Dar mais
sem ser heróis
Ser santos é
“dar o melhor de si” e, ao mesmo tempo, perceber “que no final é sempre Deus
quem faz tudo”. Texto sobre a santidade que Deus nos pede.
23/01/2019
O episódio da pesca milagrosa narrado
por são Lucas pode nos ajudar a descobrir o que o Senhor pede a cada um de nós.
Uma petição que se resume em uma palavra exigente e muitas vezes
incompreensível: santidade.
Reparemos na vida de Jesus, que, no momento em que esta
passagem do Evangelho é narrada, é considerado um mestre famoso, procurado,
ouvido e seguido por muitas pessoas. Jesus vê dois barcos às margens do lago de
Genesaré. “Ele viu dois barcos à beira do lago; os pescadores tinham descido e
lavavam as redes. Subiu num dos barcos, o de Simão, e pediu que se afastasse um
pouco da terra. Então se sentou e, do barco, ensinava as multidões. Quando
acabou de falar, disse a Simão: ‘Avança mais para o fundo, e ali lançai vossas
redes para a pesca’. Simão respondeu: ‘Mestre, trabalhamos a noite inteira e
não pegamos nada. Mas, pela tua palavra, lançarei as redes’ ” (Lc 5,2-5).
O SENHOR CHAMA OS PESCADORES JUSTAMENTE NO MOMENTO EM
QUE FRACASSARAM.
Como sabemos, a história continua com uma pesca abundante,
mas é importante observar que Jesus sobe no barco dos pescadores e os chama,
pergunta-lhes, encoraja-os a fazer algo maior do que já estavam fazendo. Ao
considerar esta história, poderíamos pensar: “Sim, eu deveria fazer mais, mas
já é suficiente tentar sobreviver...”. Uma reação normal, mas errada. O Senhor
não diz: “Você não fez nem a metade do que tinha que fazer, agora tem que fazer
mais...”. Jesus sobe no barco porque Ele quer saber como estamos dentro do
nosso barco: isso é a vocação. É um chamado para darmos o melhor de nós mesmos.
Curiosamente, nessa cena, a chamada é feita quando os pescadores lavam suas
redes depois de terem trabalhado a noite toda sem sucesso. Isto é, o Senhor
chama os pescadores justamente no momento em que fracassaram.
O Cardeal Ratzinger, em um artigo
publicado no Observatório Romano no dia da canonização de São
Josemaria, em 6 de outubro de 2002, ressaltou que existe uma ideia errada sobre
o que é a santidade: “Conhecendo um pouco da história dos santos, sabendo que
nos processos de canonização se procura a virtude 'heroica', podemos ter, quase
inevitavelmente, um conceito equivocado da santidade porque tendemos a pensar:
‘isto não é para mim’; ‘eu não me sinto capaz de praticar virtudes heroicas’;
‘é um ideal alto demais para mim’. Neste caso, a santidade estaria reservada para
alguns grandes cujas imagens vemos nos altares e que são muito
diferentes de nós, comuns pecadores. Esta seria uma ideia totalmente equivocada
da santidade, uma concepção errônea que foi corrigida – e isto me parece um
ponto central – precisamente por Josemaria Escrivá”.
O esforço atlético pela perfeição
No entanto, sabemos que a santidade normal e cotidiana não é
exclusiva de São Josemaria: há muitos outros testemunhos de santidade
alcançável – “a santidade da porta ao lado”, como o Papa Francisco a chamou
na Gaudete et exsultate. Com efeito, há uma concepção muito
perigosa do que é santidade: a santidade concebida como um esforço atlético
para fazer tudo com a máxima perfeição. Esta não é a experiência dos santos,
nem é a experiência dos apóstolos. A chamada deles não se explica porque eles
eram bons ou porque eles estavam dando o melhor de si. O santo não é aquele que
faz tudo bem, mas aquele que deixa a vontade de Deus agir em sua vida. Por quê?
Porque confia nEle.
O SANTO NÃO É AQUELE QUE FAZ TUDO BEM, MAS AQUELE QUE
DEIXA A VONTADE DE DEUS AGIR EM SUA VIDA
Portanto, o erro deve ser corrigido primeiro no nível
terminológico, porque se fala de santidade na vida cotidiana, de santificação
do trabalho, de uma chamada à santidade dirigida a todos... Mas “as palavras
são importantes”, e se as palavras não são compreendidas, temos um problema.
Nós não podemos presumir que atribuímos o verdadeiro significado a termos como
bem-aventurado, manso, santidade, pecado, reconciliação, eucaristia... Em
concreto, a “santificação” pode ser erroneamente entendida como uma espécie de
perfeição ética ou mesmo estética, característica de uma pessoa infalível
(“porque eu aprendi e não erro mais”).
O Senhor não sobe ao nosso barco por termos passado a noite
triunfando e pescando com sucesso. Na verdade, às vezes ele chega nos momentos
de fracasso: “trabalhamos a noite inteira e não pegamos nada. Mas, pela tua
palavra, lançarei as redes” (Lc 5, 5). E Pedro lança as redes novamente, algo
que vai totalmente contra a sua experiência, porque o pescador sabe que a pesca
deve ser feita de noite. Mas mesmo sabendo isso, confia mais em Deus do que em
sua própria experiência. Este é o grande ato de confiança de Pedro, graças ao
qual “... pegaram tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. Fizeram
sinal aos companheiros do outro barco, para que viessem ajudá-los. Eles vieram
e encheram os dois barcos a ponto de quase afundarem” (Mt 5,6-7).
Se confiarmos em Deus, acontecem coisas inesperadas.
Santificar o trabalho, santificar-se na vida diária, não significa que Deus nos
recompensa porque fazemos tudo certo e nunca cometemos erros. Embora não
pensemos assim, no fundo, quando cometemos um ato mau, por orgulho, inveja ou
ciúmes, muitas vezes vem à nossa cabeça: “Agora Deus vai me castigar porque fiz
algo de errado”.
SE CONFIARMOS EM DEUS, ACONTECEM COISAS INESPERADAS
Esta concepção da santidade não está apoiada no evangelho e
não é cristã. Da mesma forma, a santificação da vida familiar não significa que
a ordem sempre reinará em casa. Uma mãe ou pai com filhos pequenos ou
adolescentes podem ter a tentação de pensar: “Se eu santificasse minha vida
cotidiana, meus filhos sempre estariam bem arrumados, com as mãos limpas,
dentes brancos como nas propagandas de pasta de dentes...”. Não! Santificação
não é uma perfeição externa da vida cotidiana, nem da vida social ou familiar.
Significa, isso sim, tentar receber as dificuldades com bom
humor, mesmo quando a bagunça parece prevalecer. Significa sorrir, mesmo que
tudo no dia corra mal ou o vivamos num ambiente caótico e claramente
imperfeito.
Por: Carlo de Marchi
Tradução: Mônica Diez
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