Nos Estados Unidos, esta poderá
ser a decisão mais importante em relação aos sem-abrigo em décadas e poderá ter
implicações nacionais. Ao serviço dos mais pobres, especialmente das pessoas
que vivem na rua ou ameaçadas de despejo, a Sociedade de São Vicente de Paulo
não esconde a sua preocupação. Uma entrevista com o presidente da Associação
nos Estados Unidos, John Berry.
Entrevista
realizada por Marie Duhamel – Cidade do Vaticano
Os sem
abrigo podem ser punidas com multas ou penas de prisão? Nos Estados Unidos, a
pequena cidade rural de Grants Pass, no Oregon, decidiu desta forma, mas as
ordens tomadas neste sentido foram denunciadas por um grupo, nomeadamente dos
sem-abrigo, que exigiram justiça. O caso Grants Pass vs. G. Johnson já foi
entregue à Suprema Corte, que deve decidir antes das férias de verão. Num
parecer apresentado em abril passado aos nove juízes, a Conferência dos Bispos
denunciou a criminalização dos sem-abrigo, e julga estas ordens contrárias à
Oitava Emenda da Constituição Americana que estipula que “não se pode exigir
fiança desproporcional, nem impor multas excessivas ou punição cruel ou
incomum”.
A decisão
do Supremo Tribunal é aguardada, com preocupação, pelas Instituições da Igreja
que trabalham ao serviço dos mais necessitados. Temem não poder mais ajudar os
sem-abrigo a quebrar o ciclo de pobreza. É o que nos explica John Berry,
presidente nacional da Sociedade de São Vicente de Paulo. Estabelecido desde
1845 nos Estados Unidos, conta hoje com cerca de 90.000 membros.
Como a
sociedade de Saint-Vincent-de-Paul vê as leis aprovadas no Grants Pass?
Não podemos
tomar uma posição específica sobre questões de legislação, mas o facto de esta
questão ter passado a ser matéria de legislação e ter chegado ao Supremo
Tribunal mostra que no nosso país não temos tratado de forma adequada a questão
dos sem-abrigo e como servir os pobres. Nenhuma lei aprovada por qualquer
cidade acabará com o problema dos sem-abrigo.
Para acabar
com os sem-abrigo é preciso investir na prevenção e a assistência financeira a
curto prazo. Os serviços de apoio são incrivelmente eficazes para ajudar
indivíduos e famílias a permanecerem em suas casas. A Universidade Católica de
Notre Dame, aqui nos Estados Unidos, descobriu que as pessoas que recebem uma
média de dois mil dólares em ajuda financeira de emergência têm 81% menos
probabilidade de se tornarem sem-abrigo no prazo de seis meses após receberem
esta assistência, e 73% menos probabilidade de se tornarem sem-abrigo nos doze
meses seguintes. Legislar as cidades para combater a falta de abrigo entre os
sem-abrigo não é, portanto, a solução. Ela não vai mudar nada.
Como
católicos, podemos discordar sobre as propostas políticas e sobre como combater
a pobreza, mas não podemos contestar que a prevenção funciona. É muito mais
eficaz e bem-sucedido a longo prazo antecipar e prevenir problemas do que
esperar até que alguém fique sem abrigo e depois tentar realojá-lo.
Se as
ordens do Grants Pass fossem mantidas pelo Supremo Tribunal, quais poderiam ser
as consequências?
Se o
Supremo Tribunal confirmar as decisões do Grants Pass que criminalizam os
sem-abrigo, estes serão forçados a mudar-se, criando desafios adicionais no
serviço à comunidade dos sem-abrigo. Organizações eclesiais como a Sociedade de
Saint-Vincent-de-Paul, mas também Catholics Charities (as filiais americanas da
Caritas) ou Catholic Relief Services, terão muito mais dificuldades em cumprir
a sua tarefa, porque o nosso modelo de serviço, que envolve reuniões com
pobres, através de visitas individuais, será muito mais complicado. Veremos um
aumento de pessoas sem-abrigo nas cidades que não adotam estas leis e isso
dificultará a capacidade de fornecer os serviços de que necessitam.
Quando se
diz que terão de se “deslocar”, isso implica obviamente que estão a desfazer a
sua rede social: as suas amizades, mas também o apoio associativo ou outro que
recebiam. Está preocupado que alguns deles desapareçam completamente?
Acredito
que muito deles se estabelecerá em acampamentos nas matas ou em locais onde
desaparecerão entre uma população de “indesejáveis”. Isso vai se tornar um
problema. É algo muito trágico. Vários moradores de rua enfrentam problemas de
saúde mental que exigem acompanhamento. Poderão haver problemas de dependência
(de drogas) que eles estejam a tentar ultrapassar e, para isso, precisam ter
acesso ao tipo de serviços de apoio que nós e outros prestamos. E se eles
tivessem que ir para um lugar onde desapareceriam e não teriam acesso aos
nossos serviços? Isto apenas criaria um ciclo de pobreza e eles deixariam de
poder ter alguém que os ajudasse a rompê-lo. Essas pesoas estariam enfrentando
uma trágica situação.
Alguns
arriscariam a vida desta forma, mas para quem não tem problemas de saúde mental
ou dependência química, como se recuperar e como sair das ruas quando se sabe
que a primeira coisa que um locador faz antes de alugar seu imóvel é verificar
o antecedente da pessoa que solicita o apartamento? Se um morador de rua foi
multado, principalmente se já esteve na prisão, ele nunca poderá alugar o
apartamento. Neste sentido, podemos dizer que criminalizar os sem-abrigo é uma
condenação definitiva?
Este é um
ponto importante porque é um desafio enfrentado por muitas pessoas em situação
de pobreza ou sem-abrigo que tentam estabelecer residência, seja um apartamento
ou uma casa, e que são sujeitas a uma averiguação de crédito. Mesmo que não
sejam sem-abrigo. Trabalhamos com mães solteiras que moram em hotéis de longa
permanência, onde pagam preços exorbitantes para morar em um quarto com seus
filhos. Podem ter um trabalhar, ter um rendimento, mas devido a antecedentes
judiciais, como consumo de marijuana ou furto em lojas, têm grande dificuldade
em encontrar um proprietário que concorde em alugar-lhes um apartamento ou uma
casa. Como Sociedade de Saint-Vincent-de-Paul, trabalhamos, portanto, com estas
pessoas e com os proprietários para tentar dar-lhes garantias e oportunidades
de habitação. Se a Suprema Corte mantivesse as leis do Grants Pass, os sem-teto
seriam presos. E com antecedentes criminais, trabalhar com eles para que se
mudassem mais tarde se tornaria muito mais difícil. Este seria outro obstáculo
que os impediria de se tornarem estáveis e independentes.
Se apoiado
pelo Supremo Tribunal, outras cidades virão a tomar medidas que criminalizam os
sem-abrigo?
Esperamos
que, seja qual for o resultado, os decisores políticos não aproveitem a
oportunidade para punir os sem-abrigo, mas, em vez disso, implementem medidas
de prevenção que evitem que as pessoas pobres fiquem sem-abrigo. Devemos,
portanto, enfrentar os encargos financeiros das pessoas que estão prestes a
acabar na rua. Além disso, o facto de, dentro do mesmo estado, poder haver
várias cidades a adotar abordagens diferentes a este respeito, poderia levar a
uma intervenção a nível estadual ou federal. Os responsáveis políticos poderiam
unir-se e talvez encontrarem soluções para abordar esta questão numa base mais
ampla, porque não é necessário que uma cidade aprove leis sobre os sem-abrigo e
outra não.
A pobreza é
um tema que tem sido abordada pelos políticos, especialmente antes das eleições
presidenciais de novembro?
Infelizmente,
o tema da pobreza não tem sido suficientemente discutido nas eleições há vários
anos. Há muito tempo que as questões da pobreza ou dos sem-abrigo não têm sido
abordadas de forma adequada, a qualquer nível, nas eleições. Precisamos
debatê-lo, discuti-lo. Devemos pensar neste problema de forma ampla, envolvendo
o sector privado, o sector público, as religiões, questionando os modelos
económicos existentes. Precisamos tratar essas pessoas como pessoas, não como
coisas que precisam ser transportadas de um lugar para outro. Espero que o
governo, num momento ou noutro, comece a compreender que não pode ignorar este
problema. Especialmente porque é um problema que está a piorar, enquanto as
disparidades económicas entre ricos e pobres só aumentam.
Os
moradores de rua votam nos Estados Unidos?
Depende.
Para votar nos Estados Unidos, é preciso ter uma identidade estabelecida. Uma
carteira de identidade ou pelo menos alguma forma de identificação, carteira de
motorista, identidade do governo federal, passaporte, algo assim. Mas para
obtê-los é necessário ter residência. Daí, alguém que mora na rua não pode ter
esses documentos. Então não, eles não podiam votar. Estão, portanto, privados
do direito de voto devido à sua situação, o que os torna ainda mais privados de
voz, o que é uma situação trágica para eles. Eles não têm voz em seu próprio
futuro.
Quantas
pessoas sem-abrigo são ajudadas todos os dias e quantas deveriam ser?
Não há um
número preciso, mas posso afirmar que há muito mais pessoas que procuram ajuda
do que entidades disponíveis para as ajudar. Na Sociedade de São Vicente de
Paulo, só podemos responder a uma fração dos pedidos que recebemos atualmente,
e sei que a Catholic Charities e outras estão na mesma situação. Fazemos
esforços constantes todos os dias para buscar mais financiamento, para buscar
parcerias adicionais para alimentos, utensílios domésticos e roupas, para
aumentar nossa capacidade de serviço.
Na realidade, também precisamos
de pessoas que sejam capazes de trabalhar com as pessoas que servimos. Como
organização católica cuja missão é crescer em santidade e espiritualidade
através do nosso serviço aos pobres, estamos muito focados no encontro que
temos com as pessoas que servimos, um encontro de humano para humano centrado
em Cristo. Não somos apenas uma agência de serviço social que distribui ajuda,
esforçamo-nos por respeitar e honrar a humanidade de todos aqueles que
ajudamos. Por esse motivo, atendemos as pessoas individualmente,
presencialmente. Este é um aspeto muito intenso e muito importante do nosso
trabalho. Precisamos cada vez mais de pessoas que queiram ingressar na
Sociedade, especialmente jovens. Temos quase 90 mil membros nos Estados Unidos,
mas poderíamos ter o dobro para poder servir todos aqueles que nos procuram. É,
portanto, um esforço contínuo da nossa parte tentar disponibilizar recursos
humanos, financeiros e materiais para servir todas as pessoas que deles
necessitam.
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