O VÍCIO DA GULA E CAMINHOS PARA A SUPERAÇÃO
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
A gula é um desejo excessivo e desordenado por comida e
bebida, que vai além da necessidade de nutrição, transformando-se em um anseio
descontrolado por prazer sensorial.
O místico medieval Hugo de São Victor classifica a gula como
o sexto vício entre os sete pecados capitais, que ele compara aos rios da
Babilônia, os quais espalham o mal pela terra. Para superar a gula, ele a
associa ao sexto pedido do Pai Nosso, “não nos deixeis cair em tentação”, e à
sexta bem-aventurança, “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”.
Segundo sua abordagem, a gula seduz o ser humano, afastando-o dos valores
superiores e da busca por Deus. Assim, a gula não apenas gera outros pecados,
mas também desvia o homem da verdadeira felicidade espiritual.
Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, considera que o
ato de comer, embora seja uma necessidade humana, torna-se pecaminoso quando se
desvia da razão e moderação, podendo levar a outros vícios e pecados. Assim, a
gula pode ser um pecado mortal quando o prazer da comida se torna um fim em si
mesmo, levando o indivíduo a desprezar Deus e a agir contra seus preceitos. Se
a gula apenas corrompe os meios, sem levar a uma violação direta da lei divina,
é considerada pecado venial. Ele também classifica a gula como um vício capital
porque seus prazeres são altamente desejáveis, o que leva a outros pecados.
Embora a comida se ordene à nutrição, o prazer desordenado da comida pode se
tornar um fim em si mesmo, promovendo outros pecados.
Santo Tomás considera que a gula se opõe à virtude da
temperança e não se refere apenas ao excesso de comida e bebida, mas também à
forma como se come: se apressadamente, mostrando avidez e desordem no apetite;
com muito requinte, demonstrando apego desordenado à forma de preparar e comer;
buscando apenas alimentos mais saborosos e suculentos, a fim de obter o máximo
de prazer; consumindo mais alimentos do que o necessário com desejo desmedido
pela comida. A virtude da temperança, que modera os desejos e prazeres, é o
remédio contra a gula.
Em sua catequese sobre os vícios e virtudes, o Papa
Francisco destaca que a relação com a comida deve ser equilibrada e serena. Ele
ressalta que o problema não está no alimento em si, mas na relação que se tem
com ele. Uma relação desordenada com a comida pode levar a distúrbios
alimentares como anorexia, bulimia e obesidade. O Papa Francisco também critica
a gula social, que se manifesta na exploração excessiva dos recursos do
planeta, comprometendo o futuro de todos (Audiência Geral, 10/01/2024).
A gula apresenta perigos tanto físicos quanto espirituais. O
consumo excessivo de alimentos pode levar à obesidade, doenças cardíacas,
diabetes e outros problemas de saúde. A busca incessante por satisfação através
da comida pode transformar-se em um hábito destrutivo.
Espiritualmente, a gula desvia o foco do ser humano dos
valores superiores e da busca por Deus. Ao procurar consolo nos prazeres
sensoriais, o indivíduo nega sua transcendência. O vício da gula reduz o ser
humano a um nível inferior ao dos animais, que comem apenas para sobreviver,
enquanto o ser humano transcende o puro dado animal, pela cultura,
racionalidade e espiritualidade e, portanto, deve buscar um equilíbrio maior e
uma relação mais saudável com a alimentação.
Superar a gula exige uma abordagem consciente e deliberada,
que inclui práticas espirituais e disciplina pessoal, como jejum e abstinência,
práticas que ajudam a disciplinar o corpo e a mente, reduzindo o apego aos
prazeres sensoriais e fortalecendo a vontade contra o excesso. A oração antes
das refeições e a compreensão de que “não só de pão vive o homem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4), ajudam a manter o foco nos valores
espirituais. Educação e consciência, buscando informar-se sobre os perigos da
gula e sobre uma alimentação saudável pode ajudar a desenvolver hábitos
alimentares mais salutares. A prática da partilha de alimentos com os
necessitados, bem como a participação em iniciativas de caridade, ajuda a
cultivar um consumo responsável e solidário.
A luta contra a gula deve ser contínua e envolve
autoconhecimento e disciplina. Ao reconhecer a gula como um vício que impede o
crescimento humano e espiritual, podemos buscar forças em Deus e nas práticas
espirituais para superá-la. A verdadeira fome que devemos nutrir é pela justiça
e pela bondade, alinhando nossos desejos com os propósitos divinos e
construindo uma vida de equilíbrio e gratidão.
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