Translate

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Padre Cícero, admirado por Lampião e banido pela Igreja, agora pode virar santo (3)

Padre Cícero, em foto do início do século 20, de autoria desconhecida | CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO/ WIKICOMMONS

Padre Cícero, admirado por Lampião e banido pela Igreja, agora pode virar santo

  • Author, Edison Veiga
  • Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

19 julho 2024

Devoção

Os destinos da beata Maria de Araújo e de Padre Cícero seguiram rumos bem diferentes no decorrer do século 20.

Personagem principal dos milagres que acabaram sendo testemunhados e defendidos pelo sacerdote, ela sofreu um processo de apagamento.

“Houve um deslocamento da crença da beata para o padre”, explica Nobre. “É sabido que as primeiras romarias, feitas a partir de 1889, tinham como destino a casa de Maria de Araújo.”

Entretanto, com a repressão do bispo frente a essa devoção popular e a condenação da beata ao isolamento, Padre Cícero acabou herdando os holofotes.

“Minha hipótese é que, para não sufocar o movimento das romarias, ele as transferiu para a Igreja de Nossa Senhora das Dores, padroeira do povoado. E, a partir do envolvimento dele na política, ele vai ganhando mais fama e se consolidando”, diz a historiadora.

“As romarias acabam completamente deslocadas para a figura do Padre Cícero, provocando o esquecimento total da beata Maria de Araújo”, afirma.

Quando Maria de Araújo morreu, em 1914, um movimento de devotos começou a visitar seu túmulo. “Mas até isso acabou sendo destruído pelo cônego, consolidando o apagamento social e memorialístico da beata”, afirma Nobre.

A fama de Padre Cícero, por outro lado, só aumentou. Após sua morte, em 1934, ele acabou sendo praticamente canonizado pela fé popular.

Se o movimento em si nunca teve a chancela oficial da Igreja, é verdade que ela acabou o abraçando pastoralmente.

Padre Gondim escreve que esses acontecimentos “serviram para fomentar as peregrinações à Juazeiro do Norte”, permitindo “alavancar a vida do pequeno povoado, pois muitos vinham mesmo para residir e estar perto do padrinho querido”.

Nas altas esferas do Vaticano, a reabilitação de fato do outrora banido sacerdote só ocorreria de fato no século 21. Em seu livro, o jornalista e escritor Lira Neto detalha esses bastidores da fé.

Conforme apurou o jornalista, em 2001 o então cardeal Joseph Ratzinger (1927-2022), que mais tarde seria o papa Bento 16, redigiu uma carta “enviada em caráter reservado à Nunciatura Apostólica do Brasil”.

Na época, Ratzinger comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, organização herdeira do Tribunal da Inquisição. Tinha, portanto, o papel de ser o guardião da ortodoxia da Igreja. Além disso, era visto como homem de confiança do então papa João Paulo 2º (1920-2005).

Nunciatura Apostólica é uma espécie de embaixada do Vaticano, instalada nos países com os quais a Igreja mantém relações. A missiva do alto prelado tinha como assunto o espinhoso caso de Padre Cícero — nas palavras de Lira Neto, “um delicado tema”.

Mais especificamente, Ratzinger tratava da “pertinência de uma possível reabilitação canônica” do sacerdote brasileiro.

“Alguém que levou para o túmulo o estigma de ter sido um proscrito da Igreja. Um clérigo julgado e condenado como insubmisso, contra o qual os inquisidores da época decretaram a pena de excomunhão. Um reverendo maldito, que a despeito disso continua a arrebanhar milhões de peregrinos e devotos, incansáveis perpetuadores de sua memória”, define o escritor.

Lira Neto comenta que, certamente, o que mais motivava Ratzinger em seu empenho era o conhecimento de que o santo popular brasileiro atraía uma multidão anual de cerca de 2,5 milhões de pessoas — nada desprezível em tempos de perda constante de fiéis pelo mundo.

Em sua análise, negar a devoção ao religioso nordestino significaria “negar o acolhimento pastoral a toda uma preciosa legião de devotos”.

“Em Juazeiro, a multidão compacta paga promessas, acende velas, renova a fé, faz novos pedidos e invoca a proteção de seu guia espiritual”, diz ele, acrescentando que é “difícil encontrar uma casa no sertão nordestino na qual não exista uma imagem de padre Cícero”.

“Retratado sempre com o cajado, o chapéu e a batina, ele parece onipresente entre os sertanejos”, afirma o escritor.

O próprio Lira Neto enfatiza que é certo que Ratzinger e a sua congregação tinham conhecimento das “graves acusações históricas que recaem sobre o homem Cícero Romão Batista”. “Elas não são poucas. Quando reunidas, constituem notórios obstáculos à ideia de anistiar, post mortem, as penas que foram impostas ao padre, em vida, pelo Tribunal do Santo Ofício”, ressalta.

“A primeira incriminação que incide sobre Cícero é a de ter sido ele um mistificador, um aproveitador das crenças do povo mais simples, um semeador de fanatismos. Homem de ideias religiosas pouco ortodoxas, leitor de autores místicos, dado a ver almas do outro mundo e defensor de milagres não endossados pelo Vaticano, Cícero estaria mais próximo da superstição do que da fé, disseram dele os muitos adversários que colecionou no meio do próprio clero”, detalha Lira Neto, em seu livro.

“Decorre daí outra incriminação, ainda mais incisiva: a de que nas vezes em que fora repreendido por seus superiores eclesiásticos agira como um rebelde e caíra em desobediência”, afirma ainda. Para o biógrafo, outro entrave seria suam “discutida relação” com “jagunços e cangaceiros”.

Lira Neto comenta, entretanto, que “não são poucos os que definem a eterna tempestade de acusações” contra o padre “como frutos de inverdades históricas, interpretações distorcidas e preconceitos elitistas”.

Alguns meses depois da carta de Ratzinger chegar ao Brasil, um novo bispo assumiu a diocese de Crato, o italiano Fernando Panico. Não foi coincidência. Panico se tornou um grande defensor da causa do Padre Cícero. E, já em sua primeira missa como bispo daquela diocese enfatizou que iria encorajar novos estudos sobre a trajetória do controverso sacerdote.

Um discurso completamente diferente daquele do seu antecessor, Newton Holanda Gurgel (1923-2017), que costumava dizer que “Padre Cícero chegou a Juazeiro missionário, tornou-se visionário e acabou milionário”.

Naquele mesmo ano de 2001, o bispo Panico foi até Roma e teve uma audiência privada com o então cardeal Ratzinger. Conforme apurou Lira Neto, escutou do futuro papa “as palavras que provavelmente já esperava ouvir”.

“O cardeal não só o estimula a levar adiante os novos estudos sobre a polêmica trajetória de Cícero, como também dá instruções detalhadas a respeito da forma de conduzir o processo, de acordo com os rituais e procedimentos da Congregação”, escreve.

Ratzinger também sugeriu uma nova postura da diocese cearense: a partir de então, era importante incentivar a acolher as romarias a Juazeiro.

Em carta aos seus diocesanos, no retorno ao Brasil, Panico declarou que “mais do que nunca é necessário reconhecer as romarias de Juazeiro do Norte como uma profunda experiência de Deus e legítima experiência de fé”.

Uma nova comissão de estudos foi formada, reunindo especialistas em antropologia, história, filosofia, teologia, psicologia e sociologia. Foram cinco anos de pesquisa para um novo julgamento acerca da idoneidade do religioso.

O catatau produzido por esse time foi entregue ao Vaticano em 30 de maio de 2006. Ratzinger já era o papa Bento 16. No total, segundo Lira Neto, foram 11 “grossos volumes encadernados em capa vermelha e identificados com letras gravadas em dourado”, com “cópias de documentos religiosos e seculares, incluindo a vasta correspondência trocada entre os protagonistas da história tumultuosa” do padre brasileiro.

Além disso, a Santa Sé recebeu 150 mil assinaturas de populares pedindo a reabilitação de Padre Cícero e um abaixo-assinado de 253 bispos favoráveis à causa.

Na carta que acompanhou esse material, o bispo Fernando Panico afirmou que estava suplicando ao papa pela reabilitação canônica do personagem, “libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas”.

De lá para cá, o processo avançou — foi adiante pelas mãos do sucessor de Bento 16, papa Francisco, um notório defensor do acolhimento a manifestações populares de fé.

“Sua reconciliação com a Igreja foi tardia”, diz Alves. “Foi somente em 2015 que a Igreja reconheceu a importância pastoral de Padre Cícero e retirou a suspensão que pesava sobre ele, possibilitando, desse modo, a abertura de seu processo de beatificação.”

O hagiólogo Lira explica que, para abrir uma causa de beatificação e de canonização, é preciso antes de um atestado de “nihil obstat” — ou seja, “nada obsta” — da Santa Sé.

A partir dessa reabilitação de 2015, esse passo pode ser tomado. Em 2022, o atual bispo de Crato, Magnus Henrique Lopes, apresentou ao papa Francisco um pedido de abertura do processo de beatificação. “A resposta foi tornada pública em 20 de agosto de 2022, por meio do anúncio do ‘nihil obstat’ datado de 24 de junho, para dar início à causa”, afirma Lira.

“Como estudioso, posso afirmar que a Igreja sinaliza para um estudo aprofundado da vida e das virtudes que teria o Padre Cícero”, comenta ele. “Não vejo como uma revisão de posicionamento, mas como uma abertura para a continuidade de um estudo sério sobre aquele cristão que testemunhou Jesus em sua vida.”

Alves ressalta que as perspectivas de que Padre Cícero se torne um santo oficialmente pela Igreja “vão depender de vários fatores, incluindo a condução e conclusão bem-sucedida do processo de beatificação e a confirmação de milagres atribuídos à sua intercessão”.

“A reabilitação de sua imagem pela Igreja e a abertura do processo de beatificação são passos importantes, mas o caminho para a canonização pode ser longo e complexo”, avalia. “A devoção popular e a pressão da comunidade de fiéis certamente desempenham um papel, mas a decisão final cabe ao Vaticano, que deve avaliar todos os aspectos de sua vida e os milagres atribuídos a ele com rigor e cautela.”

O antropólogo Nascimento Junior acredita que as chances dessa santificação são “enormes”. “Penso que será uma questão de tempo. Os novos homens da Igreja Católica parecem estar muito interessados”, diz.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25lvk9rz1lo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF