SOBRE A IRA E AUTOCONTROLE
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
Segundo a doutrina cristã, a ira é um dos sete
pecados capitais. Ela é pecaminosa quando, sob seu efeito, não controlamos as
emoções irracionais e agimos de forma desordenada perante situações que
poderíamos administrá-las com equilíbrio e moderação. Quem age possuído pela
ira perde sua condição de sujeito, sofre uma espécie de transtorno de
personalidade e, em estado de surto, comete absurdos e causa danos
irreversíveis ao outro.
Diante de situações extremamente
desagradáveis, a espiritualidade cristã nos convoca a imitar Deus, que “é
misericordioso e clemente, lento para a ira, paciente e generoso em seu amor”
(Sl 102, 8). Quem age movido pela ira, excede-se, comete violência e,
geralmente, agride e fere as pessoas mais próximas de sua convivência
humana.
Aristóteles, na “Ética a Nicômaco”, nos ensina
que “é fácil irar-se. Todos são capazes disso, mas não é absolutamente fácil,
e, sobretudo, nem todos são capazes de irar-se com a pessoa certa, na medida
certa, no modo certo, no momento certo e por uma causa justa.”
De acordo com o Papa Francisco, a ira é um
vício destrutivo que afeta profundamente as relações humanas. Ele afirma que a
ira é facilmente identificável através das mudanças físicas e comportamentais,
como agressividade, respiração ofegante e um olhar sombrio. A ira muitas vezes
nasce de uma injustiça percebida e pode ser descarregada de forma
desproporcional contra aqueles que não são os culpados reais. O Papa também
enfatiza que a ira destrói a capacidade de aceitar o outro em sua
singularidade, levando ao ressentimento e à perda de lucidez (PP. FRANCISCO.
“Audiência Geral”, 31/01/2024).
As causas da ira podem variar, incluindo
frustrações, injustiças e situações que desafiam o ego. A ira pode levar a
consequências devastadoras, como perda de controle, violência e até homicídio.
Na perspectiva cristã, a ira é vista como um sentimento que contamina o coração
e deve ser controlada para evitar que leve a ações irracionais e
destrutivas.
Santo Tomás de Aquino, na “Suma Teológica”
(Secunda Secundae. Tratado sobre a Temperança. Questão 158: Da
Iracúndia), explora a natureza da ira e discute se ela é sempre pecaminosa.
Ele conclui que a ira pode ser justificada em certas circunstâncias, por
exemplo, quando dirigida contra uma verdadeira injustiça. A ira justa é
proporcional e dirigida de maneira apropriada. No entanto, ela se torna
pecaminosa quando é direcionada incorretamente, quando excede os limites da
razão e da justiça, levando a comportamentos descontrolados e
violentos.
A ira pode ser lícita quando é motivada por
uma justa indignação contra o mal. Por isso, Santo Tomás considera que nem toda
ira é considerada pecado mortal. A gravidade do pecado da ira depende da
intensidade e das consequências das ações que ela provoca. Uma ira moderada e
justificada pode não ser mortal, enquanto uma ira descontrolada que leva à
violência extrema pode ser. Santo Tomás argumenta que, embora a ira seja um
pecado sério, não é necessariamente o mais grave. A gravidade do pecado é
avaliada com base nas suas consequências e na intenção por trás dele.
Tomás de Aquino concorda com Aristóteles em
grande parte, afirmando que a ira pode ser classificada de acordo com a sua
origem e a sua manifestação. Ele reconhece a complexidade da ira e a
necessidade de uma análise detalhada para entender suas diferentes formas. A
ira é definitivamente contada entre os vícios capitais, pois é uma das paixões
que mais facilmente leva a outros pecados, como a violência e o
ódio.
Santo Tomás identifica seis filhas da ira:
rixa, entumescência de coração, contumélia, vociferação, indignação e
blasfêmia. Estas são manifestações específicas da ira que levam a outros
comportamentos pecaminosos. A ausência completa de ira, em situações em que ela
seria justa, pode também ser um vício, indicando uma falta de zelo pela
justiça, por isso o equilíbrio é fundamental.
A ira é uma emoção complexa que pode ser
justificada em certas circunstâncias, mas frequentemente leva a comportamentos
pecaminosos e destrutivos. Tanto a doutrina cristã quanto as filosofias antigas
enfatizam a importância do autocontrole e da paciência para lidar com a ira de
maneira adequada. Controlar a ira é essencial para manter a paz interior e
evitar ações que possam causar danos irreparáveis a si mesmo e aos
outros.
Em determinados contextos, é preciso agir com vigor
e não com ira. Agir com vigor é um modo de restabelecer o equilíbrio da
justiça, impedindo que o mal prevaleça. É necessário controlar a ira para agir
com racionalidade e firmeza onde for necessário, mas jamais com ódio, rancor ou
vingança. Quando alguém está prestes a agir movido pela vingança, é melhor
interromper a ação, pois a vingança contamina a intenção do agente. Mesmo que a
causa a ser defendida seja justa, a vingança a corrompe e potencializa o mal,
tornando-o ainda mais letal.
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