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segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção (1)

BBC NEWS BRASIL

O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção

  • Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil
  • 18 de dezembro de 2023
  • Brasil

O território brasileiro abriga hoje apenas 20% das estimadas 1.175 línguas que tinha em 1500, quando chegaram os europeus. E, ao contrário de outros países da região, como Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e até Argentina, o Brasil não reconhece como oficiais nenhuma de suas línguas indígenas em âmbito nacional.

Ainda assim, o Brasil é considerado um dos 10 países com o maior número de línguas no mundo e um dos que possuem maior diversidade linguística – ou seja, grande quantidade de famílias diferentes e de línguas isoladas.

Para dar uma ideia da diversidade linguística e cultural do país, a BBC News Brasil fez uma seleção com a ajuda de especialistas indígenas e não indígenas.

O resultado é este especial, no qual mostramos 10 das línguas indígenas faladas hoje no Brasil, de diferentes famílias e em distintas situações de preservação.

Ikolen

uma língua em assovios

Língua tupi

A língua falada dos Ikolen – também chamados de gavião de Rondônia – é da macrofamília tupi e da subfamília tupi-mondé. Mas eles também têm a impressionante capacidade de se comunicarem através da fala assoviada. O tom e o prolongamento das sílabas são transmitidos no assovio, permitindo que o ouvinte adivinhe as palavras de acordo com o contexto. Essa língua é usada somente em ocasiões específicas.

"A língua de assovios é como a fala normal, mas você assovia em vez de usar as cordas vocais. Então a frequência do som é determinada pela altura em que a língua chega na boca", diz o linguista Denny Moore, do Museu Emílio Goeldi, que trabalha com os ikolen desde 1975.

"Ela não é usada para conversar sobre assuntos não imediatos. É usada na vida prática, especialmente quando é necessário que eles se espalhem por grandes distâncias na floresta, como a caça."

Durante as expedições, ao encontrar um bando de animais desejados, os caçadores se separam para cercá-los por trilhas diferentes. Nesse momento, falam uns com os outros por frases assoviadas que dizem coisas como: "aqui tem macaco preto".

Tanto a língua de assovios quanto os instrumentos musicais tradicionais dos ikolen imitam a língua falada | Foto: Cortesia Denny Moore

Nas aldeias, os assovios também são usados para chamar pessoas, pedir pequenos favores ou convidá-las para atividades como pescar, jogar futebol ou tomar banho no rio. As frases assoviadas também são usadas para sinalizar emergências e perigo.

Isso é possível porque a língua falada dos Ikolen tem características que são raras em línguas europeias. Em português diferentes sílabas são enfatizadas em cada palavra, mudando seu significado (por exemplo, a diferença entre sábiasabia e sabiá).

Já para os ikolen é o tom das sílabas que pode alterar o seu sentido – algo que também acontece em línguas como o mandarim chinês. Por exemplo, kap significa "gordo", mas káp, em tom mais alto, é "semente". As sílabas curtas ou prolongadas também provocam mudanças: aka é "matar", mas aakaa significa "vai".

"A fala tonal dos ikolen faz com que eles consigam, usando essa variação de tons e o prolongamento dos sons, dizer com o assovios o mesmo que diriam com as palavras", diz o linguista e especialista em bioacústica Julien Meyer, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França e colaborador do Museu Goeldi, autor de diversos trabalhos sobre o grupo.

É como se eles imitassem a melodia das palavras sílaba por sílaba.

Julien Meyer  - Centro Nacional de Pesquisa Científica da França

Esse tipo de língua foi identificado em cerca de 70 povos ao redor do mundo, principalmente do continente africano e do sudeste asiático. No entanto, a Amazônia é um dos raros locais onde diversas línguas – pelo menos 10 que já foram pesquisadas – ainda são expressadas em assovios. E novas estão sendo descobertas.

Os ikolen ainda mantém a prática viva no dia a dia das aldeias, algo que já não acontece em muitos grupos.

"Levei meu filho na aldeia central, e em dois dias ele já tinha um nome na fala assoviada. As crianças já o estavam chamando assim para brincar", conta Julien Meyer.

"Mas nas aldeias que ficam mais na fronteira da terra indígena, menos pessoas caçam, porque estão mais perto de áreas desmatadas. Por isso, os assovios são menos usados, acabam sendo dominados só pelos mais velhos."

A Terra Indígena Igarapé Lourdes, onde vivem os ikolen, foi homologada em 1983, mas o processo não considerou toda a área ocupada por eles, o que deixou antigas aldeias de fora.

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O ativismo de missionários religiosos, que chegaram à região nos anos 1960, também inibe a transmissão da cultura verbal tradicional (festas, músicas) dos ikolen para a geração mais nova, de acordo com os pesquisadores.

Especialmente no caso da tradição dos "instrumentos cantantes" – uma versão musical da língua, que usa o mesmo princípio dos assovios, de imitar os sons da fala.

"As músicas dos ikolen são baseadas em um conjunto tradicional de letras, que se referem à sua cosmogonia (teorias sobre a criação do universo). Mas os missionários que atuam na região tentam impedir as cerimônias com os instrumentos, por considerá-las uma afronta à religião cristã", explica Meyer.

Nheengatu

a primeira língua franca do país

Língua tupi

O nheengatu é o principal descendente ainda vivo da língua indígena falada por diversos povos ao longo da costa brasileira quando os portugueses chegaram.

Desde o início da colonização, a língua foi chamada de tupinambá (por causa do povo Tupinambá, um dos que vivia no litoral), tupi antigo e, eventualmente, língua geral brasílica – por causa do seu uso pelos portugueses para se comunicar com os indígenas.

Foi esse uso o que fez com que o tupi antigo fosse a língua mais bem documentada da América portuguesa, segundo a linguista Aline da Cruz, da Universidade Federal de Goiás, em artigo no livro Índio não fala só tupi (Editora 7Letras, 2021).

Além de ter sido objeto da primeira gramática de uma língua brasileira, escrita pelo padre José de Anchieta no século 16, o tupi antigo também foi usado em um dos tratados mais influentes sobre a fauna e a flora brasileiras no século 17 e deu nome científico a plantas como o maracujá (Passiflora murucuja) e animais como a jararaca (Bothrops jararaca).

Segundo Cruz, a difusão do tupi antigo fez com que a língua original ganhasse influências do português e fosse levada para os sertões do centro e sul, onde se tornou a "língua geral paulista", e para o interior do norte brasileiro, onde virou a "língua geral brasílica".

Para comprovar a colonização desses territórios aos espanhóis, a coroa portuguesa proibiu o uso da língua geral no país no século 18 em favor do português.

Ela caiu em desuso no século 19 e, a partir daí, foi chamada pelos indígenas de nheengatu, ou "língua boa" (nheen significa 'língua, falar' e katu '(ser) bom').

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O uso do nheengatu persistiu em grupos como os baré, os baniwa e os warekena, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, onde convive com as línguas originais desses povos.

Ela é considerada uma das línguas oficiais na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM) – o Brasil só tem línguas indígenas reconhecidas como oficiais em âmbito municipal.

"Avançamos muito após a co-oficialização da língua. Adicionamos aulas de nheengatu nas escolas indígenas. E também estamos levando a língua de volta para a região do Baixo Tapajós, no Pará", diz o linguista e professor Edilson Melgueiro, da etnia baniwa.

Segundo ele, entre povos nativos do Ceará e do Piauí também há uma tentativa de recuperar o tupi antigo, por meio do ensino do nheengatu.

"O mais importante dessa retomada é a autoestima. Vejo no fundo dos olhos, no fundo do coração, como é que em muitos de nós – que sofremos muito preconceito por causa das nossas línguas – a autoestima melhorou."

A gente se sente mais humano ao ter a nossa língua mais valorizada.

Edilson Melgueiro Baniwa - Linguista e professor

É possível reconhecer algumas expressões do português no nheengatu como porke (por que) e tenki (tem que), além da semelhança entre vários verbos.

Mas, se a estrutura do português é direta (sujeito, verbo e objeto), no nheengatu a maioria das frases tem sujeito oculto, explica o linguista.

"Se em português se diz 'eu gosto de você', no nheengatu se diz asaisu indé, ou 'gosto de você'. Só usamos o sujeito se queremos dar ênfase a ele."

"Nas línguas indígenas, em geral, o verbo é mais importante do que os pronomes. Acho que isso tem a ver com a nossa cosmovisão. Na nossa mitologia, os seres nos criaram com ações. Então para nós, as palavras são mais fortes quando se tratam de ações", afirma.

Após ser a primeira língua indígena brasileira a ter uma gramática, no século 16, o nheengatu é a primeira a ter uma tradução da Constituição | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Segundo estimativas da Unesco, há cerca de 6 mil falantes do nheengatu espalhados entre Brasil, Colômbia e Venezuela.

A antiga língua franca também se tornou a primeira indígena no Brasil a ter sua própria versão da Constituição, oficialmente publicada em cerimônia no final do último mês de julho.

"Essa notícia foi uma alegria imensa para os 23 povos do Rio Negro, porque finalmente a gente tem uma das nossas línguas escrita, reconhecida e sentida. Isso concretiza um desejo dos nossos pais, de nossas lideranças", diz a antropóloga Francy Fontes Baniwa.

Créditos:

Texto e reportagem: Camilla Costa
Design: Caroline Souza
Edição e design de vídeo: Daniel Arce
Desenvolvimento: Marta Martí Marques, Alex Nicholas, Matthew Taylor
Edição e coordenação: Carol Olona
Agradecimentos: Felipe Corazza, Marcos Gurgel, Holly Frampton, Denny Moore, Gustavo Godoy, Bruna Franchetto, Hein van der Voort, Kristina Balykova, Januacele Francisca da Costa, Elissandra Barros, Gasodá Suruí, Julien Meyer, Joana Autuori, Andrés Pablo Salanova, Fernando Orphão de Carvalho, Edison Melgueiro Baniwa, Francy Fontes Baniwa, Janina dos Santos, Maria do Carmo Martins, Esmeralda Maria Piloto, Keila Felicio Iaparrá, Kilia Sanumá, Kalepi Amarildo Sanumá, Cacique Djik Fulni-ô, Fábia Fulni-ô, Éxetina Aristides Terena, Aronaldo Júlio, todas as mulheres e homens indígenas que cederam seus vídeos.
Vídeos:
Ikolen - Falantes: Sena Kéré’áàp Gavião e Vása Séèp Gavião Participantes: Oliveira Gavião e Tarami Gavião Imagens e edição: Julien Meyer e Laure Dentel | Cortesia do Museu Emilio Goeldi Tradução: Denny Moore, João Cipiábíìt Gavião e Julien Meyer
Nheengatu - Falantes: Maria do Carmo Martins e Esmeralda Maria Piloto Imagens e tradução: Edilson Melgueiro Baniwa
Parikwaki - Falante, imagens e tradução: Keila Felicio Iaparrá
Terena - Falante: Éxetina Aristides Imagens e tradução: Aronaldo Júlio
Guató - Falante: Eufrásia Ferreira (Djariguka) Imagens: Kristina Balykova e Gustavo Godoy Edição e tradução: Kristina Balykova
Yaathê - Falante: Cacique Djik Fulni-ô (Cícero de Brito) Imagens: Fábia Fulni-ô Tradução: Januacele Francisca da Costa
Ka’apor - Falantes e sinalizantes: Jarara Pirã Ka'apor e Sypo Ruwy mãi (Joana Ka'apor) Imagens, edição e tradução: Gustavo Godoy
Kayapó - Falante: Nhàkture (Maria Eugênia) Imagens, edição e tradução: Andrés Pablo Salanova
Kheuól - Falante, imagens e tradução: Janina dos Santos
Sanöma - Falante: Kilia Sanumá Imagens: Kalepi Amarildo Isaac Sanumá Tradução: Joana Autuori

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-3a23b0c2-e594-4145-ad26-32fbee5e9203

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF