O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção
- Equipe
de Jornalismo Visual da BBC News Brasil
- 18
de dezembro de 2023
- Brasil
O território brasileiro abriga hoje apenas 20% das estimadas
1.175 línguas que tinha em 1500, quando chegaram os europeus. E, ao contrário
de outros países da região, como Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e até
Argentina, o Brasil não reconhece como oficiais nenhuma de suas línguas
indígenas em âmbito nacional.
Ainda assim, o Brasil é considerado um dos 10 países com o
maior número de línguas no mundo e um dos que possuem maior diversidade
linguística – ou seja, grande quantidade de famílias diferentes e de línguas
isoladas.
Para dar uma ideia da diversidade linguística e cultural do
país, a BBC News Brasil fez uma seleção com a ajuda de especialistas indígenas
e não indígenas.
O resultado é este especial, no qual mostramos 10
das línguas indígenas faladas hoje no Brasil, de diferentes famílias e em
distintas situações de preservação.
Ikolen
uma língua em assovios
Língua tupi
A língua falada dos Ikolen – também chamados de gavião de
Rondônia – é da macrofamília tupi e da subfamília tupi-mondé. Mas eles também
têm a impressionante capacidade de se comunicarem através da fala assoviada. O
tom e o prolongamento das sílabas são transmitidos no assovio, permitindo que o
ouvinte adivinhe as palavras de acordo com o contexto. Essa língua é usada
somente em ocasiões específicas.
"A língua de assovios é como a fala normal, mas você
assovia em vez de usar as cordas vocais. Então a frequência do som é
determinada pela altura em que a língua chega na boca", diz o linguista
Denny Moore, do Museu Emílio Goeldi, que trabalha com os ikolen desde 1975.
"Ela não é usada para conversar sobre assuntos não
imediatos. É usada na vida prática, especialmente quando é necessário que eles
se espalhem por grandes distâncias na floresta, como a caça."
Durante as expedições, ao encontrar um bando de animais
desejados, os caçadores se separam para cercá-los por trilhas diferentes. Nesse
momento, falam uns com os outros por frases assoviadas que dizem coisas como:
"aqui tem macaco preto".
Nas aldeias, os assovios também são usados para chamar
pessoas, pedir pequenos favores ou convidá-las para atividades como pescar,
jogar futebol ou tomar banho no rio. As frases assoviadas também são usadas
para sinalizar emergências e perigo.
Isso é possível porque a língua falada dos Ikolen tem
características que são raras em línguas europeias. Em português diferentes
sílabas são enfatizadas em cada palavra, mudando seu significado (por exemplo,
a diferença entre sábia, sabia e sabiá).
Já para os ikolen é o tom das sílabas que pode alterar o seu
sentido – algo que também acontece em línguas como o mandarim chinês. Por
exemplo, kap significa "gordo", mas káp,
em tom mais alto, é "semente". As sílabas curtas ou prolongadas
também provocam mudanças: aka é "matar", mas aakaa significa
"vai".
"A fala tonal dos ikolen faz com que eles consigam,
usando essa variação de tons e o prolongamento dos sons, dizer com o assovios o
mesmo que diriam com as palavras", diz o linguista e especialista em
bioacústica Julien Meyer, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França e
colaborador do Museu Goeldi, autor de diversos trabalhos sobre o grupo.
É como se eles
imitassem a melodia das palavras sílaba por sílaba.
Julien Meyer - Centro
Nacional de Pesquisa Científica da França
Esse tipo de língua foi identificado em cerca de 70 povos ao
redor do mundo, principalmente do continente africano e do sudeste asiático. No
entanto, a Amazônia é um dos raros locais onde diversas línguas – pelo menos 10
que já foram pesquisadas – ainda são expressadas em assovios. E novas estão
sendo descobertas.
Os ikolen ainda mantém a prática viva no dia a dia das
aldeias, algo que já não acontece em muitos grupos.
"Levei meu filho na aldeia central, e em dois dias ele
já tinha um nome na fala assoviada. As crianças já o estavam chamando assim
para brincar", conta Julien Meyer.
"Mas nas aldeias que ficam mais na fronteira da terra
indígena, menos pessoas caçam, porque estão mais perto de áreas desmatadas. Por
isso, os assovios são menos usados, acabam sendo dominados só pelos mais
velhos."
A Terra Indígena Igarapé Lourdes, onde vivem os ikolen, foi
homologada em 1983, mas o processo não considerou toda a área ocupada por eles,
o que deixou antigas aldeias de fora.
O ativismo de missionários religiosos, que chegaram à região
nos anos 1960, também inibe a transmissão da cultura verbal tradicional
(festas, músicas) dos ikolen para a geração mais nova, de acordo com os
pesquisadores.
Especialmente no caso da tradição dos "instrumentos
cantantes" – uma versão musical da língua, que usa o mesmo princípio dos
assovios, de imitar os sons da fala.
"As músicas dos ikolen são baseadas em um conjunto
tradicional de letras, que se referem à sua cosmogonia (teorias sobre a criação
do universo). Mas os missionários que atuam na região tentam impedir as
cerimônias com os instrumentos, por considerá-las uma afronta à religião
cristã", explica Meyer.
Nheengatu
a primeira língua franca do país
Língua tupi
O nheengatu é o principal descendente ainda vivo da língua
indígena falada por diversos povos ao longo da costa brasileira quando os
portugueses chegaram.
Desde o início da colonização, a língua foi chamada de
tupinambá (por causa do povo Tupinambá, um dos que vivia no litoral), tupi
antigo e, eventualmente, língua geral brasílica – por causa do seu uso pelos
portugueses para se comunicar com os indígenas.
Foi esse uso o que fez com que o tupi antigo fosse a língua
mais bem documentada da América portuguesa, segundo a linguista Aline da Cruz,
da Universidade Federal de Goiás, em artigo no livro Índio não fala só
tupi (Editora 7Letras, 2021).
Além de ter sido objeto da primeira gramática de uma língua
brasileira, escrita pelo padre José de Anchieta no século 16, o tupi antigo
também foi usado em um dos tratados mais influentes sobre a fauna e a flora
brasileiras no século 17 e deu nome científico a plantas como o maracujá (Passiflora
murucuja) e animais como a jararaca (Bothrops jararaca).
Segundo Cruz, a difusão do tupi antigo fez com que a língua
original ganhasse influências do português e fosse levada para os sertões do
centro e sul, onde se tornou a "língua geral paulista", e para o
interior do norte brasileiro, onde virou a "língua geral brasílica".
Para comprovar a colonização desses territórios aos
espanhóis, a coroa portuguesa proibiu o uso da língua geral no país no século
18 em favor do português.
Ela caiu em desuso no século 19 e, a partir daí, foi chamada
pelos indígenas de nheengatu, ou "língua boa" (nheen significa
'língua, falar' e katu '(ser) bom').
O uso do nheengatu persistiu em grupos como os baré, os
baniwa e os warekena, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, onde convive
com as línguas originais desses povos.
Ela é considerada uma das línguas oficiais na cidade de São
Gabriel da Cachoeira (AM) – o Brasil só tem línguas indígenas reconhecidas como
oficiais em âmbito municipal.
"Avançamos muito após a co-oficialização da língua.
Adicionamos aulas de nheengatu nas escolas indígenas. E também estamos levando
a língua de volta para a região do Baixo Tapajós, no Pará", diz o
linguista e professor Edilson Melgueiro, da etnia baniwa.
Segundo ele, entre povos nativos do Ceará e do Piauí também
há uma tentativa de recuperar o tupi antigo, por meio do ensino do nheengatu.
"O mais importante dessa retomada é a autoestima. Vejo
no fundo dos olhos, no fundo do coração, como é que em muitos de nós – que
sofremos muito preconceito por causa das nossas línguas – a autoestima
melhorou."
A gente se sente
mais humano ao ter a nossa língua mais valorizada.
Edilson Melgueiro
Baniwa - Linguista e professor
É possível reconhecer algumas expressões do português no
nheengatu como porke (por que) e tenki (tem
que), além da semelhança entre vários verbos.
Mas, se a estrutura do português é direta (sujeito, verbo e
objeto), no nheengatu a maioria das frases tem sujeito oculto, explica o
linguista.
"Se em português se diz 'eu gosto de você', no
nheengatu se diz asaisu indé, ou 'gosto de você'. Só usamos o
sujeito se queremos dar ênfase a ele."
"Nas línguas indígenas, em geral, o verbo é mais
importante do que os pronomes. Acho que isso tem a ver com a nossa cosmovisão.
Na nossa mitologia, os seres nos criaram com ações. Então para nós, as palavras
são mais fortes quando se tratam de ações", afirma.
Segundo estimativas da Unesco, há cerca de 6 mil falantes do
nheengatu espalhados entre Brasil, Colômbia e Venezuela.
A antiga língua franca também se tornou a primeira indígena
no Brasil a ter sua própria versão da Constituição, oficialmente publicada em
cerimônia no final do último mês de julho.
"Essa notícia foi uma alegria imensa para os 23 povos
do Rio Negro, porque finalmente a gente tem uma das nossas línguas escrita,
reconhecida e sentida. Isso concretiza um desejo dos nossos pais, de nossas
lideranças", diz a antropóloga Francy Fontes Baniwa.
Créditos:
Texto e reportagem: Camilla Costa
Design: Caroline Souza
Edição e design de vídeo: Daniel Arce
Desenvolvimento: Marta Martí Marques, Alex Nicholas, Matthew Taylor
Edição e coordenação: Carol Olona
Agradecimentos: Felipe Corazza, Marcos Gurgel, Holly Frampton,
Denny Moore, Gustavo Godoy, Bruna Franchetto, Hein van der Voort, Kristina
Balykova, Januacele Francisca da Costa, Elissandra Barros, Gasodá Suruí, Julien
Meyer, Joana Autuori, Andrés Pablo Salanova, Fernando Orphão de Carvalho,
Edison Melgueiro Baniwa, Francy Fontes Baniwa, Janina dos Santos, Maria do
Carmo Martins, Esmeralda Maria Piloto, Keila Felicio Iaparrá, Kilia Sanumá,
Kalepi Amarildo Sanumá, Cacique Djik Fulni-ô, Fábia Fulni-ô, Éxetina Aristides
Terena, Aronaldo Júlio, todas as mulheres e homens indígenas que cederam seus
vídeos.
Vídeos:
Ikolen - Falantes: Sena Kéré’áàp Gavião e
Vása Séèp Gavião Participantes: Oliveira Gavião e Tarami
Gavião Imagens e edição: Julien Meyer e Laure Dentel |
Cortesia do Museu Emilio Goeldi Tradução: Denny Moore, João
Cipiábíìt Gavião e Julien Meyer
Nheengatu - Falantes: Maria do Carmo
Martins e Esmeralda Maria Piloto Imagens e tradução: Edilson
Melgueiro Baniwa
Parikwaki - Falante, imagens e tradução: Keila
Felicio Iaparrá
Terena - Falante: Éxetina Aristides Imagens
e tradução: Aronaldo Júlio
Guató - Falante: Eufrásia Ferreira
(Djariguka) Imagens: Kristina Balykova e Gustavo Godoy Edição
e tradução: Kristina Balykova
Yaathê - Falante: Cacique Djik Fulni-ô
(Cícero de Brito) Imagens: Fábia Fulni-ô Tradução: Januacele
Francisca da Costa
Ka’apor - Falantes e sinalizantes: Jarara
Pirã Ka'apor e Sypo Ruwy mãi (Joana Ka'apor) Imagens, edição e
tradução: Gustavo Godoy
Kayapó - Falante: Nhàkture (Maria
Eugênia) Imagens, edição e tradução: Andrés Pablo Salanova
Kheuól - Falante, imagens e tradução: Janina
dos Santos
Sanöma - Falante: Kilia Sanumá Imagens: Kalepi
Amarildo Isaac Sanumá Tradução: Joana Autuori
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-3a23b0c2-e594-4145-ad26-32fbee5e9203
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