Dar mais
sem ser heróis
Ser santos é
“dar o melhor de si” e, ao mesmo tempo, perceber “que no final é sempre Deus
quem faz tudo”. Texto sobre a santidade que Deus nos pede.
23/01/2019
Os santos foram como nós
Na exortação Gaudete
et Exsultate, o Papa Francisco recorda que “para ser santo, não é
necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso” (Gaudete et
exsultate, nº 14). A santidade não é para pessoas especiais.
“Muitas vezes somos tentados – diz o Papa – a pensar que a santidade está
reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações
comuns, para dedicar muito tempo à oração”.
É claro que não há santidade sem oração, mas corremos o
risco de pensar (talvez depois de ler a biografia de um santo ou o resumo de
duas linhas de informação sobre ele na Wikipédia) que os santos são pessoas que
tiveram frequentes “arrebatamentos místicos”...
Os santos, pelo contrário, foram como cada um de nós. Não
deixaram de ter ocupações diárias, não conseguiram ser santos fugindo da
pressão das mil e uma preocupações e ocupações que afetam a todos nós. É graças
a elas que eles acudiram à misericórdia do Senhor. Portanto, a santidade é
procurar estar na realidade amando os outros, considerando as pessoas e as
situações como um presente, vendo a presença de Deus na nossa própria
existência diária. A santidade não é alcançada apesar da
realidade em que nos encontramos, mas, precisamente, através da
realidade, que consiste principalmente na família e no trabalho. É claro que
podem ocorrer situações extraordinárias, mas em primeiro lugar, o que importa é
a situação em que nos encontramos.
Cada um lave as próprias redes
A santidade também significa lavar as redes quando parece
que perdemos o tempo, porque a pesca não serviu para nada. As redes são as
ferramentas de trabalho para os apóstolos. Para cada um de nós são as coisas
que usamos habitualmente. Lavá-las significa mantê-las em ordem, ou seja,
tentar fazer as coisas com pontualidade e bom senso, movidos por uma atitude
sorridente enquanto vivemos uma vida normal. E se me parece que tudo deu
errado, tento manter o bom humor. Santidade não significa que tudo correu bem e
que consegui sorrir. Significa que eu tentei e que, depois de uma noite inteira
em que não pesquei nada, no dia seguinte vou tentar de novo, com paciência.
Lutar pela santidade significa também ajudar-nos uns aos
outros, de um barco a outro. Talvez na hora da pescaria tenhamos percebido como
foi importante lavar as redes, para elas não rasgarem: esse detalhe de cuidado
das pequenas coisas fez com que resistissem. E então foi necessário ajudar o
outro barco. Lutar pela santidade é procurar ajudar nas necessidades do outro
sem pensar que “agora ele tem que se virar. Ele tem o barco dele e eu tenho o
meu”.
Lavar as redes e dirigir-se ao outro barco significa
cultivar as virtudes e qualidades relacionais que ajudam a pessoa a dar-se bem
com os outros, porque não há santidade trancada em uma torre de marfim, em um
prédio onde tudo é perfeito e não há contratempos. Na convivência cotidiana,
ajuda muito falar com sentido positivo, ainda mais quando se fala de pessoas,
para reconhecer as coisas boas que fizeram. Em geral, falar bem dos outros
mostra estima, ajuda a criar esse bom ambiente que são Paulo recomenda: “rivalizando-vos
em atenções recíprocas” (Rm 12, 10). Isso significa que as pessoas
devem perceber esse amor. Não podemos amar uma pessoa sem expressar esse
carinho com palavras ou gestos.
É NECESSÁRIO SENTIR-SE ENVIADO, COM A MISSÃO DE LEVAR
LUZ E AFETO ONDE CADA UM VIVE A SUA PRÓPRIA VIDA
Na mensagem que o Senhor confiou a são Josemaria, há também
outro aspecto essencial. Santidade na vida cotidiana não é apenas um chamado de
uma pessoa a uma vida individual: há algo mais. A chamada específica é uma
vocação pessoal, uma espécie de “ignição do batismo”, que nos faz descobrir que
a normalidade da própria vida é uma chamada e, ao mesmo tempo, uma missão. É
necessário sentir-se enviado, com a missão de levar luz e afeto onde cada um
vive a sua própria vida. Não porque eu seja melhor, mas porque fui chamado. Não
é uma escolha feita em virtude de uma suposta superioridade, mas uma missão
para a qual o Senhor, em sua imaginação e bondade surpreendentes, escolhe-nos e
envia-nos por meio do batismo.
Atrever-se a fazer mais sem ser heróis
Quando Simão Pedro percebeu o que aconteceu, isto é, que
Jesus subiu a seu barco depois de um fracasso e que, então, paradoxal e
milagrosamente, a pesca foi um sucesso, ele se jogou aos pés de Jesus dizendo:
“Afasta-te de mim, Senhor, porque sou m pecador!” (Lc 5, 8). Pedro tem medo. É
um sentimento normal ao perceber que Deus chama. Se esse encontro fosse uma
questão acadêmica, histórica, se fosse um objeto de um estudo sobre outra época
ou outras pessoas, ele não teria medo. Pedro, por outro lado, tem medo de como
a sua vida pode se transformar. Tem medo porque ele se sente chamado
pessoalmente a envolver-se, a procurar dar o melhor de si mesmo, aqui e agora.
Lembro-me de que, em uma reunião com jovens, o Papa João
Paulo II ouviu um grupo cantando ‘Si può dare di più’ (Pode-se
dar mais), uma música que ganhou o festival de San Remo. Imediatamente depois,
ele improvisou um comentário sobre a música e disse que havia um verso muito
profundo: “‘Pode-se dar mais sem ser heróis’. Há aqueles que pensam que
para atrever-se a algo você tem que mostrar já uma virtude heroica. Mas nem
tudo é heroico, o que conta é a coragem e sempre podemos atrever-nos a dar mais
sem ser heróis” (São
João Paulo II, Encontro com os jovens do UNIV, 19 de abril de 1987).
Pode-se dar mais sem que isso nos converta em pessoas
diferentes, distintas do que o Senhor quer que sejamos. Poderíamos dizer a Ele:
“Você, Senhor, pede para eu ser o que eu sou, mas sendo a melhor versão de mim
mesmo”. É como quando sorrimos ao tirar uma foto. Não é que o sorriso seja
falso, mas é que ao sorrir damos o melhor que temos dentro. Uma careta é que
não seria autêntica. O sorriso é sempre autêntico, mesmo que envolva um
esforço, e o Senhor nos pede uma santidade sorridente. Se pensarmos bem, todas
as pessoas que nos amam nos imaginam sorrindo, porque esse é o nosso verdadeiro
rosto.
TODAS AS PESSOAS QUE NOS AMAM NOS IMAGINAM SORRINDO,
PORQUE ESSE É O NOSSO VERDADEIRO ROSTO
Semanas antes de se tornar João Paulo I, o Cardeal Luciani,
escreveu que Josemaria Escrivá (que na época nem sequer tinha sido beatificado)
havia ensinado a transformar
o trabalho em um “sorriso diário”. Muitas vezes a santidade consiste em
sorrir para os próprios limites, do cônjuge, do colega, dos amigos... Enfim,
sorrir para a realidade, porque sabemos que Deus, nosso Pai, também nos olha
com carinho. Não temos que ser heróis, mas, ao mesmo tempo – diria são João
Paulo II – podemos fazer mais.
Jesus entende muito bem o nosso medo e o de Simão Pedro e
diz: “Não tenha medo”. Pouco antes, podemos ler um detalhe muito bonito no
Evangelho de Lucas sobre o estado de espírito do apóstolo: “Ele e todos os que
estavam com ele ficaram espantados com a quantidade de peixes que tinham
pescado” (Lc 5, 9). Inclusive Tiago e João, os filhos de Zebedeu e companheiros
de Simão. É consolador saber que os três apóstolos mais próximos de Cristo
sentiram medo quando foram chamados, “ficaram espantados”, talvez pensando:
“Não pode ser, eu não sou um profeta, não sou um santo”. Jesus diz a Simão:
“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador de homens!” (Lc 5, 10).
Isto é, a partir de agora você não terá apenas um emprego, mas ajudará os
outros através da sua vida, do seu trabalho, da sua presença. Mas devemos
entender bem este “de agora em diante”, que não significa “de uma vez por
todas”. Significa que a cada vez que tivermos medo, o Senhor nos dirá: “Não
tenha medo, de agora em diante... comece de novo”.
A festa litúrgica de São Josemaria é no dia 26 de junho. No
final de março de 1975, algumas semanas antes da sua morte ele celebrou o 50º
aniversário de sua ordenação sacerdotal e fez uma reflexão espontânea e
improvisada sobre a sua vida: “Eu quis – dizia – fazer a soma destes cinquenta
anos e saiu-me uma gargalhada. Eu ri de mim mesmo e me enchi de agradecimento a
Nosso Senhor, por que foi Ele quem fez tudo”.
Esta é a santidade a que somos chamados. Não é a daqueles
que dizem “a partir de agora meu trabalho, meus relacionamentos, meus filhos
serão como eu digo”, mas é a santidade daqueles que percebem que no final é
sempre Deus quem faz tudo.
Ao contemplarmos o chamado dos apóstolos no Evangelho, é bom
lembrar que Pedro, Tiago e João mais tarde cometerão muitos erros, mas que
Jesus vai continuar a chamá-los. O chamado à santidade é diário, não é de uma
vez por todas, mas se renova todos os dias.
Com exceção de Nossa Senhora, não há santo que na terra não
tenha experiência do pecado, e o Senhor não se afasta de seus filhos por este
motivo, não se afasta da nossa casa porque estamos errados, mas entra no nosso
barco todos os dias. Cabe a nós acolhê-lo, confiando na promessa de uma vida
cheia de frutos, de uma bela vida. E vale a pena tentar responder todos os
dias, como Maria: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Por: Carlo de Marchi
Tradução: Mônica Diez
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