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terça-feira, 16 de julho de 2024

'Meu pai se matou, e hoje sou padre e especialista em suicídio' (2)

Pe. Lício (VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL)

'Meu pai se matou, e hoje sou padre e especialista em suicídio'

*Esse texto é o primeiro da série "Suicídio & Fé" da BBC News Brasil, que abordará nas próximas semanas o tabu religioso com o suicídio, com foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Acompanhe as publicações no nosso site e redes sociais.

Como a rígida doutrina católica mudou

O que aconteceu com o pai de Licio, de não ter tido as missas funerárias tradicionais, era parte de uma longa tradição doutrinária na Igreja Católica.

Do século 6 ao final do século 20, a orientação formal da Igreja Católica era não fazer os rituais funerários normais para um fiel que morresse por suicídio, segundo a pesquisadora americana Ranana Dine — nem o funeral cristão, nem enterro em espaços sagrados ou missas.

Dine, que é judia e faz doutorado em Ética Religiosa na Universidade de Chicago, estuda desde a faculdade questões religiosas com o olhar da filosofia.

No mestrado na Universidade de Cambridge, ela analisou as doutrinas católica e judaica sobre o suicídio.

Uma das origens da histórica posição católica sobre o suicídio está nos Dez Mandamentos, cuja base está no Antigo Testamento.

Um destes mandamentos afirma: "Não matarás". A interpretação que vingou por muito tempo é que se matar é uma violação desse princípio.

"Grande parte do problema com o suicídio é que ele era visto como alguém querendo agir intencionalmente contra Deus e o domínio de Deus sobre a vida", explica Dine.

Especialistas apontam também que contribui para a aversão ao assunto no cristianismo o relato de que, segundo os evangelhos canônicos (aqueles reconhecidos como autênticos pela Igreja Católica), Judas Iscariotes, traidor de Jesus Cristo, se suicidou.

As primeiras discussões acerca do suicídio surgiram nos sínodos, reuniões convocadas por uma autoridade da Igreja Católica, do século 5.

A formalização de uma postura punitiva quanto ao ato não demorou a aparecer.

No século 6, durante o Conselho de Braga de 563, um grupo de bispos promulgou alguns decretos, entre eles a proibição de que suicidas recebessem grandes cerimônias ou fossem enterrados dentro de igrejas.

Ao longo da Idade Média, outros documentos reafirmaram essa posição.

Na Europa, isso se combinou com costumes da época. No artigo Christianity and Suicide, os pesquisadores Nils Retterstøl e Øivind Ekeberg afirmam que, em muitas partes do continente, "o corpo [de um suicida] era arrastado pelas ruas e enterrado em uma encruzilhada, com uma estaca cravada e uma pedra colocada sobre o rosto".

O artigo aponta que o Iluminismo, movimento marcado pelo valorização da racionalidade, trouxe no século 18 uma visão menos condenatória do suicídio e mais crítica ao catolicismo — que, no entanto, ainda demoraria alguns séculos para mudar sua posição sobre o assunto.

O Código de Direito Canônico de 1917 reforçou mais uma vez o caráter pecaminoso do suicídio.

Uma das normas desse código afirmava que "a menos que tenham dado sinal de arrependimento antes da morte", aqueles que "se mataram de maneira deliberada" estavam entre aqueles "privados de um sepultamento eclesiástico" — assim como excomungados e pecadores manifestos.

Nas décadas recentes, após séculos de postura rígida, Igreja Católica tem apresentado discurso mais empático sobre o suicídio/ VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL

Esse trecho foi retirado na revisão do código em 1983.

"O contexto externo [da mudança] era o desenvolvimento da ideia da depressão e de outras doenças mentais como patologias tais quais a doenças físicas, que não eram culpa do indivíduo", explica a pesquisadora Ranana Dine.

O Código de Direito Canônico, na avaliação de Dine, é o "documento mais importante" de normas da Igreja Católica.

Mas há outros documentos relevantes que também demonstram mudanças na conduta católica sobre o suicídio, como o Catecismo de 1992 — que tem um caráter mais de orientação e educação do que uma função normativa como o código.

Um trecho do Catecismo afirma que o "suicídio contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a sua vida" e é "contrário ao amor do Deus vivo".

"Ofende igualmente o amor do próximo, porque quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana [...]", diz o documento.

Mas um trecho seguinte reconhece que "perturbações psíquicas graves, a angústia ou o temor grave duma provação, dum sofrimento, da tortura, são circunstâncias que podem diminuir a responsabilidade do suicida".

Por isso, o documento conclui: "Não se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se suicidaram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, oferecer-lhes a ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida".

Padre afirma que a consideração do suicídio como um pecado ou não depende da intenção da vítima/ VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL

Em um discurso de outubro de 2021, no Dia Mundial da Saúde Mental, o papa Francisco defendeu o acolhimento a pessoas que se suicidaram e às suas famílias.

"Gostaria de lembrar dos nossos irmãos e irmãs afetados por distúrbios mentais e também as vítimas, frequentemente jovens, do suicídio", disse o papa.

"Vamos rezar por eles e por suas famílias, para que eles não sejam deixados sozinhos ou sejam discriminados, mas sim bem recebidos e apoiados."

Dine avalia que a doutrina sobre o suicídio não é algo que divida diferentes alas da Igreja Católica tal qual outras questões controversas como, por exemplo, o casamento gay e o aborto.

A pesquisadora vê de forma positiva as mudanças recentes na abordagem católica ao assunto, mas diz compreender o posicionamento anterior.

"Fico satisfeita que a Igreja tenha mudado sua posição sobre o enterro de suicidas, mas acho que as normas anteriores vinham de uma abordagem teológica sincera", afirma.

Dine argumenta que, por haver razões teológicas para a Igreja Católica ser contra o suicídio, faz sentido dentro do catolicismo o suicídio ser visto como um pecado.

"Acho que alguém como [Santo] Agostinho e outras pessoas realmente acreditavam que Deus tem o domínio do mundo, dos nossos corpos, e negar isso a Deus realmente vai contra grandes princípios do cristianismo."

Na sua avaliação, a Igreja Católica ainda considera o suicídio um pecado — mas não um "pecado mortal", aquele em que não há qualquer esperança de salvação da alma.

"Ainda há o sentido de pecado, de falha, mas envolto nessa postura de compaixão, com a ideia de que a pessoa não sabia o que estava fazendo. Então, é um pecado de natureza diferente", avalia Dine.

O padre Licio Vale também não firma uma definição.

A gente diz que é um mal moral', diz o padre Licio Vale sobre o suicídio/ VITOR SERRANO/BBC NEWS BRASIL

"O suicídio continua sendo pecado nesse sentido de que ninguém pode matar a si mesmo, ter a intenção de se matar. Porque a vida pertence unicamente a Deus, então, nesse sentido, a gente diz que é um mal moral", afirma o padre.

"Mas o conceito de pecado tem a ver com intenção. A maioria dos estudos diz que a maioria das pessoas que se mata não tem essa intenção. Por isso, a gente evita dizer hoje que é pecado."

Licio reconhece que o tabu com o suicídio de fundo religioso ainda é "muito presente" na cultura popular.

Durante a apuração dessa reportagem, por exemplo, uma fonte deu um relato que não pôde ser confirmado pela BBC News Brasil de que vizinhos faziam o sinal da cruz toda vez que passavam na frente da casa de uma mãe que perdeu a filha para o suicídio.

"Ainda existe essa cultura errônea de que quem se mata vai para o inferno. Por isso, é importante que a gente fale que não é mais assim, que a Igreja não pensa mais assim", diz o padre.

"A doutrina continua a mesma, ninguém pode se matar, mas ela evoluiu no sentido de que o suicida não quer, não tem a intenção, segundo a ciência, de pecar. Ele quer matar a dor emocional."

Por isso, o padre afirma que a decisão pela salvação da alma de um suicida ficaria a cargo de um "Deus misericordioso".

Perguntado se a Igreja Católica tem responsabilidade nesse tabu persistente, o padre consente.

"Claro, uma doutrina que foi ensinada durante mais de 900 anos, quase mil anos, é óbvio que vai levar muito tempo para que essa doutrina possa ser definitivamente esclarecida", avalia Licio.

"Mas a Igreja Católica, institucionalmente, está aprendendo a lidar com o fenômeno."

Apesar de ainda ser o maior, o segmento católico está diminuindo seu percentual na população desde o primeiro Censo, de 1872.

Por outro lado, no período mais recente, de 2000 para 2010, houve aumento do percentual de espíritas, evangélicos e pessoas sem religião.

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*Caso seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, ou caso você tenha perdido uma pessoa querida para o suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:

- O Centro de Valorização da Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos de atendimento ao redor do Brasil;

- Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;

- Em casos de emergência, outra recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);

- Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;

- Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;

- Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.

- Para aqueles que perderam alguém para o suicídio, a Associação Brasileira dos Sobreviventes Enlutados por Suicídio (Abrases) oferece assistência e grupos de apoio.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceq4xl2ppqqo

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF