Trabalho de Deus
“Não vos digo: abandonai a cidade e afastai-vos dos negócios. Não. Permanecei onde estais, mas praticai a virtude”. Isso dizia um santo do século quarto e o repetia São Josemaria ao proclamar que Deus nos espera na vida cotidiana e no trabalho bem feito.
24/05/2010
* * *
Os ensinamentos que São Josemaria transmitiu com a sua palavra e os seus
escritos, juntamente com o seu exemplo, constituem um espírito com
traços característicos, como o sentido de filiação divina, a contemplação na
vida cotidiana, a fusão da alma sacerdotal com a mentalidade laical, o amor à
liberdade e a alegria dos filhos de Deus... Estes e todos os outros aspectos
dos ensinamentos do Fundador do Opus Dei não são simplesmente elementos
justapostos, mas centelhas de um único espírito capaz de informar e penetrar em
todos os momentos e circunstâncias da vida.
Do mesmo modo que uma porta gira com naturalidade à volta do seu gonzo,
assim o espírito da Obra apoia-se, como que na sua dobradiça, no
trabalho ordinário, no trabalho profissional exercido no meio do mundo [7].
A dobradiça de uma porta não é mais importante que a porta,
mas um elemento que ocupa uma posição única. Assim como uma dobradiça sozinha
não serviria para nada sem porta, do mesmo modo não teria sentido – por muito
que brilhasse - um trabalho profissional isolado do conjunto, convertido enfim em
si mesmo: um trabalho que não fosse eixo da santificação de
toda a vida ordinária, familiar e social. Mas, ao mesmo tempo, o que seria da
porta sem o eixo? Para nós, o trabalho profissional, os deveres familiares e
sociais são elementos inseparáveis da unidade da vida, imprescindível para nos
santificarmos e santificar o mundo de dentro, formação da sociedade humana, de
acordo com o querer de Deus [8].
O nosso trabalho profissional pode ser, efetivamente, trabalho de
Deus, operatio Dei, porque somos filhos adotivos de Deus e formamos
uma só coisa com Cristo. O Filho Unigênito fez-se Homem para nos unir a Si –
como os membros de um corpo estão unidos à cabeça – e agir por meio de nós.
Verdadeiramente somos de Cristo como Cristo é de Deus [9]. Ele vive e atua no
cristão pela graça.
São Josemaria pregou incansavelmente que qualquer trabalho honesto pode
ser santificado – tornar-se santo –, converter-se em obra de
Deus. E que o trabalho assim santificado nos identifica com Cristo – perfeito
Deus e perfeito Homem –, nos santifica e aperfeiçoa, transformando-nos
na sua imagem. É tempo de os cristãos dizerem em voz alta que o
trabalho é um dom de Deus [10]: não um castigo ou uma maldição, mas
uma realidade querida e abençoada pelo Criador antes do pecado original [11],
uma realidade que o Filho do Deus encarnado assumiu em Nazaré, onde levou uma
vida de muitos anos de trabalho diário em companhia de Santa Maria e São José,
sem brilho humano, mas com esplendor divino. Nas mãos de Jesus o
trabalho, e um trabalho profissional semelhante ao que desenvolvem milhões de
homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho
da salvação [12]. O próprio esforço que exige o trabalho foi elevado
por Cristo a instrumento de libertação do pecado, de redenção e santificação
[13]. Não existe trabalho humano limpo que não possa “transformar-se em âmbito
e matéria de santificação, em campo de exercício das virtudes e em diálogo de
amor” [14].
Nas nossas mãos, como nas de Cristo, o trabalho tem de se converter em
oração a Deus e em serviço aos homens para a corredenção da humanidade inteira.
O Criador formou o homem do barro da terra e tinha-o feito participar do Seu
poder criador para que aperfeiçoasse a Criação, transformando-a com seu engenho
[15]. No entanto, depois do pecado, em vez de elevar as realidades desta terra
à glória de Deus por meio do trabalho, muitas vezes o homem cega e degrada a si
mesmo. Mas Jesus converteu o barro em colírio para curar a nossa cegueira, como
fez com o cego de nascença [16]. Quando descobrimos que é possível santificar o
trabalho, tudo fica iluminado com um novo sentido e começamos a ver e a amar a
Deus – a ser contemplativos – nas situações que antes pareciam monótonas e
vulgares ou se desenvolviam num horizonte apenas terreno, sem alcance eterno e
sobrenatural.
Um panorama esplêndido abre-se à nossa frente: santificar o
trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho [17].
Somos protagonistas do desígnio divino de pôr Cristo no cume de todas as
atividades humanas. Desígnio que Deus quis que São Josemaria, compreendesse com
uma visão clarividente que o levava a escrever, cheio de fé na graça e de
confiança na nossa correspondência: Contemplo já ao longo dos tempos
até o último dos meus filhos – porque somos filhos de Deus, repito – atuar
profissionalmente, com sabedoria de artista, com felicidade de poeta, com
segurança de mestre, com pudor mais persuasivo do que a eloquência, buscando –
ao procurar a perfeição cristã na sua profissão e seu estado no mundo – o bem
de toda a humanidade[18].
* * *
Oh Deus, que preciosa é a tua misericórdia! Por isso, os filhos dos
homens, se acolhem à sombra das tuas asas (...). Em ti está a fonte da vida, e
na tua luz veremos a luz [19]. A Santíssima
Trindade concedeu ao nosso Fundador a sua luz para que contemplasse
profundamente o mistério de Jesus Cristo, a luz dos homens [20]:
concedeu-lhe “uma vivíssima contemplação do mistério do Verbo Encarnado, graças
à qual compreendeu com profundidade que o emaranhado das realidades humanas se
compenetra intimamente no coração do homem renascido em Cristo, com a economia
da vida sobrenatural, convertendo-se assim em lugar e meio de santificação”
[21]. O espírito da Obra iluminou já a vida de uma multidão de homens e
mulheres das mais diversas condições e culturas, que empreenderam a aventura de
ser santos na naturalidade da vida cotidiana. Uma aventura de amor a Deus,
abnegado e forte, que enche de felicidade a alma e semeia no mundo a Paz de
Cristo [22].
João Paulo II convidava a seguir fielmente o exemplo de São
Josemaria. “Seguindo as pegadas do vosso Fundador, prossegui com zelo e
fidelidade a vossa missão. Mostrai com o vosso esforço diário que o amor de
Cristo pode animar todo o arco da existência” [23]. Contamos, sobretudo,
com a intercessão de nossa Mãe. Pedimos a Ela que nos prepare diariamente o
caminho e no-lo conserve sempre. Dulcissimum Cor Mariae, iter para
tutum!, Serva tutum Iter!
J. López
____________
Bibliografia:
[7] É Cristo que passa, n. 45.
[8] Cfr. Conc. Vaticano II, Cons. dogm. Lumen gentium, n.
33.
[9] Cfr. Jo 6, 56-57; 17, 23; 1 Co 3,
23; Cl 1, 26-29; Gal 2, 20; Rm 8,
10-11.
[10] É Cristo que passa, n. 47.
[11] Cfr. Gn 2, 15.
[12] Questões atuais do Cristianismo, n. 55.
[13] Cfr. 1 Cor 6, 11.
[14] João Paulo II, Alocução na Audiência aos participantes no
Congresso “A grandeza da vida cotidiana”, 12-01-2002, n. 2.
[15] Cfr. Gn 2, 7, 15.
[16] Cfr. Jo 7, 7.
[17] É Cristo que passa, n. 44.
[18] São Josemaria, Carta 9-01-1932, n. 4.
[19] Sal 35, 8, 10.
[20] Jo 1, 4.
[21] Congregação para as Causas dos Santos, Decreto sobre o
exercício heroico das virtudes do Servo de Deus Josemaria Escrivá de Balaguer,
Fundador do Opus Dei, 9-04-1990, §3.
[22] Cfr. Ef 1, 10.
[23] João Paulo II, Alocução na Audiência aos participantes no
Congresso “A grandeza da vida cotidiana”, 12-01-2002, n. 4.
Fotografias
do artigo sob licença Creative Commons de (por ordem de aparição): catdancing,
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