João Paulo II: virtudes de um Papa santo
Por Pe. Francisco Faus
COM A FORTALEZA DA FÉ
A fé, quando autêntica, é uma certeza amorosa
que, depois de elevar até Deus a alma agradecida, aninha-se no coração e o
torna capaz de amar a todos. Aí está a diferença entre fé e fanatismo, entre
convicção e “fundamentalismo”. O fanático, o fundamentalista exasperado, não é
capaz de compreender os que não pensam como ele; despreza-os e chega a
odiá-los.
Pelo contrário, quem tem a alma iluminada pela
fé de Jesus Cristo só sabe amar e, como ama loucamente Jesus, que veio ao mundo
– como Ele dizia a Pilatos – para dar testemunho da verdade (Jo
18, 37), conjuga em perfeita harmonia a firmeza na fé (sem “espaço para
cedências nem para um recurso oportunista à diplomacia humana” [5]), com a compreensão e o afeto sincero para
com os que divergem e erram. A afirmação da sua fé nunca foi, em João Paulo II,
uma imposição irada, mas um convite, como o que marcou o início do seu
pontificado: “Não tenhais medo! Abri as portas a Cristo!”
Assim foi João Paulo II, forte na fé –
como pedia São Pedro (I Pdr 5, 9), de quem foi sucessor -, “com uma fé corajosa
e sem medo, uma fé temperada na provação, pronta para seguir com generosa
adesão qualquer chamado de Deus”[6]; e, ao mesmo tempo, um homem de braços
abertos, disposto incansavelmente a sofrer todas as dificuldades, e até mesmo
vexames e desprezos (como sucedeu, por exemplo, com alguns episódios
indelicados na Nicarágua marxista, em Cuba e na Grécia), para avançar passo a
passo, sem nunca desfalecer, pelo caminho do diálogo com os representantes das
outras confissões cristãs, com os não-cristãos e com os não-crentes.
Numa breve biografia sobre João Paulo II, o
então cardeal Ratzinger terminava dizendo: “Hoje também os espíritos críticos
sentem com uma clareza sempre maior que a crise do nosso tempo consiste na
«crise de Deus», no desaparecimento de Deus do horizonte da história humana. A
resposta da Igreja deve ser uma só: falar sempre menos de si mesma e sempre
mais de Deus, dando testemunho dEle e sendo a porta para Ele. Este é o
verdadeiro conteúdo do pontificado de João Paulo II que, com o passar dos anos,
torna-se sempre mais evidente” [7].
UMA TOCHA DE CARIDADE
“AMOU ATÉ O FIM”
Os últimos anos, os últimos meses, os últimos
dias de João Paulo II, evidenciaram de uma maneira impressionante e crescente,
aos olhos de todos, que aquele ancião doente, combalido, encurvado, sofredor,
cada vez mais limitado, depois de ter dado a vida inteira ao serviço de Deus e
de seus irmãos os homens, estava disposto a entregar até a última gota, até o
último alento, enquanto Deus não viesse buscá-lo.
Seguindo as pegadas de Cristo, decidiu-se a
levar a sua caridade, o seu amor, até ao extremo, como Jesus, de quem diz o
Evangelho que, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o
fim (Jo 13, 1).
Ele próprio deixara escritas no seu
testamento, no ano 2000, as seguintes palavras: “Segundo os desígnios da
Providência, foi-me concedido viver no difícil século que está ficando no
passado e agora, no ano em que a minha vida alcança os oitenta anos, é necessário
perguntar-me se não chegou a hora de repetir com o bíblico Simeão: «Nunc
dimittis» [refere-se à oração do ancião Simeão que, no dia da apresentação do
Menino Jesus no Templo, diz a Deus que agora já o pode levar em paz deste
mundo: cfr. Luc 2, 29]“.
O escrito continua: “No dia 13e de maio de
1981, o dia do atentado contra o Papa durante a audiência geral na Praça de São
Pedro, a Divina Providência me salvou milagrosamente da morte. O mesmo único
Senhor da vida e da morte me prolongou esta vida e, em certo sentido, voltou a
dar-ma de novo. A partir desse momento, pertence-lhe ainda mais […]. Peço-lhe
que me chame quando Ele quiser. «Se vivemos, vivemos para o Senhor; e se
morremos, morremos para o Senhor… Somos do Senhor (Cf. Rom 14,8)». Espero que até
que possa completar o serviço petrino [de sucessor de Pedro] na Igreja, a
Misericórdia de Deus me dê forças para este serviço”.
E assim foi. A sua entrega foi como a de uma
lamparina que se extingue só depois de consumir-se inteiramente. Mas, à medida
em que sua vida se ia apagando, o seu amor resplandecia com mais força. Quem
não se lembra do seu derradeiro esforço por se comunicar, por levar a Palavra
aos fiéis, naquele dia de abril em que, o rosto emoldurado pela janela de onde
tinha falado tantas vezes, só pôde abrir a boca para exprimir silenciosamente a
dor, a agonia, as lágrimas silenciosas de um pastor esgotado, que já não mais
conseguia articular uma palavra?
Deixou-nos assim um reflexo extraordinário da
imagem do Bom Pastor, que dá a vida pelas suas ovelhas (Jo 10,
11). Na homilia das exéquias, o Cardeal Ratzinger recordava essa figura
evangélica em que João Paulo II ficava retratado: “Foi sacerdote até o final,
porque ofereceu a sua vida a Deus por suas ovelhas e por toda a família humana,
numa entrega cotidiana ao serviço da Igreja e, sobretudo, nas duras provas dos
últimos meses. Assim se converteu em uma só coisa com Cristo, o Bom Pastor que
ama as suas ovelhas”.
“AQUELE QUE DÁ A VIDA POR SEUS AMIGOS”
Eis aqui outras palavras de Cristo, na Última
Ceia, que ajudam a captar essa tocha de caridade: Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo 15, 15).
Cristo deu a vida com a sua dedicação
infatigável aos homens – Não vim para ser servido, mas para servir e
dar a vida para salvação de muitos (cfr. Mat 20, 28) -, mas a sua
entrega chegou ao ápice no sacrifício da Cruz. Com efeito, foi na Cruz, quando
já do corpo dilacerado escorriam as últimas gotas do sangue derramado para
a remissão dos pecados (Mt 26, 28), que Jesus pôde dizer: Tudo
está consumado! (Jo 19, 30).
Nos últimos anos, João Paulo II foi-se
configurando, cada vez mais plenamente, com Jesus sofredor, com a sua Paixão e
Morte, viveu uma intensa “consciência” do valor salvador da Cruz , que ele
sempre amara: “Nunca me aconteceu – escrevia – de colocar com indiferença a
minha Cruz peitoral de bispo. É um gesto que sempre acompanho com a oração. Há
mais de quarenta e cinco anos que a Cruz pousa em meu peito, ao lado do meu
coração. Amar a Cruz quer dizer amar o sacrifício”[8].
À medida que os seus sofrimentos físicos foram
aumentando, até envolvê-lo, por assim dizer, como uma espessa malha torturante,
o Papa foi compreendendo com mais profundidade que a sua dor, em união com a de
Jesus crucificado, seria, por desígnio divino, a nova forma de cumprir a missão
de pastor de um rebanho imenso, espalhado pelo mundo, entre perigos, incertezas
e ameaças.
Deixemos a palavra, mais uma vez, ao cardeal
Ratzinger, na homilia das exéquias de João Paulo II: “Precisamente nesta sua
comunhão com o Senhor que sofre, o Papa anunciou, infatigavelmente e com
renovada intensidade, o Evangelho, o mistério do amor até o fim”. E, neste
ponto, o cardeal citava palavras do próprio João Paulo II no seu último livro
“Memória e Identidade” (págs. 189-190): “Cristo, sofrendo por todos nós,
conferiu um novo sentido ao sofrimento, introduziu-o em uma nova dimensão, em
uma nova ordem: a do amor… É o sofrimento que queima e destrói o mal com a
chama do amor, e até do pecado tira um florescimento multiforme de bem”.
É tocante perceber como João Paulo II ia
crescendo nessa profunda visão sobrenatural. Após a queda no banheiro, em 28 de
abril de 1994, com graves fraturas, o Papa sofreu uma nova intervenção
cirúrgica na Policlínica Gemelli, que, no entanto, não pôde resolver
satisfatoriamente o problema. Passou, então, a usar bengala. As dores não
cederam, ao contrário. Os movimentos tornaram-se mais trôpegos e penosos.
Quando voltou a dirigir-se aos fiéis presentes
na Praça de São Pedro, à hora do Ângelus, em 29 de maio, agradeceu publicamente
a Cristo e Maria o “dom do sofrimento”, que via como “um dom necessário”.
Explicava-lhes, falando especialmente às famílias: “Meditei vezes sem conta
sobre tudo isso durante a minha estadia no hospital… Compreendi que tenho de
conduzir a Igreja de Cristo até este terceiro milênio através da oração, de
vários programas de atuação, mas vi que não é suficiente: tem de ser guiada pelo
sofrimento, pelo ataque de há treze anos [o atentado de Ali Agca] e por este
novo sacrifício […]. O Papa tinha de ser atacado, o Papa tinha de sofrer, de
modo que todas as famílias e o mundo possam ver que existe um Evangelho mais
grandioso: o Evangelho do sofrimento, pelo qual o futuro é preparado, o
terceiro milênio das famílias, de cada família e de todas as famílias” [9]
No dia primeiro de abril, pressentindo-se um
próximo desenlace, o Arcebispo Angelo Comastri, Vigário para o Estado da Cidade
do Vaticano e grande amigo do Papa, foi chamado com urgência ao quarto do
pontífice agonizante. Diante dele, como comentou depois pela Rádio vaticana,
experimentou uma emoção indescritível: “Ao vê-lo no leito do sofrimento,
disse-lhe: «És verdadeiramente o Vigário de Cristo até o final, na paixão que
estás vivendo, de modo tão edificante que comove o mundo». O Papa – continuou a
narrar -, com a sua dor, escreveu a encíclica mais bela da sua vida, fiel a
Jesus até o final”, a “encíclica nunca escrita” [10].
A sua morte espantou o mundo, pois viu nela um
“Evangelho da vida”. O Papa alegre, que amou entranhadamente a juventude, pouco
antes de expirar soube que multidões de jovens rezavam e velavam a sua agonia
ao pé da sua janela, e então disse, com um fio de voz apenas perceptível: “Vi
ho cercato, adesso siete venuti da me, e per questo vi ringrazio” (”Eu procurei
vocês, jovens, agora vocês vieram ter comigo; e por isso lhes dou as graças”).
Foram as últimas palavras que pronunciou.
_____________
Notas:
[5] João Paulo II, Levantai-vos!
Vamos!, citado, pág. 186
[6] Ibid.
[7] Joseph Ratzinger, João Paulo II.
Vinte anos na história, Ed. Paulinas, São Paulo 2000, pág. 31
[8] Levantai-vos! Vamos!, pág. 193
[9] Cfr. George Weigel, obra citada, pág.
582
[10] Revista Nuestro Tiempo, n.
610, abril 2005, págs. 38 e 39
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