'A língua que falamos determina como pensamos': americano que cresceu com indígenas na Amazônia explica relação.
- Autor, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em
Londres
22 junho 2024
BBC: Na Amazônia, o que você descobriu que sustenta
essa ideia de que as pessoas pensam diferente porque falam diferente?
Everett: Uma forma pela qual as línguas dessa região produziram insights é
como as pessoas pensam sobre o tempo.
Em inglês e em muitas línguas, temos a tendência,
por exemplo, de usar metáforas em que o futuro está na nossa frente e o passado
está atrás de nós.
Mas existem alguns grupos na Amazônia que não falam
sobre o tempo dessa forma.
Há um caso famoso de língua Tupi Kawahib, onde eles
nem falam sobre tempo em termos de espaço.
Quando uma língua como o inglês tem três tempos,
algumas línguas têm até sete tempos. Elas dividem o tempo de maneiras muito
diferentes.
Então não se trata apenas de coisas superficiais,
como “eles falam sobre plantas e animais de forma diferente”.
E isso é verdade até certo ponto. Mas o que mais me
interessa, e o foco do livro, são esses aspectos fundamentais do pensamento
humano.
Como pensamos sobre as quantidades, como pensamos
sobre o espaço, como pensamos sobre o tempo e como os humanos desenvolvem essas
capacidades, e como isso parece variar em alguns aspectos entre culturas.
BBC: No seu livro, você dá o exemplo de uma frase
em inglês com muitas referências ao tempo: “Na segunda-feira passada eu corri
por meia hora, como eu faço todas as semanas”. Você disse que algumas das
línguas que estuda não têm todos os recursos para enquadrar o tempo dessa
forma. Já outras têm sete tempos verbais. Essas línguas são menos ou mais
sofisticadas do que as que estamos acostumados?
Everett: Você vê idiomas que talvez prestem atenção ao tempo e às maneiras
que nós não fazemos.
Se você tiver na sua língua apenas passado,
presente ou futuro, quando você estiver falando, basta indicar se foi em um
desses três tempos.
Mas se você tem sete tempos que podem incluir algo
como passado muito distante ou um futuro muito distante, então você deve
prestar atenção a esses aspectos temporais e talvez a formas mais sutis.
BBC: Em que idioma foi isso?
Everett: É uma linguagem chamada yagua [falada na Amazônia peruana]. Embora
existam muitas línguas que possuem cinco ou seis tempos, há algumas que não
possuem nenhum tempo verbal.
Uma das línguas que trabalhei na Amazônia,
Karitiana, tem dois tempos: futuro e não futuro. Essa é uma língua falada no
Estado de Rondônia. Esse é um sistema de tempo bastante comum. Mas o exemplo
que você lembrou, sobre uma corrida que fiz de 30 minutos ontem ou na semana
passada. Vamos pensar sobre essa frase. O que são 30 minutos? Minutos é algo
muito definido cultural e linguisticamente. O minuto vem de um sistema numérico
de base 60 que remonta à Mesopotâmia, e é por isso que dividimos a nossa hora
60 — e depois dividimos novamente para ter segundos. São coisas culturais muito
arbitrárias que aprendemos, e parecem naturais para nós à medida que aprendemos
a contar as horas.
Mas é realmente antinatural para muitas pessoas.
Então você pode imaginar se estiver conversando com
um amazônico que nunca topou com o conceito de horas, minutos ou semana, que
também é culturalmente construída. Há tantas tradições culturais muito
específicas incorporadas apenas nessa frase que impactam como pensamos.
Pense no quanto o seu dia é ditado olhando os
relógios e pensando onde você tem que estar em um determinado horário e em
determinados minutos. Isso tudo é arbitrário.
Muitas culturas prescindem completamente destas
noções. Estas coisas são codificadas na linguagem aprendida pelas crianças
desde cedo, que moldam a forma como pensamos sobre a passagem do tempo. E isso
parece totalmente natural para nós até que você seja confrontado com alguém
para quem esses conceitos sejam totalmente antinaturais e você percebe
"este é um humano inteligente e eles não precisam desses conceitos.”
Isso não quer dizer que eles sejam inúteis. Acho
que são muito úteis, mas são úteis no nosso contexto cultural. E são apenas uma
maneira diferente de pensar sobre o mundo. Eles não são “a” maneira de pensar
sobre o mundo.
BBC: Vamos pegar, por exemplo, o idioma que você
mencionou que tem sete tempos. O que você percebe que é diferente na maneira
como eles pensam ou na forma como sua sociedade é?
Everett: Parte disso, eu diria, é arbitrário.
Mas o que alguns pesquisadores tentaram fazer é um
teste experimental: será que estas diferenças linguísticas têm impacto na forma
como as pessoas pensam sobre o tempo em geral, mesmo quando não estão falando?
E há uma boa quantidade de evidências agora de que
isso acontece.
Como no exemplo do futuro estando à sua frente no
passado, atrás de você.
Há uma boa quantidade de evidências experimentais
agora de que, mesmo quando as pessoas nessas línguas estavam, o passado está à
sua frente e o futuro está atrás de você, há uma boa quantidade de evidências
de que as pessoas pensam sobre o tempo de maneira diferente, mesmo quando elas
não estão falando.
Experiências básicas mostraram que quando as
pessoas falam sobre o futuro em algumas destas línguas, elas apontam para trás,
e quando falam sobre o passado, apontam para a frente, enquanto os falantes de
inglês fazem o inverso.
Tendemos a pensar que estamos caminhando em direção
ao futuro, enquanto para muitas dessas culturas é o contrário. E se você pensar
bem, faz sentido. Porque você pode ver o passado. Você vê o que comeu no café
da manhã. Você sabe o que aconteceu ontem. Mas o futuro é meio desconhecido
para nós, então esse tipo de metáfora básica de visão e ver o passado, não ver
o futuro, é a base de como as pessoas pensam sobre o tempo. E algumas dessas
culturas e essa forma de pensar sobre o tempo surge mesmo em contextos não
linguísticos.
BBC: Você teve uma infância muito interessante e
inusitada, tendo passado grande parte do tempo com indígenas no Brasil. Como
foi essa experiência?
Everett: Tenho boas lembranças da minha infância e do Brasil. Passei grande
parte da minha infância na aldeia pirahã com minhas duas irmãs e meus pais.
Mas também passei um tempo em escolas públicas
brasileiras, indo e voltando e ocasionalmente visitando os EUA.
Minha infância foi uma mistura de estar na aldeia
no meio da selva, estar em cidades brasileiras e depois estar ocasionalmente em
cidades americanas.
Em Porto Velho, em Campinas e em São Paulo, porque
meu pai acabou fazendo doutorado na Unicamp.
As memórias de estar na selva são geralmente muito
boas. Eu olho para trás agora e penso que nunca faria isso com meu filho
(risos), quando penso nos riscos que corremos. Todos nós contraímos malária. É
fácil olhar para trás com carinho quando todos sobreviveram.
Mas porque todos nós sobrevivemos e eu tenho boas
lembranças de estar na aldeia nadando no rio com meus amigos indígenas, de
caçar ou pescar com minhas irmãs, mas também alguns dos aspectos negativos,
como a exploração dos indígenas por comerciantes locais.
No geral, foi uma infância muito positiva e tenho
ótimas lembranças de estar na selva.
BBC: Você mencionou a língua pirahã e esse tem sido
um debate bastante famoso no mundo linguístico entre seu pai e o famoso
linguista americano Noam Chomsky. Esse debate intelectual chegou a ser bastante
feroz na troca de palavras. O seu trabalho parece estar muito relacionado a
essa questão que é central no mundo da linguística. Como você vê esse debate
tão polêmico?
Everett: É um debate muito polêmico. Gosto de pensar que, de certa forma, a
ciência superou alguns desses debates e o campo se tornou mais empírico. Meu
pai foi certamente uma das pessoas que contribuiu para isso. Muitos
pesquisadores nas últimas décadas trouxeram dados de diferentes idiomas na
Austrália, na Amazônia e na África, que não parecem estar de acordo com os
modelos que Chomsky e que outros promoveram nas décadas de 60 e 70. E esses
modelos se tornaram muito influentes.
Na defesa desses modelos, eles parecem ter
funcionado muito bem no começo. Mas na medida em que surgem mais e mais
exceções, as coisas simplesmente não parecem se encaixar. E você tem que
perguntar qual é a utilidade desse modelo?
O modelo é baseado, em grande parte, no inglês.
A nova safra de pesquisadores — a minha geração e a
geração seguinte — não está muito satisfeita com os modelos dos anos 60 e 70. E
isso não é um insulto.
Isso acontece em muitos campos. As coisas evoluem.
E agora acho que já ultrapassamos isso de uma forma
que não é mais o debate central da linguística.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese
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