. 13-22.
[12] D.
Javier Echevarría foi a Roma em 1950, onde trabalhou sempre muito próximo de
São Josemaria e o Beato Álvaro. Ordenou-se sacerdote em 1955 e de 1994 a 2016
foi o Prelado do Opus Dei.
[13] Diário
da primeira estadia, pp. 2-5.
[14] Cfr.
Boris Fausto, História do Brasil, São Paulo, Edusp, 201214, pp.
409-424.
[15] Ibid ,
pp. 418-426.
[16] Sobre
a Teologia da Libertação, cfr. Josep-Ignasi Saranyana, Teologías
Latinoamericanistas, I, em Josep-Ignasi Saranyana (dir.), Teología
em América Latina, vol. III, Madrid- Frankfurt, Iberoamericana-Vervuert,
2002, pp. 255-331.
[17] Em
1950 a população do município de São Paulo era de 2.198.096 habitantes e em
1970 de 5.885.475. Dados de SEADE, SP Demográfico Resenha de
Estatísticas Vitais do Estado de São Paulo, Ano 13, n. 1, Janeiro 2013, p.
3.
[18] Cfr.
Fausto, História do Brasil, pp. 451-454.
[19] Cfr.
Maria Theresinha Degani, Brasil, em José Luis Illanes
(coord.), Diccionario de San Josemaría Escrivá de Balaguer,
Burgos-Roma, Monte Carmelo − Istituto Storico San Josemaría Escrivá, 20132, pp.
166-169; Vázquez de Prada, O Fundador, vol. III, pp. 321-334;
Sastre, Tempo, pp. 449-450. Ainda não existem estudos específicos
sobre estes inícios.
[20] Entrevista
com José María Córdova Fernández, 18 de fevereiro de 2014.
[21] Cfr.
Vázquez de Prada, O Fundador, vol. III, p. 628.
[22] O
encontro, denominado UNIV, se organiza desde 1968, durante a Semana Santa (cfr.
www.univforum.org, acessado em 18 de agosto de 2015). Em 1974 o domingo de
Páscoa caiu no dia 14 de abril.
[23] Entrevista
com José María Córdova Fernández, 18 de fevereiro de 2014.
[24] Um
grupo de cerca de 20 brasileiros que participou do UNIV e teve vários encontros
com São Josemaria em Roma, retornou ao Brasil no dia 19 de abril. Então, eles
nada sabiam da futura viagem de mons. Escrivá ao Brasil, e nada lhes fez intuir
essa possibilidade. Entretanto, antes de acabar o mês, souberam que ele viria
ao país. Entrevista com Eugenio Carlos Callioli, 11 de maio de 2016.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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