Padre Cícero, admirado por Lampião e banido pela Igreja, agora pode virar santo
- Author,
Edison Veiga
- Role,De
Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
- 19
julho 2024
Graças a uma guinada na alta cúpula do Vaticano, o
religioso brasileiro Cícero Romão Batista (1844-1934), conhecido simplesmente
como Padre Cícero ou Padim Ciço, pode se tornar santo em breve.
Uma santidade, aliás, já reconhecida pelo catolicismo popular,
sobretudo do Nordeste brasileiro. Ali, é comum que o sacerdote, que morreu há
90 anos, seja invocado em rezas e promessas. Não raras vezes com o epíteto de
“santo”. Santo Padre Cícero.
A reviravolta da Santa Sé é curiosa porque Padre Cícero não
só ainda não foi canonizado como, de quebra, em vida foi banido pela própria
Igreja.
Admirado por Virgulino Ferreira
da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, e por outros cangaceiros, o religioso
se tornou político — foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, no Ceará —,
era próximo dos coronéis que ali atuavam e tem uma biografia recheada de
controvérsias.
O que não impediu que a fé popular o venerasse. Em Juazeiro
há uma estátua de 30 metros em sua homenagem, inaugurada em 1969. O local
recebe 2,5 milhões de peregrinos por ano.
“Falar de romarias na Diocese de Crato e em Juazeiro do
Norte é falar do querido padre Cícero Romão Batista. Este sacerdote dinamizou a
espiritualidade católica na região do Cariri, sendo responsável pela
espiritualidade de todo o povo nordestino até os dias de hoje”, afirma o padre
Aureliano Gondim, em nota publicada no site da Diocese de Crato.
Para o pesquisador e hagiólogo José Luís Lira, fundador da
Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do
Acaraú, no Ceará, “há muita incompreensão e distorção sobre a figura do Padre
Cícero”.
“Ele não foi expulso do sacerdócio. Por não aceitar
testemunhar contra os fatos que presenciou em Juazeiro, foi suspenso da ordem”,
diz ele, à BBC News Brasil.
“Padre Cícero foi suspenso das ordens sacerdotais, por causa
do ‘milagre da hóstia’, que teria sangrado na boca de uma beata. Tal fato foi
questionado severamente pela Igreja, que o proibiu de exercer seu ministério
sacerdotal”, afirma à BBC News Brasil o teólogo e escritor J. Alves, autor do
livro ‘Os Santos de Cada Dia’.
Em entrevista à BBC News Brasil, o antropólogo e sociólogo
Joaquim Izidro do Nascimento Junior, especialista em religiosidades populares e
professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atribui à trajetória de
Padre Cícero as controvérsias que recaem sobre ele.
“Um padre do nordeste brasileiro, de uma Igreja católica do
século 19, que acreditou na manifestação de Jesus Cristo na boca de uma mulher
pobre e negra e enfrentou a Igreja”, ressalta ele, lembrando que o religioso
“passou sua vida tentando o apoio e o reconhecimento dessa manifestação, por
parte da Igreja Católica” e “optou por se tornar político para demonstrar
influências e conseguir reverter sua suspensão na própria Igreja”.
“São elementos que reforçam um acontecimento único e
controverso por si só”, analisa o antropólogo. “O crescimento da cidade e,
consequentemente, das peregrinações, abriram um fosso entre uma trajetória de
um padre sertanejo e uma Igreja romana europeia, o que deu contornos
dramáticos.”
O suposto milagre
Em 1º de março de 1889, Padre Cícero era um homem prestes a
completar 45 anos e já gozava de experiência no sacerdócio — havia sido
ordenado em 1870.
Popular pela eficaz e contagiante oratória, ferramenta de
inflamados sermões, e pelo trabalho pastoral então inédito naquele carente
sertão nordestino, ele celebrava missa em Juazeiro.
Na hora da comunhão, a hóstia recebida pela religiosa Maria
de Araújo (1861-1914) alegadamente se transformou em sangue — na boca da
mulher. Na visão dos que acreditam: a prova de que aquele pão é o corpo de
Jesus.
Seria um milagre.
Cabem aqui parênteses para explicar quem era essa mulher.
Nascida do povoado de Tabuleiro Grande, ficou órfã logo cedo e teve uma
adolescência difícil, trabalhando no artesanato e em uma olaria. Aos 22 anos,
decidiu usar hábito como se fosse uma freira — para o povo, ela acabou sendo
reconhecida como uma beata.
Acabou sendo acolhida pelo Padre Cícero, residindo em sua
casa. De acordo com Gondim, o fato milagroso se repetiria “por mais 138 vezes,
num período de quase dois anos”.
O sacerdote enfatiza que aquela missa do dia 1º de março
exigiu preparação especial. Segundo ele, antes “houve horas de oração e jejum
por ocasião da quaresma” e da celebração participavam “moças que viviam da
caridade, auxiliando a catequese daquele povo”.
Estudiosa do fenômeno, a historiadora e escritora Dia Nobre
busca trazer o protagonismo de volta para Maria de Araújo. “Não considero que
ela participa do milagre. A partir dos relatos [da época], ela é o próprio
instrumento divino para a realização desses fenômenos extraordinários na cidade
de Juazeiro”, diz ela à BBC News Brasil.
No fim do mês, Nobre lança o livro Incêndios da Alma,
que traz a história dessa mulher e a contextualiza dentro desse ambiente
nordestino de catolicismo popular do fim do século 19.
“Não eram somente a transubstanciação das hóstias [a
transformação delas em sangue], outros fenômenos também aconteciam, como
viagens espirituais, viagens ao purgatório, profecias… Ela recebia estigmas da
crucificação”, elenca a pesquisadora. “Ela e outras mulheres se colocavam como
protagonistas desses fenômenos, como representantes do próprio Jesus na Terra,
dispensando a mediação da Igreja, dos padres. Isso foi uma afronta muito grande
à hierarquia do próprio catolicismo.”
“As mulheres foram protagonistas da transformação de
Juazeiro em espaço sagrado”, ressalta ela.
Para Nascimento Junior, “no século 19 não havia [na Igreja]
nenhum espaço para o reconhecimento de uma manifestação envolvendo a ‘presença’
do próprio Jesus Cristo na boca de uma mulher pobre e negra”.
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