Padre Cícero, admirado por Lampião e banido pela Igreja, agora pode virar santo
- Author,
Edison Veiga
- Role,De
Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
19 julho 2024
Encrencas com a cúpula da Igreja
A repercussão do suposto milagre, contudo, não caiu bem para
o sacerdote responsável pela missa. Quando a notícia se espalhou, formou-se uma
comissão na diocese para investigar o ocorrido — com a participação de dois
médicos e um farmacêutico.
Em outubro de 1891, o grupo apresentou um relatório alegando
que não havia explicação natural para o fenômeno.
Não satisfeito, o então bispo do Ceará Joaquim José Vieira
(1836-1917) nomeou outra comissão — para alguns biógrafos, com integrantes “de
cartas marcadas”. O novo relatório concluiu que tudo não havia passado de
embuste.
Padre Cícero foi suspenso do sacerdócio, impedido de
celebrar missas e de ministrar sacramentos. A pena imputada a Maria de Araújo
foi viver em clausura até o fim da vida.
O sacerdote chegou a ir até o Vaticano para buscar uma
absolvição diretamente com o papa Leão 13 (1810-1903). De acordo com Lira, seu
banimento era restrito à diocese do Ceará e, em qualquer outro local, “com a
permissão do bispo, ele poderia exercer o sacerdócio”.
O pesquisador reconhece que “boa parte das controvérsias” em
torno de Padre Cícero têm origem nesse episódio do suposto milagre. Ele
argumenta que a primeira comissão, que atestou o fato como fora das explicações
naturais, contava com dois médicos e um farmacêutico, além de dois religiosos.
Já a segunda, constituída por insatisfação do bispo, tinha apenas dois padres.
“Como essa era a pretensão do bispo, ele aceitou o segundo e
menos técnico parecer e decretou que se Padre Cícero não negasse aqueles fatos
ele estaria suspenso”, explica Lira. “Foi o que ocorreu.”
“Padre Cícero ainda tentou se explicar com o bispo. Não
adiantou e ele foi a Roma e foi reabilitado, mas a Igreja local, nos moldes do
Direito Canônico da época, não aceitou a reabilitação e Padre Cícero permaneceu
suspenso.”
Lira ressalta que ele esteve “suspenso, mas obediente”.
“Aceitou a punição, embora injusta, e ficou até o fim da vida usando sua batina
sacerdotal e assistindo a missas como leigo. É um grande exemplo”, afirma.
O pesquisador argumenta que Cícero “teria prestígio para
fundar um movimento religioso, mas preferia orientar seus amigos — ele chamava
a todos de ‘amiguinhos’ — a seguirem as orientações do papa e da Igreja.”
“Apesar dessas imposições da Santa Sé, ele continuou dando o
seu testemunho de fé e de pregação, colocando-se a serviço da comunidade e
zelando de seus fiéis. Com o passar do tempo, tornou-se respeitado e venerado
ainda em vida por todos, sendo aclamado, pelo povo, um santo vivo. São milhares
de fiéis que a ele acorrem, pedindo a sua intercessão e agradecendo pelas
graças recebidas”, diz Alves.
Para o teólogo, Padre Cícero representa “uma figura
emblemática dessas idiossincrasias entre uma postura dogmática da Igreja e a
devoção popular”.
“Tudo isso cria uma atmosfera fértil para polêmicas e
controvérsias”, afirma.
“Além disso, o fato de se envolver em questões de política
local e sua relação com figuras como cangaceiros e coronéis polariza a
discussão tanto no campo dogmático quanto sociopolítico e cultural.”
Filiado ao extinto Partido Republicano Conservador (PRC),
Padre Cícero foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, quando o
povoado se tornou município independente.
Em 1926, ainda seria eleito deputado federal — mas acabou
não assumindo o cargo. Ele também chegou a ser nomeado vice-presidente do
Ceará, equivalente atual a vice-governador, mas não exerceu a função.
Na década de 1910, acabou sendo o artífice do acordo que
ficou conhecido como “pacto dos coronéis”, em que a elite da região se
comprometeu a apoiar o governo estadual cearense.
Conservador, ele chegou a dar uma entrevista em 1931 em que
afirmou que “o comunismo foi fundado pelo demônio, Lúcifer é o seu nome e a
disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus”.
Em 1926, quando a Coluna Prestes estava na região de
Juazeiro e havia um esforço do governo federal de combatê-la, muitas vezes
arregimentando mercenários e cangaceiros, Padre Cícero se encontrou com Lampião
e outros 49 integrantes do seu bando. Eram todos seus admiradores e devotos.
Conforme o jornalista e escritor Lira Neto conta no
livro Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão, Padre Cícero
carrega sobre suas costas o fato de que seus “detratores jogam [sobre ele] a
responsabilidade pela concessão da patente de capitão ao mais feroz de todos os
bandoleiros nordestinos”, Lampião, “em troca do compromisso para que o ‘Rei dos
Cangaceiros’ enfrentasse, em 1926, a célebre Coluna Prestes em sua passagem
pelo sertão”.
“Como indultar um clérigo que, mesmo antes disso, em 1914,
teria benzido rifles, punhais e bacamartes, aparato bélico entregue à jagunçada
para promover uma revolução armada, uma sedição que envolveu saques violentos a
várias cidades interioranas, provocou a morte de centenas de inocentes e
resultou na derrubada de um governo legal?”, questiona Lira Neto. “Como redimir
a penalidade de um sacerdote que se transformou em líder político […] e
arquitetou um pacto histórico entre os poderosos coronéis do sertão?”
“O fato de ele ter mantido relações com os cangaceiros é um
ponto sensível, pois pode ser visto tanto como uma tentativa de mediação e
pacificação, quanto como um envolvimento problemático”, comenta Alves. “É
preciso avaliar esses aspectos de sua vida à luz de seu impacto positivo na fé,
na espiritualidade e na comunidade, sem ignorar as complexidades históricas e
sociais, devidamente situadas em seu contexto vital.”
O pesquisador e professor Lira tem uma opinião um pouco
diferente. “Ele não foi político nem amigo de cangaceiros. Mas recebia a
políticos e autoridades que o buscavam, do mesmo modo que recebia o sofrido
homem do campo, a ele dando conforto espiritual e até ajuda financeira, na
medida de suas posses”, afirma.
O teólogo e escritor Alves lembra que é preciso entender,
“por exemplo, que o cangaço e o coronelismo foram fenômenos históricos no
Nordeste do Brasil”.
“O primeiro desafiava a ordem estabelecida e o segundo
detinha o poder econômico e político”, pontua. “Há que considerar, também, que
Padre Cícero viveu em uma região assolada por secas severas, migração em massa,
fome e miséria, falta de políticas públicas.”
“Foi nesse contexto complexo, conflituoso e sofrido que
viveu e exerceu a sua ação social e pastoral, sua liderança religiosa e
política, que consistia em mediar conflitos e prover as necessidades de sua
comunidade. Os sertanejos encontravam nele esperança e apoio para a sua luta em
busca de melhores condições de vida e trabalho.”
Assim, Alves conclui que se houve conivência ou manipulação,
estes são pontos que permanecem “sensíveis e controversos” na biografia de
Padre Cícero.
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