Padre Cícero, admirado por Lampião e banido pela Igreja, agora pode virar santo
- Author,
Edison Veiga
- Role,De
Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
19 julho 2024
Devoção
Os destinos da beata Maria de Araújo e de Padre Cícero
seguiram rumos bem diferentes no decorrer do século 20.
Personagem principal dos milagres que acabaram sendo
testemunhados e defendidos pelo sacerdote, ela sofreu um processo de
apagamento.
“Houve um deslocamento da crença da beata para o padre”,
explica Nobre. “É sabido que as primeiras romarias, feitas a partir de 1889,
tinham como destino a casa de Maria de Araújo.”
Entretanto, com a repressão do bispo frente a essa devoção
popular e a condenação da beata ao isolamento, Padre Cícero acabou herdando os
holofotes.
“Minha hipótese é que, para não sufocar o movimento das
romarias, ele as transferiu para a Igreja de Nossa Senhora das Dores, padroeira
do povoado. E, a partir do envolvimento dele na política, ele vai ganhando mais
fama e se consolidando”, diz a historiadora.
“As romarias acabam completamente deslocadas para a figura
do Padre Cícero, provocando o esquecimento total da beata Maria de Araújo”,
afirma.
Quando Maria de Araújo morreu, em 1914, um movimento de
devotos começou a visitar seu túmulo. “Mas até isso acabou sendo destruído pelo
cônego, consolidando o apagamento social e memorialístico da beata”, afirma
Nobre.
A fama de Padre Cícero, por outro lado, só aumentou. Após
sua morte, em 1934, ele acabou sendo praticamente canonizado pela fé popular.
Se o movimento em si nunca teve a chancela oficial da
Igreja, é verdade que ela acabou o abraçando pastoralmente.
Padre Gondim escreve que esses acontecimentos “serviram para
fomentar as peregrinações à Juazeiro do Norte”, permitindo “alavancar a vida do
pequeno povoado, pois muitos vinham mesmo para residir e estar perto do
padrinho querido”.
Nas altas esferas do Vaticano, a reabilitação de fato do
outrora banido sacerdote só ocorreria de fato no século 21. Em seu livro, o
jornalista e escritor Lira Neto detalha esses bastidores da fé.
Conforme apurou o jornalista, em 2001 o então cardeal Joseph
Ratzinger (1927-2022), que mais tarde seria o papa Bento 16, redigiu uma carta
“enviada em caráter reservado à Nunciatura Apostólica do Brasil”.
Na época, Ratzinger comandava a Congregação para a Doutrina
da Fé, organização herdeira do Tribunal da Inquisição. Tinha, portanto, o papel
de ser o guardião da ortodoxia da Igreja. Além disso, era visto como homem de
confiança do então papa João Paulo 2º (1920-2005).
Nunciatura Apostólica é uma espécie de embaixada do
Vaticano, instalada nos países com os quais a Igreja mantém relações. A missiva
do alto prelado tinha como assunto o espinhoso caso de Padre Cícero — nas
palavras de Lira Neto, “um delicado tema”.
Mais especificamente, Ratzinger tratava da “pertinência de
uma possível reabilitação canônica” do sacerdote brasileiro.
“Alguém que levou para o túmulo o estigma de ter sido um
proscrito da Igreja. Um clérigo julgado e condenado como insubmisso, contra o
qual os inquisidores da época decretaram a pena de excomunhão. Um reverendo
maldito, que a despeito disso continua a arrebanhar milhões de peregrinos e
devotos, incansáveis perpetuadores de sua memória”, define o escritor.
Lira Neto comenta que, certamente, o que mais motivava
Ratzinger em seu empenho era o conhecimento de que o santo popular brasileiro
atraía uma multidão anual de cerca de 2,5 milhões de pessoas — nada desprezível
em tempos de perda constante de fiéis pelo mundo.
Em sua análise, negar a devoção ao religioso nordestino
significaria “negar o acolhimento pastoral a toda uma preciosa legião de
devotos”.
“Em Juazeiro, a multidão compacta paga promessas, acende
velas, renova a fé, faz novos pedidos e invoca a proteção de seu guia
espiritual”, diz ele, acrescentando que é “difícil encontrar uma casa no sertão
nordestino na qual não exista uma imagem de padre Cícero”.
“Retratado sempre com o cajado, o chapéu e a batina, ele
parece onipresente entre os sertanejos”, afirma o escritor.
O próprio Lira Neto enfatiza que é certo que Ratzinger e a
sua congregação tinham conhecimento das “graves acusações históricas que recaem
sobre o homem Cícero Romão Batista”. “Elas não são poucas. Quando reunidas,
constituem notórios obstáculos à ideia de anistiar, post mortem, as
penas que foram impostas ao padre, em vida, pelo Tribunal do Santo Ofício”,
ressalta.
“A primeira incriminação que incide sobre Cícero é a de ter
sido ele um mistificador, um aproveitador das crenças do povo mais simples, um
semeador de fanatismos. Homem de ideias religiosas pouco ortodoxas, leitor de
autores místicos, dado a ver almas do outro mundo e defensor de milagres não
endossados pelo Vaticano, Cícero estaria mais próximo da superstição do que da
fé, disseram dele os muitos adversários que colecionou no meio do próprio
clero”, detalha Lira Neto, em seu livro.
“Decorre daí outra incriminação, ainda mais incisiva: a de
que nas vezes em que fora repreendido por seus superiores eclesiásticos agira
como um rebelde e caíra em desobediência”, afirma ainda. Para o biógrafo, outro
entrave seria suam “discutida relação” com “jagunços e cangaceiros”.
Lira Neto comenta, entretanto, que “não são poucos os que
definem a eterna tempestade de acusações” contra o padre “como frutos de
inverdades históricas, interpretações distorcidas e preconceitos elitistas”.
Alguns meses depois da carta de Ratzinger chegar ao Brasil,
um novo bispo assumiu a diocese de Crato, o italiano Fernando Panico. Não foi
coincidência. Panico se tornou um grande defensor da causa do Padre Cícero. E,
já em sua primeira missa como bispo daquela diocese enfatizou que iria
encorajar novos estudos sobre a trajetória do controverso sacerdote.
Um discurso completamente diferente daquele do seu
antecessor, Newton Holanda Gurgel (1923-2017), que costumava dizer que “Padre
Cícero chegou a Juazeiro missionário, tornou-se visionário e acabou
milionário”.
Naquele mesmo ano de 2001, o bispo Panico foi até Roma e
teve uma audiência privada com o então cardeal Ratzinger. Conforme apurou Lira
Neto, escutou do futuro papa “as palavras que provavelmente já esperava ouvir”.
“O cardeal não só o estimula a levar adiante os novos
estudos sobre a polêmica trajetória de Cícero, como também dá instruções
detalhadas a respeito da forma de conduzir o processo, de acordo com os rituais
e procedimentos da Congregação”, escreve.
Ratzinger também sugeriu uma nova postura da diocese
cearense: a partir de então, era importante incentivar a acolher as romarias a
Juazeiro.
Em carta aos seus diocesanos, no retorno ao Brasil, Panico
declarou que “mais do que nunca é necessário reconhecer as romarias de Juazeiro
do Norte como uma profunda experiência de Deus e legítima experiência de fé”.
Uma nova comissão de estudos foi formada, reunindo
especialistas em antropologia, história, filosofia, teologia, psicologia e
sociologia. Foram cinco anos de pesquisa para um novo julgamento acerca da
idoneidade do religioso.
O catatau produzido por esse time foi entregue ao Vaticano
em 30 de maio de 2006. Ratzinger já era o papa Bento 16. No total, segundo Lira
Neto, foram 11 “grossos volumes encadernados em capa vermelha e identificados
com letras gravadas em dourado”, com “cópias de documentos religiosos e
seculares, incluindo a vasta correspondência trocada entre os protagonistas da
história tumultuosa” do padre brasileiro.
Além disso, a Santa Sé recebeu 150 mil assinaturas de
populares pedindo a reabilitação de Padre Cícero e um abaixo-assinado de 253
bispos favoráveis à causa.
Na carta que acompanhou esse material, o bispo Fernando
Panico afirmou que estava suplicando ao papa pela reabilitação canônica do
personagem, “libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele
sofridas”.
De lá para cá, o processo avançou — foi adiante pelas mãos
do sucessor de Bento 16, papa Francisco, um notório defensor do acolhimento a
manifestações populares de fé.
“Sua reconciliação com a Igreja foi tardia”, diz Alves. “Foi
somente em 2015 que a Igreja reconheceu a importância pastoral de Padre Cícero
e retirou a suspensão que pesava sobre ele, possibilitando, desse modo, a
abertura de seu processo de beatificação.”
O hagiólogo Lira explica que, para abrir uma causa de
beatificação e de canonização, é preciso antes de um atestado de “nihil obstat”
— ou seja, “nada obsta” — da Santa Sé.
A partir dessa reabilitação de 2015, esse passo pode ser
tomado. Em 2022, o atual bispo de Crato, Magnus Henrique Lopes, apresentou ao
papa Francisco um pedido de abertura do processo de beatificação. “A resposta
foi tornada pública em 20 de agosto de 2022, por meio do anúncio do ‘nihil
obstat’ datado de 24 de junho, para dar início à causa”, afirma Lira.
“Como estudioso, posso afirmar que a Igreja sinaliza para um
estudo aprofundado da vida e das virtudes que teria o Padre Cícero”, comenta
ele. “Não vejo como uma revisão de posicionamento, mas como uma abertura para a
continuidade de um estudo sério sobre aquele cristão que testemunhou Jesus em
sua vida.”
Alves ressalta que as perspectivas de que Padre Cícero se
torne um santo oficialmente pela Igreja “vão depender de vários fatores,
incluindo a condução e conclusão bem-sucedida do processo de beatificação e a
confirmação de milagres atribuídos à sua intercessão”.
“A reabilitação de sua imagem pela Igreja e a abertura do
processo de beatificação são passos importantes, mas o caminho para a
canonização pode ser longo e complexo”, avalia. “A devoção popular e a pressão
da comunidade de fiéis certamente desempenham um papel, mas a decisão final
cabe ao Vaticano, que deve avaliar todos os aspectos de sua vida e os milagres
atribuídos a ele com rigor e cautela.”
O antropólogo Nascimento Junior acredita que as chances
dessa santificação são “enormes”. “Penso que será uma questão de tempo. Os
novos homens da Igreja Católica parecem estar muito interessados”, diz.
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