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sábado, 6 de julho de 2024

Sobre a ira e autocontrole

Autocontrole (Crédito: Vida Simples)

SOBRE A IRA E AUTOCONTROLE

Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)

Segundo a doutrina cristã, a ira é um dos sete pecados capitais. Ela é pecaminosa quando, sob seu efeito, não controlamos as emoções irracionais e agimos de forma desordenada perante situações que poderíamos administrá-las com equilíbrio e moderação. Quem age possuído pela ira perde sua condição de sujeito, sofre uma espécie de transtorno de personalidade e, em estado de surto, comete absurdos e causa danos irreversíveis ao outro.  

Diante de situações extremamente desagradáveis, a espiritualidade cristã nos convoca a imitar Deus, que “é misericordioso e clemente, lento para a ira, paciente e generoso em seu amor” (Sl 102, 8). Quem age movido pela ira, excede-se, comete violência e, geralmente, agride e fere as pessoas mais próximas de sua convivência humana.  

Aristóteles, na “Ética a Nicômaco”, nos ensina que “é fácil irar-se. Todos são capazes disso, mas não é absolutamente fácil, e, sobretudo, nem todos são capazes de irar-se com a pessoa certa, na medida certa, no modo certo, no momento certo e por uma causa justa.” 

De acordo com o Papa Francisco, a ira é um vício destrutivo que afeta profundamente as relações humanas. Ele afirma que a ira é facilmente identificável através das mudanças físicas e comportamentais, como agressividade, respiração ofegante e um olhar sombrio. A ira muitas vezes nasce de uma injustiça percebida e pode ser descarregada de forma desproporcional contra aqueles que não são os culpados reais. O Papa também enfatiza que a ira destrói a capacidade de aceitar o outro em sua singularidade, levando ao ressentimento e à perda de lucidez (PP. FRANCISCO. “Audiência Geral”, 31/01/2024). 

As causas da ira podem variar, incluindo frustrações, injustiças e situações que desafiam o ego. A ira pode levar a consequências devastadoras, como perda de controle, violência e até homicídio. Na perspectiva cristã, a ira é vista como um sentimento que contamina o coração e deve ser controlada para evitar que leve a ações irracionais e destrutivas. 

Santo Tomás de Aquino, na “Suma Teológica” (Secunda Secundae. Tratado sobre a Temperança. Questão 158: Da Iracúndia), explora a natureza da ira e discute se ela é sempre pecaminosa. Ele conclui que a ira pode ser justificada em certas circunstâncias, por exemplo, quando dirigida contra uma verdadeira injustiça. A ira justa é proporcional e dirigida de maneira apropriada. No entanto, ela se torna pecaminosa quando é direcionada incorretamente, quando excede os limites da razão e da justiça, levando a comportamentos descontrolados e violentos.  

A ira pode ser lícita quando é motivada por uma justa indignação contra o mal. Por isso, Santo Tomás considera que nem toda ira é considerada pecado mortal. A gravidade do pecado da ira depende da intensidade e das consequências das ações que ela provoca. Uma ira moderada e justificada pode não ser mortal, enquanto uma ira descontrolada que leva à violência extrema pode ser. Santo Tomás argumenta que, embora a ira seja um pecado sério, não é necessariamente o mais grave. A gravidade do pecado é avaliada com base nas suas consequências e na intenção por trás dele. 

Tomás de Aquino concorda com Aristóteles em grande parte, afirmando que a ira pode ser classificada de acordo com a sua origem e a sua manifestação. Ele reconhece a complexidade da ira e a necessidade de uma análise detalhada para entender suas diferentes formas. A ira é definitivamente contada entre os vícios capitais, pois é uma das paixões que mais facilmente leva a outros pecados, como a violência e o ódio.  

Santo Tomás identifica seis filhas da ira: rixa, entumescência de coração, contumélia, vociferação, indignação e blasfêmia. Estas são manifestações específicas da ira que levam a outros comportamentos pecaminosos. A ausência completa de ira, em situações em que ela seria justa, pode também ser um vício, indicando uma falta de zelo pela justiça, por isso o equilíbrio é fundamental. 

A ira é uma emoção complexa que pode ser justificada em certas circunstâncias, mas frequentemente leva a comportamentos pecaminosos e destrutivos. Tanto a doutrina cristã quanto as filosofias antigas enfatizam a importância do autocontrole e da paciência para lidar com a ira de maneira adequada. Controlar a ira é essencial para manter a paz interior e evitar ações que possam causar danos irreparáveis a si mesmo e aos outros. 

Em determinados contextos, é preciso agir com vigor e não com ira. Agir com vigor é um modo de restabelecer o equilíbrio da justiça, impedindo que o mal prevaleça. É necessário controlar a ira para agir com racionalidade e firmeza onde for necessário, mas jamais com ódio, rancor ou vingança. Quando alguém está prestes a agir movido pela vingança, é melhor interromper a ação, pois a vingança contamina a intenção do agente. Mesmo que a causa a ser defendida seja justa, a vingança a corrompe e potencializa o mal, tornando-o ainda mais letal.

 Fonte: https://www.cnbb.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF