O MEDO NAS CIDADES MODERNAS
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RS)
Recentemente, em uma reunião com o clero e os
fiéis leigos da Arquidiocese de Natal, discutimos sobre a pastoral urbana e a
evangelização na cidade. O tema do medo urbano foi recorrente, manifestado em
falas que expressavam receio de ir a determinados bairros e realizar atos
litúrgicos em certos horários. Esse medo impacta a evangelização, retraindo a
audácia pastoral para difundir o evangelho em todas as periferias,
comprometendo o mandato de Jesus: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho
a toda criatura” (Mc 16,15).
A cidade fascina e amedronta. Muitos que vivem
no interior aspiram morar na cidade grande, e a migração para as regiões
metropolitanas é comum, inclusive entre padres que desejam exercer seu
ministério na grande cidade. No entanto, o medo afeta a evangelização, levando
as pessoas a preferirem o isolamento dos condomínios fechados. Muitos padres
também trocam a casa paroquial próxima da matriz pela residência em condomínios
fechados, comprometendo a proximidade com suas comunidades, como pede o Papa
Francisco: “sede pastores com o cheiro das ovelhas” (Homilia Missa Crismal de
2013).
Essa situação me faz lembrar do artigo “A
cidade como exigência de sociabilidade” na coletânea “Dilemas da Sociabilidade,
Pensar a Cidade Hoje”, onde discuto o medo como um desafio para a convivência
urbana, com base nas contribuições de Zygmunt Bauman em “Confiança e medo na
cidade” (2009). Bauman afirma que a insegurança e o medo comprometem a vida
urbana, mesmo sendo as cidades mais seguras do que nas sociedades do passado.
Subjetivamente, as pessoas sentem-se ameaçadas e obcecadas por segurança, esvaziando
o espaço público e as interações humanas.
É urgente repensar a noção de espaço público
para recuperar a sociabilidade urbana, pois a urbanização é irreversível e a
vida nas cidades será o modo predominante de habitar o planeta. Portanto, é
necessário que o espaço urbano promova interação humana, encontro com o
desconhecido e convivência com a diferença, sem que a insegurança e o medo
impeçam essa função.
Cidades antigas e medievais eram protegidas
por muros contra inimigos externos, oferecendo segurança interna. Hoje, o medo
e a insegurança deslocaram-se para dentro das cidades. “Hoje, nossas cidades,
em vez de constituírem defesas contra o perigo, estão se transformando em
perigo” (BAUMAN, 2009, p. 35). O perigo agora está dentro da cidade e a guerra
à insegurança foi transferida para o seu interior.
Urbanistas projetam construções para manter os
estranhos distantes, minando a ideia de espaço público em favor do espaço
privado e suas ilhas de segurança. A arquitetura do medo, exemplificada por
condomínios fechados e sistemas de vigilância, atende ao desejo de segurança
dos moradores, mas compromete a essência do espaço público. “A arquitetura do
medo e da intimidação espalha-se pelos espaços públicos das cidades,
transformando-os em áreas extremamente vigiadas” (BAUMAN, 2009, p. 36).
A guerra à insegurança e ao medo tem esvaziado
o espaço público, essencial à vida urbana. É nos locais públicos que a vida
urbana atinge sua mais completa expressão, com suas alegrias, dores, esperanças
e pressentimentos. O espaço público carrega a ideia de liberdade e interação
com o estranho. Contudo, o medo que alimenta a obsessão pela segurança remove a
possibilidade de livre movimento e encontro com o estranho. “Com a insegurança,
estão destinadas a desaparecer das ruas da cidade a espontaneidade, a flexibilidade,
a capacidade de surpreender e a oferta de aventura, em suma, todos os atrativos
da vida urbana” (BAUMAN, 2009, p. 39).
O espaço público é vulnerável e exposto a
ataques, mas também é onde a atração pode superar a rejeição, onde se descobrem
e se praticam os costumes de uma vida urbana satisfatória e onde o futuro da
vida urbana é decidido (BAUMAN, 2009, p. 40). Para evangelizar, é necessário
não temer a cidade e superar a obsessão por segurança que gera segregação e
privatização dos espaços. É preciso recuperar a ideia do espaço público,
tornando-o um lugar onde as diferenças são valorizadas e onde é possível o
encontro e mover-se livremente. Revitalizar o espaço público é uma estratégia
para combater o isolamento e gerar encontros e comunhão entre estranhos,
superando a tendência de buscar refúgio em ilhas privadas de segurança.
A tendência de retirar-se dos espaços públicos
para refugiar-se em ilhas de “uniformidade” transforma-se no maior obstáculo
para conviver com a diferença, enfraquecendo diálogos e pactos. A exposição à
diferença torna-se um fator decisivo para uma convivência feliz, secando as
raízes urbanas do medo (BAUMAN, 2009, p. 41).
A humanização da cidade através da recuperação do
espaço público é a resposta mais razoável contra o perigo de um espaço urbano
residual onde as interações humanas se reduzem a conflitos entre automóveis e
pedestres, possuidores e despossuídos, tornando-se locais de tensão e
violência. Para que a sociabilidade encontre expressão na cidade, Bauman
defende um planejamento urbano que se desloque dos espaços privados para os
públicos, tornando-os amplos, atraentes e estimulantes. Isso deve acentuar a
“conexão, comunicação e celebração”, respondendo à tarefa de construir cidades
que alimentem comunidades e o ambiente que as sustentam (BAUMAN, 2009, p.
41).
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