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segunda-feira, 1 de julho de 2024

'A língua que falamos determina como pensamos' (2)

O pai de Caleb, Daniel Everett, foi para a Amazônia como missionário, mas acabou virando linguista (Daniel Everett)

'A língua que falamos determina como pensamos': americano que cresceu com indígenas na Amazônia explica relação.

  • Autor, Daniel Gallas
  • Role, Da BBC News Brasil em Londres

22 junho 2024

BBC: Na Amazônia, o que você descobriu que sustenta essa ideia de que as pessoas pensam diferente porque falam diferente?

Everett: Uma forma pela qual as línguas dessa região produziram insights é como as pessoas pensam sobre o tempo.

Em inglês e em muitas línguas, temos a tendência, por exemplo, de usar metáforas em que o futuro está na nossa frente e o passado está atrás de nós.

Mas existem alguns grupos na Amazônia que não falam sobre o tempo dessa forma.

Há um caso famoso de língua Tupi Kawahib, onde eles nem falam sobre tempo em termos de espaço.

Quando uma língua como o inglês tem três tempos, algumas línguas têm até sete tempos. Elas dividem o tempo de maneiras muito diferentes.

Então não se trata apenas de coisas superficiais, como “eles falam sobre plantas e animais de forma diferente”.

E isso é verdade até certo ponto. Mas o que mais me interessa, e o foco do livro, são esses aspectos fundamentais do pensamento humano.

Como pensamos sobre as quantidades, como pensamos sobre o espaço, como pensamos sobre o tempo e como os humanos desenvolvem essas capacidades, e como isso parece variar em alguns aspectos entre culturas.

BBC: No seu livro, você dá o exemplo de uma frase em inglês com muitas referências ao tempo: “Na segunda-feira passada eu corri por meia hora, como eu faço todas as semanas”. Você disse que algumas das línguas que estuda não têm todos os recursos para enquadrar o tempo dessa forma. Já outras têm sete tempos verbais. Essas línguas são menos ou mais sofisticadas do que as que estamos acostumados?

Everett: Você vê idiomas que talvez prestem atenção ao tempo e às maneiras que nós não fazemos.

Se você tiver na sua língua apenas passado, presente ou futuro, quando você estiver falando, basta indicar se foi em um desses três tempos.

Mas se você tem sete tempos que podem incluir algo como passado muito distante ou um futuro muito distante, então você deve prestar atenção a esses aspectos temporais e talvez a formas mais sutis.

BBC: Em que idioma foi isso?

Everett: É uma linguagem chamada yagua [falada na Amazônia peruana]. Embora existam muitas línguas que possuem cinco ou seis tempos, há algumas que não possuem nenhum tempo verbal.

Uma das línguas que trabalhei na Amazônia, Karitiana, tem dois tempos: futuro e não futuro. Essa é uma língua falada no Estado de Rondônia. Esse é um sistema de tempo bastante comum. Mas o exemplo que você lembrou, sobre uma corrida que fiz de 30 minutos ontem ou na semana passada. Vamos pensar sobre essa frase. O que são 30 minutos? Minutos é algo muito definido cultural e linguisticamente. O minuto vem de um sistema numérico de base 60 que remonta à Mesopotâmia, e é por isso que dividimos a nossa hora 60 — e depois dividimos novamente para ter segundos. São coisas culturais muito arbitrárias que aprendemos, e parecem naturais para nós à medida que aprendemos a contar as horas.

Mas é realmente antinatural para muitas pessoas.

Então você pode imaginar se estiver conversando com um amazônico que nunca topou com o conceito de horas, minutos ou semana, que também é culturalmente construída. Há tantas tradições culturais muito específicas incorporadas apenas nessa frase que impactam como pensamos.

Pense no quanto o seu dia é ditado olhando os relógios e pensando onde você tem que estar em um determinado horário e em determinados minutos. Isso tudo é arbitrário.

Muitas culturas prescindem completamente destas noções. Estas coisas são codificadas na linguagem aprendida pelas crianças desde cedo, que moldam a forma como pensamos sobre a passagem do tempo. E isso parece totalmente natural para nós até que você seja confrontado com alguém para quem esses conceitos sejam totalmente antinaturais e você percebe "este é um humano inteligente e eles não precisam desses conceitos.”

Isso não quer dizer que eles sejam inúteis. Acho que são muito úteis, mas são úteis no nosso contexto cultural. E são apenas uma maneira diferente de pensar sobre o mundo. Eles não são “a” maneira de pensar sobre o mundo.

BBC: Vamos pegar, por exemplo, o idioma que você mencionou que tem sete tempos. O que você percebe que é diferente na maneira como eles pensam ou na forma como sua sociedade é?

Everett: Parte disso, eu diria, é arbitrário.

Mas o que alguns pesquisadores tentaram fazer é um teste experimental: será que estas diferenças linguísticas têm impacto na forma como as pessoas pensam sobre o tempo em geral, mesmo quando não estão falando?

E há uma boa quantidade de evidências agora de que isso acontece.

Como no exemplo do futuro estando à sua frente no passado, atrás de você.

Há uma boa quantidade de evidências experimentais agora de que, mesmo quando as pessoas nessas línguas estavam, o passado está à sua frente e o futuro está atrás de você, há uma boa quantidade de evidências de que as pessoas pensam sobre o tempo de maneira diferente, mesmo quando elas não estão falando.

Experiências básicas mostraram que quando as pessoas falam sobre o futuro em algumas destas línguas, elas apontam para trás, e quando falam sobre o passado, apontam para a frente, enquanto os falantes de inglês fazem o inverso.

Tendemos a pensar que estamos caminhando em direção ao futuro, enquanto para muitas dessas culturas é o contrário. E se você pensar bem, faz sentido. Porque você pode ver o passado. Você vê o que comeu no café da manhã. Você sabe o que aconteceu ontem. Mas o futuro é meio desconhecido para nós, então esse tipo de metáfora básica de visão e ver o passado, não ver o futuro, é a base de como as pessoas pensam sobre o tempo. E algumas dessas culturas e essa forma de pensar sobre o tempo surge mesmo em contextos não linguísticos.

BBC: Você teve uma infância muito interessante e inusitada, tendo passado grande parte do tempo com indígenas no Brasil. Como foi essa experiência?

Everett: Tenho boas lembranças da minha infância e do Brasil. Passei grande parte da minha infância na aldeia pirahã com minhas duas irmãs e meus pais.

Mas também passei um tempo em escolas públicas brasileiras, indo e voltando e ocasionalmente visitando os EUA.

Minha infância foi uma mistura de estar na aldeia no meio da selva, estar em cidades brasileiras e depois estar ocasionalmente em cidades americanas.

Em Porto Velho, em Campinas e em São Paulo, porque meu pai acabou fazendo doutorado na Unicamp.

As memórias de estar na selva são geralmente muito boas. Eu olho para trás agora e penso que nunca faria isso com meu filho (risos), quando penso nos riscos que corremos. Todos nós contraímos malária. É fácil olhar para trás com carinho quando todos sobreviveram.

Mas porque todos nós sobrevivemos e eu tenho boas lembranças de estar na aldeia nadando no rio com meus amigos indígenas, de caçar ou pescar com minhas irmãs, mas também alguns dos aspectos negativos, como a exploração dos indígenas por comerciantes locais.

No geral, foi uma infância muito positiva e tenho ótimas lembranças de estar na selva.

BBC: Você mencionou a língua pirahã e esse tem sido um debate bastante famoso no mundo linguístico entre seu pai e o famoso linguista americano Noam Chomsky. Esse debate intelectual chegou a ser bastante feroz na troca de palavras. O seu trabalho parece estar muito relacionado a essa questão que é central no mundo da linguística. Como você vê esse debate tão polêmico?

Everett: É um debate muito polêmico. Gosto de pensar que, de certa forma, a ciência superou alguns desses debates e o campo se tornou mais empírico. Meu pai foi certamente uma das pessoas que contribuiu para isso. Muitos pesquisadores nas últimas décadas trouxeram dados de diferentes idiomas na Austrália, na Amazônia e na África, que não parecem estar de acordo com os modelos que Chomsky e que outros promoveram nas décadas de 60 e 70. E esses modelos se tornaram muito influentes.

Na defesa desses modelos, eles parecem ter funcionado muito bem no começo. Mas na medida em que surgem mais e mais exceções, as coisas simplesmente não parecem se encaixar. E você tem que perguntar qual é a utilidade desse modelo?

O modelo é baseado, em grande parte, no inglês.

A nova safra de pesquisadores — a minha geração e a geração seguinte — não está muito satisfeita com os modelos dos anos 60 e 70. E isso não é um insulto.

Isso acontece em muitos campos. As coisas evoluem.

E agora acho que já ultrapassamos isso de uma forma que não é mais o debate central da linguística.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF